quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Hamiltão ignora a ontologia, e parte para questões bizarras...

                                                                                                                     Ilustração: Salvio Juliano


À idílica luz do luar


A égua, na maior pachorra, apareceu de repente na esquina, batendo as patas no asfalto molhado. Parei para que aquele animal graúdo, nédio, de pelos claros, atravessasse o meu caminho.
Foi numa tarde da semana passada. Eu, debaixo de um chuvão danado, estava com pressa. A égua não.
Mas foi vê-la, leitor, foi só vê-la, e me lembrei de Maria O., sensualíssima garota de Anápolis. Até chegar à sede da Gazeta, não me importei mais com a chuva, aquecido pelas recordações.
O leitor, claro, não me vai chamar de animalesco, de adepto da zooerastia ou de coisa que o valha. Tampouco pensará que comparo qualidades atinentes a Maria O. com qualquer suposto atributo equino.
Ah, mas sei que, na verdade, o leitor é sacana, e já viajou para esse lado pervertido da mente.
À propos. Lembro que, noutra terra e noutros tempos, era comum sujeitinho sem freio sexual “possuir” égua ou jega (fêmea do jegue) em pastos alheios. Confesso que já testemunhei, já.
A operação era realizada geralmente por duas pessoas, à idílica luz da lua. Uma segurava o corrião em volta do pescoço do animal, mantendo-o com o traseiro virado para murundu feito por cupins, enquanto a outra...
Aquele que segurava o corrião era sempre o bocó, mesmo que depois quisesse e pudesse ter vez no traseiro da égua, ou seja, ia bater soro.
(É como se eu estivesse a ver o leitor fazendo carinha safada... botando dúvida... querendo crer que fui, pelo menos, um bocozinho.
Nisso é que dá a gente escrever com autenticidade. Aparece logo um enxerido para insinuar que tudo aquilo vem de experiência própria do autor.)
Paro de escrever e – plaft – bato na testa: onde ficamos com a Maria O.? Como posso esquecer-me da inesquecível? Como?
Não, não me esqueci daquele pedaço tentador de paraíso. Não. Só que...
Fico encafifado com certas coisas. O que leva sujeitinho, num mundo cheio de mulheres, a sair pelos brejos à cata de jumentas, cabras, jegas, a enlamear os pés e a encher a roupa de carrapichos?
Qual a sedução da vasta xandanga de mula, quando há tantas fêmeas da raça humana que correspondem muito bem? Por que encurralar a berregante cabrita do vizinho, se esse mesmo vizinho pode ser um segurador de corrião cuja mulher anda doidinha para soltar o berro?
É de ver, cético leitor, mocinho vibrante encarapitado em cupim, com as calças nos tornozelos, a empalmar um pau duríssimo, jumental, e a clamar, com voz entrecortada: “Chega mais... chega mais...”
Enquanto isso, lá na dianteira do muar, o bocó vai muxoxeando para induzir o animal, como se fosse um garagista.
O que poderia excitar tanto? A capitosa brisa da noite enluarada? O cheiro de estrume? A iminência de um coice na virilha? O quê?
Naquela tarde de chuva, a égua, com as patas ferradas a bater no asfalto, dorso luzidio, me lembrou Maria O. Mas – ora, expectante leitor, ora – Maria O., Maria O.... Ela que fique para próxima crônica.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 179, 14/1/2001)

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Em texto aliciante, quase rapsódico, Hamiltão relata como se tivesse “roubado”


O maior chuparino

Subi ao telhado pela traseira da casa. Fui-me arrastando, devagar, até divisar o portão no outro lado da rua. Lá estava ela, a lúbrica Língua de Veludo.
O leitor, naturalmente, não se interessa por assunto tal qual o que se delineia nas palavras acima. Por isso, vou mudar de paleta e de tom.
Antes, porém, devo dizer que a lembrança da bela Língua de Veludo me ocorreu ao ver hoje, no ônibus, uma garota muito parecida com ela. (“... lembrança da bela Língua de Veludo” – o leitor sente como alitero deliciadamente...)
Pode ser coisa feia, mas a memória me arrasta ao encontro de Calhambeque, um velho desdentado que se dizia “o maior chuparino do mundo”.
No entanto, o que fez o sujeito ganhar o apelido de Calhambeque não foi a obscena e arreganhadíssima boca cheia de gengivas e vorazes papilas. Todo o puteiro daquela planaltina vila não o conhecia por outro nome.
Dizia-se no bar em que um de meus irmãos trabalhava, à margem da Rio-Bahia, que o epitetado (meu deus) vivia carregado de doenças venéreas. Vazava pus como carro velho solta óleo pelas juntas desgastadas.
Mesmo assim o desgraçado não perdia a pose. Dedo em riste, com veemência perdigoteira, proclamava: “Sou o maior chuparino do mundo.”
Isso poderia até ser verdade – sei lá, meu deus –, já que o infeliz era sempre muito bem-vindo ao brega. “Sou o maior chuparino do mundo.”
Não era um chupador qualquer. Afinal, artístico leitor, nunca houve um bailador chamado Nureyev.
A língua é realmente muito sutil, quer dizer, a língua portuguesa.
Caso em que pensar, o do Calhamba. Depois de levar anos fodendo todas as quengas do perímetro rodoviário, a trocar cocos com elas, o velhote passou a chupitá-las com unção cada vez maior, até consagrar-se definitivamente nos anais (ou vaginais) da vila.
O leitor, hoje, é testemunha de um retrocesso sem precedentes na história sexual da humanidade.
Conscientizado pela propaganda na televisão, putanheiro dos tempos atuais pega camisinha Ploc, a paraguaia, e vai à decadente casa de Tia Alzira para aplicar uma, digamos assim, fodinha formal.
Nada para encher a boca e proclamar: “Sou o maior chuparino do mundo.”
Ih, nem falar do amante pé de muro. O Valentino boqueteiro já não pode, galantemente, ajoelhar-se diante da amada, lotar as mãos de bunda e... fazer, leitor, fazer o que se faz com laranja destampada.
Há em mim como que uma sensação de perda. Não existem heróis iguais aos de antigamente. Ali, à margem da Rio-Bahia, eu, molequinho que mal se iniciava na punhetinha digital, ouvia, como se roubasse, épicos relatos de figuras que bailavam em torno de uma mesa de bilhar, nas tardes preguiçosas da amada vila planaltina.
Foi assim, cheio de aspirações, que anos depois me encarapitei no telhado de casa. Dali, passei a observar, excitadíssimo, a lasciva Língua de Veludo. Mas sinto que o assunto não interessa ao leitor, e paro por aqui.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 176, 17/12/2000)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Cenário estilo The Great Gatsby. Texto apressado, como se quisesse esquivar-se de personagens. E ecos, muito leves, do jornalismo provinciano


