quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Hamiltão, eterno passageiro da agonia, fala outra vez de uma das possíveis diversões em ônibus superlotado. Mas não se trata de recomendação...


Margaret Thatcher
e a dama do lotação

A primogênita do coruja aqui diz ao telefone: “Pai, tenho assunto pra crônica.” Já que, sob pressão de leitores, tenho que voltar a esta página, aceito a sugestão.
Em ônibus de Senador Canedo, cidade do chamado entorno de Goiânia – assim como mulheres são o entorno de mim (ah, quem dera...) –, uma dama de lotação aprontou o maior berreiro.
Sim: o leitor não se lembra, considerando que trato somente de efemeridades e não de efemérides, mas já relatei, em crônica do ano passado (1998, esclareço, pois não sei em que edição esta merda vai sair), o caso do sujeitinho que num ônibus premia genitalmente o traseiro de uma senhora com maridão ao lado.
Não vou perder tempo e espaço contando a história. Se o leitor estiver mesmo interessado, que adquira um exemplar do jornal com o André, que sem dúvida vai ficar putíssimo por ter de tentar localizar a crônica em 125 edições.
A mulher, que na certa não era nenhuma Margaret Thatcher... Ah, por falar na dama de ferro, que não é a do lotação: publicação inglesa que traz o sugestivo nome de Erotic Review fez pesquisa das mais relevantes. Quis saber quais eram, na opinião dos leitores, as 50 personalidades de maior sex-appeal deste milênio.
O leitor já vai adivinhando. Pois é, a Thatchona arrecadou o quarto lugar, surrando até Brigitte Bardot.
Eh inglesada de gosto miserável. Aliás, pesquisa anterior revelara que o homem inglês trepa rapidinho. Talvez – por não gostar muito ou não saber gostar da coisa – queira desincumbir-se loguinho da “tarefa”.
Agora, meu amigo... Sentir tesão por aquela estrada de ferro desativada... Acredito, sinceramente: se a pesquisa fosse entre brasileiros, resultado desses teria sido só de gozação, assim como (da mesma forma que) um dos melhores cartunistas do Brasil, Almir, do Diário da Manhã, gosta de dar uma gozada em cima da Mãe Dinah.
Peraí, Almir, peraí. Você sabe que falo no sentido de deboche. (Falo?)
Abuso sexual. Nisso é que dá o emprego abusivo de palavra-ônibus.
Ah, sim. No ônibus de Senador Canedo, a mulher que se sentira ofendida desmoralizou neguinho sofredor.
Será, pergunta-se o leitor, será que ele era um bolina desajeitado? Se o leitor realmente se faz esta pergunta é porque leu a citada crônica e aprendeu, já que nela consigno a opinião de que o ato de bolinar deve ser levado com arte.
Mas, cara, deu-se o contrário: foi a mulher que se esfregou no homem. Ela aprontou porque ele reagiu, estrilando.
A fêmea atrevida revelou-se cruel: “É o primeiro homem que vejo num ônibus que não gosta de ser roçado por mulher”, debochou em voz muito alta para que todos ouvissem.
“Esse aí é ‘diferente’”, continuou a implacável. E repetia: “É o primeiro homem num ônibus que não gosta de ser roçado por mulher.”
Ela não seria nenhuma Margaret Tatcher, pois a macacada, como se despertasse, começou a vibrar: “Roça em mim, roça em mim, roça em mim... não roça nele, roça em mim.”
O coro foi-se afinando. Não demorou e a macacada sem-vergonha já havia adaptado letra na música gravada por Leandro & Leonardo: “Roça pra mim, não roça pra ele... roça pra mim, não roça pra ele...” E lá se foi o ônibus, alegremente sacolejante.
Não sei se a ideia dada por uma de minhas filhas é aqui bem aproveitada. Aliás, as meninas ficam com essa de me dar ideias mas ainda não decidiram o que fazer com os quatro recém-paridos da Letícia, a gata de que elas me botaram para cuidar. Ô natalzão, este.
Bem. Volto a esta página triunfalmente, nos braços dos leitores. Mas sei lá.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 126, 26/12/1999)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Como certos pregadores evangélicos, Hamiltão chega à beira do autoconvencimento...