Confraternização de fim de ano

Chego de manso, a medo, a este canto de página. Não é uma volta triunfal, já que desta vez nenhum leitorzinho filho da mãe lamentou a ausência de minhas baboseiras semanais.
Nada de chutar o pau da barraca, nada de sacanais loucuras, nada de taras e tarinhas. Adiro, com este cronicão pesado, ao estilo modorrento de certos coleguinhas (como me detesto...).
Por falar em pau... Ah, não, não me deixarei cair na tentação das baixarias. Ando a reciclar-me nos páramos do amor.
Pois é, sentimentalizei-me de vez na festa de confraternização da Gazeta, domingo passado. É claro que a farta cerveja ajudou bocadão.
Retifiquei alguns sentimentos, concedi dois ou três perdões, jurei pagar uma ou outra dividazinha de mil-réis.
Minhas retinas, desbotadas pelo sol áspero da vida, serenaram-se no verde e no azul da paisagem onírica. Agarrei a utopia pela goela e bradei: “És minha.”
És minha. Comemorei a volta do eu possessivo, querente, aflitíssimo pelo gozo. Abri o sorriso incompleto e estendi as mãos a carícias de repente possíveis.
Beatificamente instalado diante de um copo inesgotável, à sombra das palmeiras, sucedeu de, vezinha que outra, eu ficar perdido olhar adentro. Em momento assim foi que alguenzinha me surpreendeu: “Por que essa carinha tão melancólica?”
Não, não havia melancolia. A cara de bunda era a mesma, apenas um pouco mais nua, desprevenida, como que arreganhada. Mas logo armei o ar blasé de intelectual aclamado por multidões ignaras.
E por falar em bunda... Ah, leitor de suplementos literários, paciência. Paciência. Como resistir ao fato? A calipigidade das meninas festeiras era realmente notável. Uma, em particular... Ora, leitor indiscreto. Bah.
Ganhei o meu domingo logo ao pisar o gramado irretocável da chácara. Com algum atraso, pois o caminho do eldorado nem sempre é fácil para não iniciados.
Aí, dei de cara com um esfuziante Luiz de Aquino. Ele acabara de conhecer Beethoven – pessoalmente. Olhei para o lado e vi o safado do Ludwig, surdo ao burburinho, a se esfregar nas torneadas pernas da colunista Jô Almeida. Aliás, ele (o poodle) era o único cachorro da festa.
Eu, pelo meu ladinho, preferi avaliar o rosto promissivo de Mona Lisa, cujo defeito circunstancial era estar debaixo do braço de Juarez Alencar, que não é e nunca foi nenhum marchand. Talvez por isso é que a menina, sob disfarce, tenha adotado o codinome de Sheila.
É, arredio leitor, sentimentalizei-me. Assim, reciclado, mas a medo, chego de manso ao meu velho cantinho de página.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 175, 10/12/2000)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O que vier, dois palitos. Na hora do aperto, Hamiltão aposta qualquer coisa, só para ter o gostinho de não dar o braço a torcer


Crises e mudanças

Estou (não vou generalizar com um “estamos”) no fundo da curva da crise. Mas, dizem, as crises prenunciam mudanças. Sei lá. Penso na crise que alguns amigos e eu vivíamos com a falta de cerveja durante o Plano Cruzado.
Leitor, ah, leitor, você já jogou porrinha? Não, não me refiro ao ato de atirar porra no côncavo uterino ou em antipático bico de camisinha. Ou em qualquer concavidade ou conduto. Ou mesmo em ralo de banheiro.
(Aliás, nessa variante do sublime esporte do gozo, a do banheiro, ultimamente ando no ápice de minha carreira de craque. Resultado de crises.)
Porrinha, no nobre sentido que aqui quero expressar, é o mesmo que jogo de palitinhos, conhecido também, por gerações mais cultas – ou esnobes –, como basquete de bolso. (E ainda dizem que não sou cultura...)
Na área coberta em frente ao bar do Florim (hoje o vistoso Supermercado Bom Sucesso, ainda de Florim e família), eu, metido em sensualíssimo calção (não desses bermudões escrotos), costumava bater uma porrinha adoidada.
O velho Argemiro, um aposentado da RFFSA (que o preguiçoso leitor descubra que diabo é isso), comandava o evento dos fins de semana. Figura alegre e levemente maliciosa, seu Argemiro, ao ver passar mulher boa, suspirava: “Ai, ai... Deus é justiceiro; tira a força mas não tira a vontade.” [O advento do Viagra viria confirmar essa “teologia”.]
A turma em volta da mesa, como é de praxe em jogo de palitinhos que se preze, apostava a próxima cerveja enquanto golejava a da garrafa posta. O dia, assim, transcorria gostoso, sombra aqui e solzão comendo na rua.
Ora, com a crise da carne, quero dizer, com a crise da cerveja, nossa disputadíssima farra semanal estava ameaçada. Foi quando alguém deu a ideia. Por força da crise, alguém tinha que ter uma ideia. “Por que a gente não aposta uma garrafa de jurubeba?”
Nas circunstâncias, era uma boa ideia. Mandamos descer uma garrafa de vinho de jurubeba (não me lembro se Leão do Norte ou se Cangaceiro). A certa altura, constatamos um problema: não se traga jurubeba no mesmo ritmo com que se bebe cerveja.
Como apostar a próxima? Como gritar, eufórico apesar da derrota, “Florim, desce a minha”? Havia sempre uma próxima depois da próxima da próxima. A chumbada era pra valer: pesava mesmo.
Decidimos, então, apostar carteira de cigarros. A coisa deu certo durante vários fins de semana, até que um não fumante (só pra variar...), que vinha numa maré de sorte, protestou.
Passamos a apostar barras de chocolate. Florim festejou, pois ali o produto não era muito acessível à garotada, e ele ficou, rapidinho, sem o estoque de chocolate.
Assim, chegamos a apostar até panela de pressão, ó meu. Era só um produto entrar em crise, a gente mudava para outro.
Vou sair desta.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 143, 30/4/2000)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A linguagem no embalo dos fatos, do tédio e do medo. Banalização


Um assalto light

Domingo passado, este portento da intelligentsia latino-americana assistia ao programa do Gugu quando... Vamos ao onde primeiramente.
Estava eu na mercearia de meus amigos Sebastião e Lourdes, pernões cruzados, concentradíssimo na mancha de molho de mostarda na calça jeans mais que bufada, quando uma voz de veludo, transbordante de amor e bondade, me fez erguer os olhos para o televisor atrás do balcão.
Era Celso Pitta. Não, leitor; espere. Não desista. Continue a ler. Afinal, sem você não sou ninguém.
Com a mais humílima cara de pau, o prefeito de São Paulo, falando para todo o Brasil, pedia à ex-cara-metade que “medisse as palavras”. Fiquei fascinado, embora, degenerado como sou, fizesse tradução simultânea: “Cuidado com o que diz, sua cabra.”
Mesmo com um revólver apontado para o rosto, demorei a sair do transe hipnótico.
Revólver apontado para o rosto? Sim, leitor, era um assalto. Mas vamos por partes.
Quando aportei na mercearia de meus amigos, às 8 da noite, estava mais entediado que jegue de cangalha estacionado em frente de bodega à espera do dono, que conta lorotas e enche a cara.
Na televisão, num intervalo comercial (intervalo comercial... que coisa), Ney Matogrosso, serpiginoso, matava de vergonha algum compositor sério.
Simpático jovem, que ali tomava cerveja com um amigo, me perguntou candidamente: “Ney Matogrosso é gay?” Sorri e perguntei se era só agora que ele desconfiava. Ele sorriu de volta, simpaticíssimo. “Pensei que esse jeitão dele fosse porque todo artista é malucão.”
Foi aí que me sentei, apoiando cotovelo no balcão. Além dos rapazes, que tomavam da cerveja mais barata (R$ 1), havia um senhor escorado num freezer, também a golejar. Tiãozinho e a mulher estavam sentados atrás do balcão.
Ney Matogrosso cedeu lugar a Celso Pitta. Os rapazes pagaram duas cervejas e pediram mais uma ao Tião. Quatro pessoas no recinto, cujo silêncio era quebrado pela voz rastejante – pura humildade e amor – de Pitta.
Com dificuldade para sair do torpor, dei rápida olhada na arma que um dos simpáticos rapazes que tomavam cerveja ao balcão apontava para o meu nariz, e voltei a me fixar no vídeo cheio de Pitta cordeirinho.
Quando a ficha caiu (como costuma dizer o populacho), voltei a olhar para o moço do revólver, já ensaiando um sorriso para sorrir da brincadeira.
Mas era mesmo assalto. O moço me disse, baixinho, para ficar quieto, e passou para o lado interno além do balcão. O outro informou baixinho ao homem perto do freezer que era um assalto, encostando uma arma enorme, de cano serrado, no pobre rim direito do respeitável senhor.
O respeitável senhor, com a mão direita, tirou a carteira e disse para o assaltante que nela só havia documentos. Nisso, com a mão esquerda, ele, maroto, jogava R$ 85 para trás do freezer. O gentil assaltante devolveu a carteira sem abri-la.
Fiquei lá, sentado, pernões cruzados, olhando ora para um assaltante, ora para a televisão, ora para o outro assaltante, ora para Tião e dona Lourdes. Ninguém ligava para mim nem para o meu dinheiro. Parece que a cara da gente diz tudo.
Enquanto dona Lourdes tremia toda, o danado do Tiãozinho estava lá, calmão, a ajudar o ladrão a catar notas de R$ 1 na gaveta. Era a primeira vez que ele se via envolvido em assalto, mas não se abalou. Nem parecia torcedor do Goiás Esporte Clube.
Os rapazes saíram sem terminar a terceira cerveja, a qual, aliás, se esqueceram de pagar. E custava apenas R$ 1. Mas deixaram algum troco para meus amigos.
Pessoas que estavam sentadas a uma mesa do lado de fora da mercearia nem sequer perceberam que ocorrera um assalto. Continuei sentadão, pernas cruzadas, a assistir ao programa do Gugu.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 138, 19/3/2000)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Esferográfica cambaleante em roto papel, distúrbios elementares e balbucios – não necessariamente nesta ordem. Como antigamente, muito antigamente

                 
A canção e o bêbado

Aí eu: “Ainda é cedo, amor / Mal começaste a conhecer a vida / Já anuncias a hora da partida...” Aí eu nos botequins da vida.
Venho sentimental desde a crônica da semana passada, pois não? Só que agora, a uma mesa de bar – rompendo firme autodeterminação de não redigir fora da atmosfera condicionada da Gazeta –, não consigo me concentrar nas palavras da cantiguinha com que iniciei este lítero-babaca texto.
É que, como o goianíssimo leitor sabe, há sujeitinhos que estacionam o carro ao meio-fio, abrem a traseira (do carro) e botam o som na maior altura. Agora, neste exatíssimo momento, Reginaldo Rossi, a todo o volume, me atrapalha.
Não que eu não goste das peças produzidas por ele, pois nem só de Tchaikovski vive a humanidade. Mas é que...
Ainda é cedo, amor / Mal começaste...” Aí eu, a uma mesa de bar, não consigo nem escavacar a ferida nem ficar de olho no deadline determinado pelo Salvio Juliano, que, além de editar a “Folha G”, ilustra belamente este cantinho de página.
“Seja irresponsável”, diria uma de minhas ex-mulheres. (Na verdade, elas não são minhas ex-mulheres, mas sim ex-minhas mulheres.) No entanto, apesar da má fama, carrego muita responsabilidade na cacunda.
Aí eu, então, estava aqui, na recaída: “Presta atenção, querida / Embora estás resolvida...” Mas o som que vem do carro vibra nas paredes e leva meus tímpanos ao teto do crânio.
Assim, deixei escapulir a canção que me volteava no cérebro e desisti de ficar na fossa, como se dizia nos tempos de flores e pedras. Para não chegar ao desconforto da vida, procurei entrar no espírito da coisa, e passei a reparar em torno de mim.
Dona de lindo pezinho de rabo passou rebolativa pela mesa do marmanjo aqui, rumo ao mictório. A calça dela, justíssima, ia fundo nas reentrâncias, desenhando tudo.
Quando a moça vinha de volta notei que a roupa estava do mesmo jeito, como se ela tivesse feito mijadinha vestida. Pensei, apenas pensei: “Vai ser boa assim lá em casa.”
Houve tempo em que era mais audacioso. Certa vez, disse isso para esfuziante dama – “Vai ser boa assim lá em casa” –, e ela foi. É verdade que naquela época eu me apoiava na estampa autenticada de garotão.
Atualmente o que mais cai no meu pedaço é garota sukita com o papel decorado. O que não me impede de, de vez em quando, fingir uma dorzinha de cotovelo: “Ainda é cedo, amor, mal começaste a conhecer a vida.”
Aí eu... O leitor que me perdoe: estou bêbado demais para continuar.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 142, 16/4/2000)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Hamiltão implica com os mais puros sentimentos alheios, e ainda quer servir de exemplo...