Ei-lo, o superguarda


O leitor que me perdoe por esta inaceitável falta de modéstia, mas sou um iluminado (só não digo que vivo em odor de santidade por causa do cheiro das safadagens habituais).

Quem der uma voltadinha à edição 96, de 9 de maio, deste bravo semanário, vai ler logo no começo da crônica “O superguarda de trânsito”:

“O Detran está de parabéns. Conta em seus quadros com um funcionário cujas qualidades sobrenaturais causam arrepio até neste incrédulo cronista.”

Até aí seria apenas coisa de visionário. Mas agora não. Achei o funcionário, leitor. Achei o divinal soldado das hostes celestiais.

Sim, angelical leitor, em verdade vos digo (releve-me o deslocado pronome), em verdade vos digo: ele não está a serviço do Detran, de um simples Detran, de um Detranzinho qualquer.

Está – como cheguei à conclusão na citada crônica – a serviço de “celestial Detran”, que por sua vez está a serviço, naturalmente (ou sobrenaturalmente), do todo-poderosíssimo.

Mas o que aqui importa, leitor obcecado, é que achei o homem. Achei. E, para que você não me confunda com Mãe Dinah ou Nostradamus, revelo sem fazer charminho o nome do milico divino (aliás, a imprensa diária já o revelou há mais de uma semana): Davi Moreira.

Prometi a minhas filhas não escrever mais sobre trânsito. Isto, porém, é uma revelação, a ressaca de um alumbramento. Não tem nada a ver com o caos profano das ruas de Goiânia.

Golias, digo, Eduardo Canedo bateu com a moto na grade de proteção (proteção de quê, meu deus?) da Marginal Botafogo. Como diria cronista de fino trato, o rapaz veio a óbito.

Foi quando apareceu Davi. Ele, a bem da verdade, e a verdade vos digo, não trazia nenhuma funda ou sequer um acanhado badoque de câmara de ar de pneu de bicicleta.

Trazia algo mais terrível (assim pensaria, por exemplo, meu amigo Jaime): um bloquinho de notificação de multas.

Quando viu o cadáver estendido no asfalto, Davi, como se acabasse de sair de uma batalha do Velho Testamento para entrar em outra, não vacilou. Sacou do bloquinho, empunhou intimoratamente a esferográfica Bic e...

Multou o morto. Antes, porém, como deduz Gean Carlo, irmão de Eduardo, o guarda de anjo deve ter perguntado ao falecido pela documentação (que estava na carteira, num bolso) e não obteve resposta.

Portanto, em vez de aplicar apenas três multas (por falta de habilitação, documentação do veículo e capacete), deveria tacar-lhe mais uma – por desacato à autoridade.

Assim, ele aprenderia a não cometer infrações e, ainda por cima, ser malcriado.

Afinal, como dizem os mestres ideólogos da tolerância-zero, a ação da polícia é antes de tudo educativa, preventiva. Uma espécie de vaselina, digamos assim. Como no sertanejo de Euclides da Cunha: antes de tudo.

O profeta, digo, o major Carlos Antônio Elias, assessor de comunicação do Além, digo, da Polícia Militar, é categórico: “Não é dever do policial informar se o rapaz estava morto ou não.”

No caso de Eduardo, cujo corpo visivelmente sem vida repousava na triste Marginal Botafogo, não havia laudo médico.

Bom senso é coisa de indisciplinado. Claro. O dr. São Pedro – pê-agá-dê em chaves e fechaduras e possivelmente em medicina legal – não gostaria que simples meganha celestial passasse por cima de sua autoridade.