Um tiquinho de amor

O velho... ahn... O idoso... Não, não. Não sei que expressão usar para falar de sujeito que já bateu avançada quilometragem. Nos tempos atuais, costuma-se ser mais elegante: “portador” de terceira idade, ou de melhor idade.
Já pensou, leitor de bom gosto, com que apetite você devoraria um livro chamado O Homem da Terceira Idade e o Mar? Já pensou com que samaritânica sensação você leria a manchete: “Carreta velha atropela mulher de melhor idade”?
Quero falar aqui de um velho da terceira idade apaixonado, apaixonadíssimo. Com os cotovelos apoiados no balcão do bar, o encanecido senhor, com voz chorosa...
Ah, antes, e melhor: prestigiada coluna social registrou que, em Quirinópolis, cidade do rico sudoeste goiano, existe uma entidade, provavelmente “feminista”, cujo nome é Associação das Mocinhas de Ontem. A sigla não deixa dúvida: AMO.
Ativas, as velhinhas fizeram sucesso num encontro em Caldas Novas. Apesar de já estar entrando na fase do capim novo, este burro velho gostaria de estar lá, nem que fosse só para cozinhar os ovos nas águas famosas.
Choroso, cotovelos no balcão, mãos enfiadas nas cãs, o encarquilhado safado soltava no bafo de pinga as suas lamúrias de apaixonado: “Eu só queria um tiquinho de amor, mas aquela pessoa...” O nó na garganta travava a voz do desgraçado.
Tanta melosidade me causou espécie. (Causou espécie... Com expressões de tal quilate, ainda vou disputar cadeira na Academia Goiana de Letras com Erivaldo Néri, o Piolho.) [O sifunculado não é o mesmo da crônica “Uma noite do cacete”.]
Sob a rude aparência de homem curtido nas mais duras lides, ninguém poderia supor alma tão sentimental. “Ai, como dói... aquela pessoa...”
O velhão estava na maior fissura. Credo. Nem eu, nos meus tempos de Ester.
Ora, pô, paixão tão avassaladora só pega bem mesmo lá para os lados da adolescência. Há que envelhecer com galhardia. Mas tem gente parece que não sei.
Como as “mocinhas” de Quirinópolis, que insistem em conjugar o verbo amar na 1ª pessoa, o senhor de barba branca amava, e amava. E queria flexionar também a 2ª pessoa, aquela pessoa, com segurança: tu me amas. Nem que o amor viesse apenas num tiquinho.
Outro dia conheci “aquela pessoa”. É um garotão muito jovem, mas com panca de mulherengo. Apareceu lá no bar com dois amigos e “solicitou” do velho tobeiro três maços de cigarros e um litro de conhaque Domus.
Prontamente atendido, o amado deixou a veneranda figura escorada no balcão, desgrenhada e bêbada, e caiu no mundo com os amiguinhos. “Ai, Jesus”, suspirou o homem da terceira idade, a observar a silhueta querida que ganhava distância.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 141, 9/4/2000)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Texto macio, quase aconchegante. Nem precisa de conteúdo


Boas maneiras


Febril e flébil, deixei a mansarda. Chuvinha sem-vergonha molhava a Ladeira do Vento e a jaqueta um tanto suja deste aparvoado cronista. Ao me preparar para desentortar a esquina, eu a vi.
Louríssima, todinha de branco. Emoldurada por negro guarda-chuva. Faceira. Apesar de as lentes dos óculos estarem peroladas pela chuvinha calhorda, meus olhos sorriram para a vida.
Bem colante, de algodão, a calça realçava a xoxotinha, aquela maravilha cheia de personalidade, triangularmente rechonchuda porém não para o demais.
A vênus, com seu sobranceiro monte, passou por mim, a olhar fixamente para esta fauniana figura e a invadir a intimidade de minhas retinas.
(Quando mocinha me olha daquele jeito, já fico com a impressão de que há algo de muito errado com a minha aparência.)
Depois que ela passou, não resisti: embora não tenha realizado sequer um fotograma do meu sonho de cineasta, virei-me e, andando de banda, à Glauber Rocha, enquadrei a calipígia retaguarda, em transe.
Lançando um olhar em profundidade, vi que a calcinha dela...
Ah, leitor, sou homem de boas maneiras, mas me traí naquele instante: parei, ali, na esquina, debaixo da chuvinha descarada. Colei o olhar na bunda da moça, com a cara certamente a expressar a mais babosa lascívia.
Coisa horrível, obscena. Obscena porque ela girou ligeiramente o pescoço e o guarda-chuva e percebeu. Tenho certeza de que percebeu, com o rabo dos olhos, que eu havia parado para admirar, embasbacado, o rabo dela.
O inferno, diria o dramaturgo, são os outros (meu deus, os truísmos me arrasam). Se ela não tivesse percebido nada, não me sentiria tão infame. Eu, um homem de boas intenções (“o caminho do inferno está calçado de”). Eu, um homem de boas maneiras...
Sim, boas maneiras. Cheguei até a tomar umas aulinhas. Na marra, é claro. Essas frescuras não combinam com a minha índole de cangaceiro. (Ih... lá vem maldade. Índole de cangaceiro não tem nada a ver com a revista Lampião, leitor de estranhos entendimentos.)
A segunda vez que tomei “aulas” de “boas” maneiras foi em um “curso de introdução à...” O nome da empresa não importa (ela hoje só existe para escândalos).
A “professora” arrastou na embromação a turma imbecilizada. Como passar uma semana inteira falando de boas maneiras? Esperta, incluiu no “currículo” o antitabagismo, o místico e o fashion.
Deitou e rolou na humilhação aos que se confessaram fumantes, os quais, mesmo sem fumar, foram segregados na sala, e ainda por cima obrigados a ver slides com imagens horrendas de pulmão fumante.
O místico consistiu em fazer com que todos tirassem os sapatos, fizessem uma roda e se dessem as mãos para ouvir, de olhos fechados, uma canção de John Lennon.
Durante a “sessão”, duas coisas me deixaram um pouco desconfortável: o furinho na meia (eu tinha a sensação de que o conjunto dos olhos fechados estava fixo nele) e a tradução simultânea que a senhora fazia da letra da canção.
A dama (já meio faisandé) exibiu seu multifacetado talento também no fashion. Quase me fez chorar quando me botou para desfilar entre a moçada divertida.
No que eu ia dando a minha de modelo, a tropeçar no pânico, a faisandé fazia a narração: como estava vestido e de que maneira roupa, meias e sapatos se combinavam.
Veio a vez de uma garota. Depois a dama (já meio faisandé) fez uma dissertação e advertiu as moças para jamais vestirem, por exemplo, calcinha vermelha por baixo de calça branca. “Horrível, horrível.”
Discordo. Mesmo que eu tivesse bom gosto, minha tesão, que é obtusa e independente, não sabe o que é isso.
Ah, fico que fico quando vejo calcinha contrastante em gatinha bem-abundada. Principalmente quando a expressiva peça se divide de forma desigual pelas nádegas, com um ladinho mais reentrante que o outro.
Melhor do que isso...
Sim, leitor: a calcinha da moça que eu, menos flébil e mais febril, observava sob a chuvinha despudorada, a calcinha delazinha não estava lá. Não havia marca nem contraste no tecido esticadíssimo que cobria aquela rija massa nadegal. Aai...

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 135, 27/2/2000)

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O autor não explora as contradições, não situa historicamente o leitor e dá a impressão de pensar só em besteiras


Anfóteros


Já falei aqui de certa mocinha do meu pedaço que dizia ter dupla personalidade por causa do nome que lhe deram, mais para de macho do que para de fêmea.

Na ocasião, usei palavras demais. Bastava uma só – o que, na verdade, não seria bom, pois a crônica não se faria. (O assíduo leitor já deve ter chegado à conclusão de que minhas crônicas se fazem, que as palavras é que me arrastam pelos labirintos de mim.)

Logo que o guru Itamar Franco epitetou o “sociólongo” Fernando Henrique Cardoso de anfótero fiquei a me imaginar nos braços da moça eu a sussurrar com voz cava: “Minha anfoterazinha...”

Ora, não, não. Ela não é propriamente uma anfótera. O que ocorria (ou ocorre) com a jovem era (ou é) a alternância de estados d’alma. (Que beleza, hein? Tadim do Zé de Alencar...)

Ela não era, digamos, ambisséxua, embora dissesse que uma das “personalidades” dela pretendia fazer uma “experiência homossexual”. Com sujeitinho que havia feito mudança de sexo porque tinha nome mais para de fêmea do que para de macho.

Aliás, a mocinha gosta de experimentar. Domingo destes eu a encontrei na feira e ela disse que adorava conversar comigo, mas queria me experimentar também de outra forma. “Acho que você é muito bom”, disse, com aquela vozinha rouca, semicerrando os olhos.

Claro, sexo não é o caso aqui, ao se falar do sociólongo apresidentado. Suponhamos que ele seja progressista quando dorme, sonhando sem querer com o passado que não se deixa esquecer, e pefelista quando executa (não no sentido bolsonarista) o pesadelo dos brasileiros, que não conseguem acordar.

Que dizer, então, de Itamar Franco? O encanecido topetudo tornou-se meu ídolo quando apareceu com aquela modelo que focalizava a multidão carnavalesca com a vasta xandanga. Coisa de encher os olhos (e as mãos).

Apesar do jeitinho meio libelu (você, leitor longevo, deve lembrar-se dos pentelhos da tendência estudantil trotskista Liberdade e Luta), apesar do jeitinho porra-débil (porra-louca não combina com as cãs do ínclito senhor), ele é macho público e notório.

Mas é anfótero, também. Tem aquela mineiridade baiana, à ACM. Explude como Figueiredo e, como Figueiredo naquele programa besta com o jornalista puxativo Ney Gonçalves Dias, derrete-se em patetiquices.

Em determinadas circunstâncias, uma qualidade se sobrepõe à outra, o que acontece em coleguinha de pé de balcão.

Ele é macho pra caramba, e faz questão de declarar isso a todo momento, com voz firme. A todo momento até que o álcool começa a puxar o lado sensível dele lá do fundo, e ele então vai espaçando a declaração de virilidade.

A certa altura, quando se lembra e diz “Sou macho”, a coisa já soa sem convicção. Dá até a impressão de afirmar o contrário.

É emocionante observar como, com toda aquela cara feia de bandido, o homem é capaz de ficar tão delicado, com voz aflautada, melíflua, e corpão atarracado cheio de requebros.

Existe um baixinho que circula pela minha zona de abrangência que igualmente se diz “mutcho matcho”. Conta elaboradas histórias dando conta de que já bateu e botou para correr muito negão da pesada.

Com mão enorme e áspera, o baixinho agarra o copo, ao fim de cada caso, entorna e proclama: “Comigo é assim.”

Acontece que, lá pelas tantas, com o nível das águas bem acima do cerebelo, o mocinho radicaliza por demais: começa a pegar, abraçar e esfregar em macho que estiver por perto.

É daqueles (o leitor se lembra?) que a todo momento e a qualquer pretexto querem apertar a mão da gente – e muito demoradamente. Quando bebe então... a coisa vai para o gravíssimo. O sujeitinho chega a alisar a mão da vítima, com volúpia.

Anfóteros... Sei lá que diabo é isso.


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 129, 16/1/2000)

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O pai dizia: “Moleque, vai vender banana na feira.” Mas Hamiltão teimava em estudar comunicação social...


Telefones traiçoeiros


Ah, alma generosa é aquele sujeitinho que entorta umas no bar do amigo e quando o telefone público toca ele atende. Mocinha do outro lado do fio pede (ou ordena) que o Alma vá chamar o Petúnio, o namorado dela, ali pertinho, na esquina, quer dizer, na outra esquina do quarteirão. Até debaixo de chuva, lá vai o Alma.

Há pessoas que atendem o telefone por compulsão e depois vai ali do outro ladinho da rua na maior má vontade para chamar um monumento de mulher.

Já o cínico atende e deixa o aparelho pendurado e não vai chamar ninguém. O abusado do bocó que fez a ligação que se dane.

Ele, o cínico, tem razão. Eu, por exemplo, só gosto de atender nas regências indireta e direta, ou seja, atendo ao telefone as damas de minha jurisdição. Esse negócio de ficar levando recadinho para macho é coisa para pau de cabeleira.

Botar na cara – digamos, por “solidariedade” – aquela coisa sebosa e fedorenta, cheia de bacilos, para outros amaciarem o caminho de uma copulazinha, eu não boto mais.

A esta altura o leitor já percebe que fui uma alma generosa. Ou, para que ninguém levante certa dúvida, um alma generosa.

Fui, sim. Até que um dia me azucrinei. É que mocinha do meu pedaço (há muitos anos, viu, vocezinha?) vivia recebendo ligações no orelhão que havia em frente da casa dela.

Adivinhe quem atendia ao chamado. O lorpa aqui, é verdade (quase incorro em modismo, escrevendo “è vero”).

Sucede, leitor folhetinesco, que eu andava meio troncho por ela, mocinha tímida cujo queijinho do céu ainda devia estar intacto na mesa posta por Deus.

Com aqueles misteriosos telefonemas, a garota começou a mudar. Pode ser loucura minha, mas ela parecia mais solta, risonha e comunicativa. O encanto havia se quebrado (será que só ele?), e a princesa ia toda saltitante se pendurar no telefone.

Senti que alguém se instalara àquela mesa e estava com o queijo e a faca na mão. Pronto, foi assim que deixei de ser guarda-orelhão.

Mas não é só de telefone público que mantenho distância. Ninguém liga mesmo pra mim... (exceto minhas filhas, claro.) Comecei o ano dispensando-me da inútil agenda.

Coleguinhas que costumam largar celular perto do meu teclado, quando saem para molhar o meato, que me perdoem. Não adianta aquele trinzinho irritante insistir que não atendo.

Acredite, leitor informaticamente informado: não sei mexer na coisinha, quer dizer... Ah, você sabe. Mas o atraso de vida não é somente meu.

Veja, por exemplo, o caso de Roni Abreu Fernandes, que não sabe lidar com celulares, apesar de ser operador de máquinas.

Estava ele lá no Titanic Chopp, no Conjunto Dona Íris, todo cheio de panca, a golejar, quando foi, segundo o jornal que noticiou o fato, “abordado por ocupantes de uma radiopatrulha”.