O mago, digo, o presidente da Junta Administrativa de Recursos a Infrações, Itamar dos Reis, deu, de acordo com a imprensa, esta valiosa informação: a multa é aplicada no veículo, não no motorista.

Tá explicado. A moto é quem vai pagar.

O leitor há de convir: apesar desta cara de bobo, sou iluminado. Só espero, agasalhado em minha franciscana humildade, que não haja peregrinações à sede da Gazeta. Mesmo porque os meus estigmas têm gosto de ketchup.


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 110, 15/8/1999)

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Um recebedor de bilhetes com vocação para herói e um possível assassino “flertam” no escurinho do cinema

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Miopia na sessão da tarde

[Clima” histórico – O crime aconteceu na noite de 3 de novembro de 1999. Meira, armado com uma submetralhadora 9 mm, atirou contra pessoas que assistiam ao filme Clube da Luta, na sala 5 do cinema do Murumbi Shopping, zona sul de São Paulo.
(...)
Na sala de cinema estavam mais de 60 pessoas. Meira foi denunciado em 1999 pelo Ministério Público por três homicídios e 36 tentativas, já que o pente da submetralhadora usada por ele tinha capacidade para 40 balas. Porém, um dos tiros havia sido disparado contra o espelho do banheiro do shopping. – Folha Online, 3/6/2004]