Quando entabulava “rápida conversa” (o jornal não explicou, mas o moço deveria estar de costas, mãos na parede e pernas abertas – é o que afirma a minha larga experiência com os homens da tolerância-zero-só-na-periferia), quando entabulava “rápida conversa” com o iceberg, digo, com o sargento Joaquim Rodrigues Ferreira Júnior, o desgraçado de um celular tocou.

RAF, que é aéreo mas não é força, tentou desajeitadamente atender (depois que teve permissão para sair da posição de lagartixa, naturalmente).

Ficou cutucando aquela coisinha mais ensebada que maçaneta de mictório, e não acertava com o botão que deixaria o pretinho ligado.

O sargento Ferreira Júnior pegou o aparelho (não sei se delicadamente...) e atendeu. Com isso, demonstrou que, hoje, temos uma polícia preparada. Está provado: treino na Academia não se limita a balas de borracha.

O moço da Scotland Yard, digo, da pê-eme desligou o troço, olhou fleumaticamente para o pobre RAF – e tacou-lhe ordem de prisão.

É que, do ouro lado do fio (fio?), o dono do celular implorava ao suposto ladrão que lhe devolvesse o ensebadinho.

Ele contava com um ladrão de alma generosa. Só pode.


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 128, 9/1/2000)

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Em texto tortuoso, Hamiltão fala em “meandros da vida”... É quase uma viagem


Por um fio

Depois de servir mingauzinho de Mucilon aos gatos, saí de casa otimista, a marchar impávido para o trabalho.
O otimismo começou a se derreter na parada de ônibus, que não tem abrigo. Eu lá, debaixo do solão da tarde.
A catanica demorava, e não havia alternativa para mim, que pego ônibus de linhas integradas, para economizar uns níqueis.
Catanica? Era assim que o povo de minha terra dizia cata-níquel, também conhecida como marinete, a fubica do transporte coletivo.
Já no primeiro “terminal” tive que esperar outro bocadão. Não me havia desintegrado ainda. Mantinha um tiquinho de otimismo.
No ônibus, por sorte, consegui em que me sentar (um banco). Busquei o relaxamento físico e mental para recuperar um pedacinho de otimismo.
Mas o motorista sabia dirigir e passou a fazer as curvas com ímpeto quando entrou no labirinto que se chama Vila Finsocial.
Bem, esse é o nome que está na placa das casas, assim como na indicação das ruas: Rua VF-18, Rua VF-22... As gentes de lá, porém, carinhosamente, falam no masculino: “Moro no Fim Social.”
Um louco, que habita setor dito nobre, me disse que o nome verdadeiro daquele amontoado gigantesco de casas que se escoram umas nas outras é Vila (ou Setor) Maria Bahia (ou Baía) Valadão, ex-primeira-dama deste tão decantado Estado.
No entanto, ninguém que more ali sabe disso.
Bem, voltemos ao périplo. Com aquelas curvas bruscas, se houvesse mulher boa do meu lado, eu até que não me chatearia. Aliás, muito pelo contrário.
O que havia era um macho gordo com enorme saco no colo (não me refiro a bolsa escrotal, entenda-se).
Ô vida de gado... Não, mas não. Diferentemente do que se pensa, motorista não leva gado daquele jeito. Ai dele se algum bovino machucar-se pouquinha coisa que seja. Transporte de gado é feito maciamente, quase com carinho.
O moço que ia choferando achou que aquele rali do fim do mundo merecia acompanhamento musical à altura. Então, botou o som do rádio daquela máquina maravilhosa a todo o volume, sintonizado na Terra FM.
Otimismo? Falei em otimismo alguma vez, pachorrento leitor? É bem provável, pois ultimamente tento – como diz locutor de rádio goiana – ficar “de bem com a vida”. O que, diga-se de passagem, não estava fácil.
Piorar? Ah, piorou: o carro entrava nas adjacências do Friboi, que, pelo nome e pelo fedor que esparrama, deve ser um frigorífico. E naquele momento o Friboi fritava sebo.
Não queira conhecer o aroma, leitor, não queira. É de matar, e só não matou aquela carrada de gente porque pobre é duro de morrer.
Meu dia ainda não estava completo. Eu tinha pela frente o segundo “terminal” (coisa infindável), uma crônica malfazeja por redigir e uma mentira escalafobética para o atraso.
Só isso? Não, amável leitor, não. Eu haveria de encontrar, no calor fedorento da tarde, a Tolerância Zero – com aquele inegável gostinho de fascismo. É ver a cara do Homem. Coisa do demo.
Diante dos portões do Frita-Sebo (verificar no Departamento Comercial se a empresa não é anunciante), a pê-eme mandou o ônibus parar. Um elemento (o termo vai só por vingança), um elemento de sinistros óculos escuros entrou pela porta da frente.
“Os home que tiverem com sacola é pra descer.” Uns tantinhos desceram. O bravo tolerância-zero esperou, mas ninguém mais desceu. “É pra todo home descer”, reiterou, retificando, a rambótica figura.
Lá fora havia uma multidão cáqui. Um elemento (isto vai só por vingança) me obrigou a colocar as mãos na lata empoeirada do ônibus e educadamente pediu, feito um amante: “Abra um pouquinho as pernas.”
Como tenho larga experiência nesse tipo de vexame, não abri as pernas “um pouquinho”. Arreganhei. Mesmo assim, insatisfeito, o toleranciazinho-zero me chutou a parte interna do tornozelo.
Cravou a mão esquerda em meu frágil pescoço e com a direita me deu “uma geral”, como faço com as amadas. Aliás, pensando bem, a mão dele se demorou um tiquinho para o demais entre o saco e o toba.
Mas demorou mesmo foi em objeto que havia no bolso esquerdo da calça. Alvissarando para os colegas, ordenou que eu botasse para fora o troço suspeito.
De repente cercado de cáqui, tirei da algibeira o estojo de fio dental, cujo desgastado rótulo anunciava: “Reach – extrafino”.
Estendi-o ao policial, debochando: “É uma coisa muito perigosa.” Ele aceitou a suposta ironia esportivamente, como sinal dos novos tempos.
Foi por um fio, leitor intimorato. Foi. O elemento (vai, vai), inexperiente, não abriu o estojo.
Ora, então. Pelos meandros da vida, acabei por chegar otimista ao local de trabalho.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 130, 23/1/2000)

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A aura romântica do banditismo, o glamour que rompe cadeias e o jornalismo “engajado”...


A musa encarcerada


[Cronologia de um sequestro de 94 dias (segundo a Folha de S.Paulo):16.dez.98 Welington José de Camargo é sequestrado, às 22h40, em sua casa, em Goiânia, por quatro homens armados / 21.dez.98 – Os sequestradores fazem o primeiro contato com a família. Welington conversa com seu irmão Emanoel de Camargo por telefone e diz que está bem / 6.jan.99 – O advogado da família Camargo, Paulo Viana, informa que os sequestradores pediram US$ 5 milhões pelo resgate de Welington / 7.jan.99 – O refém envia carta à família / 21.jan.99 – Sequestradores reduzem valor do resgate para US$ 3 milhões / 12.mar.99 – O apresentador Ratinho propõe a criação de um 0900 para levantar dinheiro e pagar o resgate de US$ 3 milhões. Segundo o secretário da Segurança Pública de Goiás, a atitude seria um recuo no caso, já que os sequestradores teriam aceitado a quantia de US$ 300 mil / 13.mar.99 – De madrugada, os sequestradores enviam à retransmissora do SBT em Goiânia um pedaço de orelha e um bilhete, supostamente escrito pelo refém, pedindo agilidade nas negociações / 14.mar.99 – Ratinho pede desculpas no ar e diz que se afasta do caso / 15.mar.99 – Exame comprova que pedaço de orelha é de Welington / 17.mar.99 – Um pacote com jornais com reportagens sobre o sequestro e um bilhete é deixado, por volta das 6h30, em frente ao clube recreativo Telegoiás, a 700 metros da sede do Grupo Anti-Sequestro do Estado / 18.mar.99 – A polícia divulga retrato falado da mulher que deixou o pacote em frente ao clube recreativo / 20.mar.99 – A família de Welington paga o resgate de US$ 300 mil / 21.mar.99 – Welington é deixado pelos sequestrados em um buraco, a 150 metros de uma estrada vicinal. O local fica entre as cidades de Goiânia e Guapó”]


Como diria a macróbia tia de Stanislaw Ponte Preta, em mulher não se bate nem com uma flor, mesmo porque não adianta nada.

Mulher de verdade reconhece e retribui afetuosas atenções de um verdadeiro cavalheiro. Eis o testemunho de uma delas: “Ele é diferente, romântico e carinhoso.”

Quem diz isso é mocinha de 19 anos chamada Tatiane Martins de Souza, em entrevista exclusiva (coitado do The New York Times, com aquelas coletivas de Hillary Clinton) ao Diário da Manhã. Belas fotos produzidas por meu amigo Edílson enfeitam a edição do dia 21.

O cavalheiro merecedor de tão terno reconhecimento tem currículo invejável. Num resuminho: assaltante de banco, sequestrador, líder de duas rebeliões de presos, cortador de orelha com faca rombuda e sem anestesia...

Enfim, um self-made-man da mais nobre estirpe que é, acima de tudo, carinhoso, como atesta a mocinha “romântica, glamourosa e encantadora” – para usar aqui os adjetivos que abrem o laudatório texto da reportagem.

Pelo visto, o entrevistador não se fia muito nos carinhos do Osmarzão ou de seus amigos extramuros e procura cor-de-rosar.

Sim, leitor, Osmar Martins, homem de altos predicados, está preso. A encantadora, glamourosa e romântica musa do repórter Willy Silva também está presa.

Coitadinha, foi indiciada como coautora de um sequestro. Mas não é nada: algum promotor de cabeça raspada à Ronaldinho [hoje Ronaldo] deverá “prolatar” a sentença de absolvição e arrancar suspiro de alívio do juiz.

Quando ainda estava na Delegacia Estadual de Investigações Criminais, antes de ser transferida para a Casa de Prisão Provisória, Tatiane, segundo o jornal, conquistara algumas regalias “com o seu charme feminino”.

O deslumbrado repórter – cuja melhor fantasia sexual deve ser cair nas garras de um casal Bonnie-Clyde (o que da parte de Clyde não representaria perigo à retarguarda, já que o romântico bandido estadunidense, dizem, era broxa, algo que ninguém se arriscaria dizer a respeito do Osmarzão) –, o deslumbrado repórter enumera, alencarianamente, as “regalias” da alcova destinada à heroína.

“Tinha uma cela só para si, com cortina para o reservado e televisão exclusiva.” Além disso, a alimentação da menina “era a mesma dos policiais” (meu deus, que luxo), “com direito a sobremesa”. Depois de um dois-pontos enfático, mister Willy Silva põe a sobremesa: “frutas da estação”.

Nesse passo, a doce mocinha, provável carcereira de um paraplégico durante 95 dias, vai conseguir se tornar cliente preferencial em todas as apart-cadeias em que porventura se hospedar. Tenho certeza de que as orelhinhas dela vão ficar inteiras.

Com tanto charme e romantismo, será mais bem tratada que o suposto matador do banqueiro Edmond Safra. O diretor da penitenciária de Mônaco foi taxativo: “Aqui não falamos em prisioneiros, mas sim em clientes.”

A revista IstoÉ descreveu a cela do enfermeiro Ted Maher e citou alguma coisa de comer e beber do “cliente”: a cela tem vista para o mar, ar-condicionado, tevê a cabo, geladeira; no café da manhã, há croissants e, no almoço e no jantar, champanhe.

Bater em mulher hoje nem mesmo Jece Valadão, que se tornou evangélico e arrependido das afogadas de ganso que deu durante toda a vida. É assim: neguinho broxou, tem que virar “crente”, para compensar a frustração.

Mas Osmarzão passa a impressão de continuar ativando as baterias do zé-da-garoa [de acordo com a reforma ortográfica, palavra composta de três elementos deixou de sê-lo...]. E, segundo o testemunho da amada, é carinhoso e romântico e não deve, portanto, bater nela.

De qualquer modo, leitora de histórias românticas de crime, mesmo que sujeitos como o Clyde viril da Tatiane jurem que não batem em mulher nem com uma flor, é bom não lhes dar ouvidos. Afinal, você ainda tem muitos anos de brinco pela frente.


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 127, 31/12/1999)

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Hamiltão, eterno passageiro da agonia, fala outra vez de uma das possíveis diversões em ônibus superlotado. Mas não se trata de recomendação...