Perdi os óculos. Mato-me de raiva por isso. Os milhões de leitores que me leem e usam óculos sabem o quanto é terrível ficar sem as muletas da retina.
Poderia apenas ficar contrariado se, por acidente, tivesse quebrado a armação ou as lentes, ou tudo. Mas estou puto, mesmissimamente, é por ter perdido coisa a que estava tão habituado.
Aliás, perder qualquer coisa me arrasa. Fico furioso comigo, xingo-me a todo momento, não consigo esquecer esta merda de imperfeição que sou e brigo com quem me venha falar de autoestima.
Poxa vida, se eu fosse como a cantora Marina Lima... Era só posar nu. A autoestima, então, pipocaria mil fogos de artifício, a espantar com luzes multicolores as sombras da depressão.
Mas, por falta de oportunidade, nem pousando nu estou. Bem, até que sozinho faço isso – o que não resolve o problema da rejeição, embora não haja nada de errado com a ejaculação.
(O leitor... aliás, os milhões de leitores já percebem a que ponto estou psicologicamente afetado.)
Quebrar óculos, em uma ou outra ocasião, pode mesmo fazer aflorar meu dificílimo bom humor, como aconteceu (há muitos anos, viu, vocezinha?) no Motel Esplanada, ali na Praça da Bíblia, aonde não fui declamar salmos.
Na época, um dos chefes do órgão (ô palavrinha miserável) em que eu trabalhava me levou para degustar Teacher’s numa boatinha no centro da cidade.
Ali arranjou namorada, e eu, para tirar a cara de bocó de cima da mesa, fui sambar na pista. (Timidão que não sabia dançar, enganei todo mundo com desvairada performance, iluminado pela chamada luz negra.)
Pela madrugada, o respeitável senhor resolveu ir embora e, na saída da boate, me entregou a namorada. “Agora é com você, meu chapa.” Meu deus... (Aqui caberia desalentado muxoxo, só que onomatopeia de tal manifestação ninguém nunca conseguiu a contento.)
A moça estava realmente triscando. Mal entramos no quarto do Esplanada ela se atirou para mim (para quem mais?), tirou meus óculos e os jogou na cama. Agarrou-se ao meu corpo com tanto ímpeto que lá fui eu, arrastado para o tálamo. Crac...
Sôfrego, com as costas da mão e no maior desprezo, afastei de sob a dama os destroços de minha amada luneta. Depois – mas bem depois mesmo – lembramos de rir do acidente.
A sorte do leitor, aliás, dos milhões de leitores é que enxergo bem de perto. Senão, teriam perdido o prazer de me ler neste fim de semana.
Devo esclarecer que este surto de imodéstia é resultado da insegurança que me acomete quando sem óculos. Para atravessar rua, então... Só que, aí, não fico nada arrogante.
Várias vezes acontece de, já no meio da avenida, voltar correndo para a proteção do meio-fio. Sabe-se lá se dá tempo.
Quando posso, não abro mão de um cineminha. Sem óculos, não dou o braço a torcer, só de raiva. Claro que a minha miopia não é muito acentuada.
Então, lá fui eu ao Cine Ritz 1 (ou 2; depende de que lado a gente chega). Até que estava feliz, acabara de ver as filhas, que me fizeram comprar a ração dos gatos.
Depois que passei pela portaria, com a sacola do supermercado, a insegurança me atacou forte. Não estaria eu desperdiçando o pobre dinheirinho?
Entrei na sala de projeção vacilantemente, dei alguns passos no corredor, e voltei de repente para a saída, muito com raiva de mim.
No chegar ao hall, bateu-me o óbvio pensamento: se fosse embora, perderia o dinheiro do mesmo jeito.
Então disfarcei aos olhos do moço da portaria e da moça da bonbonnière, virando subitamente para a direita e entrando no banheiro.
Lá, dei um tempinho diante do espelho e saí, a bater a sacola nas pernas, no rumo da sala de projeção.
A sessão já começava. Por causa da miopia, eu me sentei bem na frente, na sexta fileira. Fiquei ansiosamente a me inclinar para diante, como se assim as imagens se tornassem mais nítidas.
Depois de uns dez minutos de filme, na tentativa de ver melhor o melaço que escorria na tela, ergui-me de repente e fui sentar no meio da segunda fileira, colocando a sacola sobre as coxas, sozinho lá na frente.
As pessoas devem ter achado estranho. Tirante eu, todos se acomodavam a partir do meio da sala para trás. Sinal de civilização.
À certa altura, com o rabo dos olhos, divisei, à direita, o moço da portaria me observando atentamente, meio de banda. Nesse momento, mexi as pernas e, para evitar que a sacola caísse, soergui-me para segurá-la, num movimento brusco.
O moço deu um salto para trás e subiu o corredor apressadamente, em direção à entrada. Mas não passou muito tempo, e ei-lo no corredor da esquerda, a trocar rabo de olhos comigo.
Já não se ouvia o mastigar da plateia. O filme era romântico (meu deus), mas dava para sentir a tensão no ar mal-condicionado.
Assassinatos em cinema dão nisso. Fiquei o tempo todo sob vigilância, e dezenas de pessoas em suspenso.
Tudo por culpa de inocente miopia, de um pacote de ração de gato e de uma chegadinha ao banheiro. Mato-me de raiva.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 122, 28/11/1999)

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Hamiltão, sempre no limite, rememora pequenas cenas de sua vida minúscula


Antigastronomia


Deveria haver uma forma sublime de o homem se alimentar. Essa coisa prosaica de administrar bocados me desgosta profundamente. Sem falar no processo cansativo de preparar o alimento.

Na verdade, cozinhar não é tão ruim. Eu me arranjo na confecção de um trivialzinho. O diabo é que, quando termino, já perdi o apetite, seja lá o que isso for.

Inseguro quanto à dosagem do sal, a todo momento provo do que estou preparando.

Houve tempo em que não procedia assim. Foi em Manaus, quando cozinhava um arrozinho numa esfumaçada lata que antes servira de depósito de óleo comestível.

Não podia correr o risco de perder o apetite (seja lá o que isso for), pois comer, por mais abominável que fosse, era necessário. Aliás, hoje em dia vivo às voltas com a ameaça de retorno de velha anorexia.

Há momentos em que, para sustentar a enfadonha necessidade, preciso ler algo muitíssimo interessante durante o macabro ritual mastigatório. Assim, quando dou pela minha presença, percebo que comi alguma coisa.