Margaret Thatcher
e a dama do lotação

A primogênita do coruja aqui diz ao telefone: “Pai, tenho assunto pra crônica.” Já que, sob pressão de leitores, tenho que voltar a esta página, aceito a sugestão.
Em ônibus de Senador Canedo, cidade do chamado entorno de Goiânia – assim como mulheres são o entorno de mim (ah, quem dera...) –, uma dama de lotação aprontou o maior berreiro.
Sim: o leitor não se lembra, considerando que trato somente de efemeridades e não de efemérides, mas já relatei, em crônica do ano passado (1998, esclareço, pois não sei em que edição esta merda vai sair), o caso do sujeitinho que num ônibus premia genitalmente o traseiro de uma senhora com maridão ao lado.
Não vou perder tempo e espaço contando a história. Se o leitor estiver mesmo interessado, que adquira um exemplar do jornal com o André, que sem dúvida vai ficar putíssimo por ter de tentar localizar a crônica em 125 edições.
A mulher, que na certa não era nenhuma Margaret Thatcher... Ah, por falar na dama de ferro, que não é a do lotação: publicação inglesa que traz o sugestivo nome de Erotic Review fez pesquisa das mais relevantes. Quis saber quais eram, na opinião dos leitores, as 50 personalidades de maior sex-appeal deste milênio.
O leitor já vai adivinhando. Pois é, a Thatchona arrecadou o quarto lugar, surrando até Brigitte Bardot.
Eh inglesada de gosto miserável. Aliás, pesquisa anterior revelara que o homem inglês trepa rapidinho. Talvez – por não gostar muito ou não saber gostar da coisa – queira desincumbir-se loguinho da “tarefa”.
Agora, meu amigo... Sentir tesão por aquela estrada de ferro desativada... Acredito, sinceramente: se a pesquisa fosse entre brasileiros, resultado desses teria sido só de gozação, assim como (da mesma forma que) um dos melhores cartunistas do Brasil, Almir, do Diário da Manhã, gosta de dar uma gozada em cima da Mãe Dinah.
Peraí, Almir, peraí. Você sabe que falo no sentido de deboche. (Falo?)
Abuso sexual. Nisso é que dá o emprego abusivo de palavra-ônibus.
Ah, sim. No ônibus de Senador Canedo, a mulher que se sentira ofendida desmoralizou neguinho sofredor.
Será, pergunta-se o leitor, será que ele era um bolina desajeitado? Se o leitor realmente se faz esta pergunta é porque leu a citada crônica e aprendeu, já que nela consigno a opinião de que o ato de bolinar deve ser levado com arte.
Mas, cara, deu-se o contrário: foi a mulher que se esfregou no homem. Ela aprontou porque ele reagiu, estrilando.
A fêmea atrevida revelou-se cruel: “É o primeiro homem que vejo num ônibus que não gosta de ser roçado por mulher”, debochou em voz muito alta para que todos ouvissem.
“Esse aí é ‘diferente’”, continuou a implacável. E repetia: “É o primeiro homem num ônibus que não gosta de ser roçado por mulher.”
Ela não seria nenhuma Margaret Tatcher, pois a macacada, como se despertasse, começou a vibrar: “Roça em mim, roça em mim, roça em mim... não roça nele, roça em mim.”
O coro foi-se afinando. Não demorou e a macacada sem-vergonha já havia adaptado letra na música gravada por Leandro & Leonardo: “Roça pra mim, não roça pra ele... roça pra mim, não roça pra ele...” E lá se foi o ônibus, alegremente sacolejante.
Não sei se a ideia dada por uma de minhas filhas é aqui bem aproveitada. Aliás, as meninas ficam com essa de me dar ideias mas ainda não decidiram o que fazer com os quatro recém-paridos da Letícia, a gata de que elas me botaram para cuidar. Ô natalzão, este.
Bem. Volto a esta página triunfalmente, nos braços dos leitores. Mas sei lá.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 126, 26/12/1999)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Como certos pregadores evangélicos, Hamiltão chega à beira do autoconvencimento...


Ei-lo, o superguarda


O leitor que me perdoe por esta inaceitável falta de modéstia, mas sou um iluminado (só não digo que vivo em odor de santidade por causa do cheiro das safadagens habituais).

Quem der uma voltadinha à edição 96, de 9 de maio, deste bravo semanário, vai ler logo no começo da crônica “O superguarda de trânsito”:

“O Detran está de parabéns. Conta em seus quadros com um funcionário cujas qualidades sobrenaturais causam arrepio até neste incrédulo cronista.”

Até aí seria apenas coisa de visionário. Mas agora não. Achei o funcionário, leitor. Achei o divinal soldado das hostes celestiais.

Sim, angelical leitor, em verdade vos digo (releve-me o deslocado pronome), em verdade vos digo: ele não está a serviço do Detran, de um simples Detran, de um Detranzinho qualquer.

Está – como cheguei à conclusão na citada crônica – a serviço de “celestial Detran”, que por sua vez está a serviço, naturalmente (ou sobrenaturalmente), do todo-poderosíssimo.

Mas o que aqui importa, leitor obcecado, é que achei o homem. Achei. E, para que você não me confunda com Mãe Dinah ou Nostradamus, revelo sem fazer charminho o nome do milico divino (aliás, a imprensa diária já o revelou há mais de uma semana): Davi Moreira.

Prometi a minhas filhas não escrever mais sobre trânsito. Isto, porém, é uma revelação, a ressaca de um alumbramento. Não tem nada a ver com o caos profano das ruas de Goiânia.

Golias, digo, Eduardo Canedo bateu com a moto na grade de proteção (proteção de quê, meu deus?) da Marginal Botafogo. Como diria cronista de fino trato, o rapaz veio a óbito.

Foi quando apareceu Davi. Ele, a bem da verdade, e a verdade vos digo, não trazia nenhuma funda ou sequer um acanhado badoque de câmara de ar de pneu de bicicleta.

Trazia algo mais terrível (assim pensaria, por exemplo, meu amigo Jaime): um bloquinho de notificação de multas.

Quando viu o cadáver estendido no asfalto, Davi, como se acabasse de sair de uma batalha do Velho Testamento para entrar em outra, não vacilou. Sacou do bloquinho, empunhou intimoratamente a esferográfica Bic e...

Multou o morto. Antes, porém, como deduz Gean Carlo, irmão de Eduardo, o guarda de anjo deve ter perguntado ao falecido pela documentação (que estava na carteira, num bolso) e não obteve resposta.

Portanto, em vez de aplicar apenas três multas (por falta de habilitação, documentação do veículo e capacete), deveria tacar-lhe mais uma – por desacato à autoridade.

Assim, ele aprenderia a não cometer infrações e, ainda por cima, ser malcriado.

Afinal, como dizem os mestres ideólogos da tolerância-zero, a ação da polícia é antes de tudo educativa, preventiva. Uma espécie de vaselina, digamos assim. Como no sertanejo de Euclides da Cunha: antes de tudo.

O profeta, digo, o major Carlos Antônio Elias, assessor de comunicação do Além, digo, da Polícia Militar, é categórico: “Não é dever do policial informar se o rapaz estava morto ou não.”

No caso de Eduardo, cujo corpo visivelmente sem vida repousava na triste Marginal Botafogo, não havia laudo médico.

Bom senso é coisa de indisciplinado. Claro. O dr. São Pedro – pê-agá-dê em chaves e fechaduras e possivelmente em medicina legal – não gostaria que simples meganha celestial passasse por cima de sua autoridade.

O mago, digo, o presidente da Junta Administrativa de Recursos a Infrações, Itamar dos Reis, deu, de acordo com a imprensa, esta valiosa informação: a multa é aplicada no veículo, não no motorista.

Tá explicado. A moto é quem vai pagar.

O leitor há de convir: apesar desta cara de bobo, sou iluminado. Só espero, agasalhado em minha franciscana humildade, que não haja peregrinações à sede da Gazeta. Mesmo porque os meus estigmas têm gosto de ketchup.


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 110, 15/8/1999)