Nos tempos manauaras, comprava (fiado) almôndegas em conserva para misturar com o arrozinho da lata.

Daqui me vejo lá, naquele quartinho de madeira arejadíssimo, de cócoras diante da espiriteira, só de cueca, a experimentar a salinidade da água que fervia com o cereal. Para não enjoar, fazia o teste apenas uma vez.

Semana passada lembrei-me daqueles tempos ao ver garotada “de rua” (isto é melhor do que “menores em situação de risco”, santa hipocrisia), na praça da antiga rodoviária, cozendo alguma coisa numa latinha esfumaçada, em trempe de pedras. Mas, pelo jeito, não havia naquilo sabor de aventura.

Acredito que a comida dos meninos devia mesmo ser gostosa. Cozido de pobre sempre me parece melhor do que prato de grã-fino. Recordo-me de certo período da infância.

Quando tinha mais ou menos 7 anos, algumas vezes saía de casa para brincar e depois ir almoçar com a família pobre dos amigos.

Nunca me esqueci de um cozido de carneiro, em delicioso molho de coloração esverdeada, que devorei junto de fogão a lenha em casa de sapé.

Outra vez, já adulto, saboreei uma galinha caipira inesquecível na região do Bico-do-Papagaio, que ainda era de Goiás.

Após a lauta refeição fui ao quintal para espairecer o barrigão pesado, e descobri de que as galinhas se alimentavam. Na roça não havia privada, e na extremidade do terreiro espalhavam-se montículos de bosta humana.

Ali as penosas se banqueteavam, biquinhos melados. Assim se explica, talvez, o muito agradável sabor do ensopado.

Há quem consiga cozinhar sem provar sequer uma vez, ou por não gostar do que prepara ou por experiência na trivialidade do cardápio.

Quando eu, com a família recém-constituída, morava naquela região onde se curte adoidado um jerimunzinho com quiabo, a mulher descobriu no mato rasteiro do minúsculo quintal uma “abobrinha verde”.

Talvez com saudade de Goiás, ela quis preparar imediatamente a abobrinha. Fiquei na dúvida: ali é terra de abobrão, de jerimum, moranga.

Não consegui convencer a mulher a deixar a “coisa” madurar para ver no que ia dar. Levantei até certa possibilidade...

A companheira picou bem picadinho o fruto enigmático, à moda da terra dela, e o meteu na panela. Temperou com capricho. Depois de pronta, a coisa ficou bonita, apetitosa.

O lorpa aqui, esquecendo-se do que aventara, encheu o prato com feijão, arroz, carne e... abobrinha.

Entrei de sola. Já na primeira colherada, que não chegou a descer goela abaixo, engulhei. Cuspi, lavei a língua com sabão, escovei o céu da boca – e nada. O forte amargor perdurou por muito tempo.

A coisa era a tal da “possibilidade”: cabaça.

Definitivamente, não creio que comer seja algo compatível com a natureza sublime do ser humano.


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 120, 14/11/1999)

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Fica a republicação deste texto como gesto solidário às pessoas que amaram – e tudo fizeram para salvar – um cachorrinho chamado Kirilov


Futrica

O nome dela era Futrica, e a coitada não futricava, não. Era cachorrinha bem-comportada. Apareceu na minha vida em momento difícil entre os mais difíceis, não faz muito.
Quando pensava que não ia mais acordar, acordei certo dia. Tudo era pesado para mim. Tomei um banho pesado. Vesti uma cueca pesada, uma camisa pesada, calcei meias e sapados pesados.
Rumei, pesando nos passos, para a porta de saída (há tanto ela deixara de ser porta também de entrada). Lá na sala, vi, na humildade obscura de um canto, a cachorrinha.
Parei e fiquei olhando para ela. Ela, deitada, queixada no chão, ficou olhando para mim.
Nunca antes na vida dois pares de olhos tão tristes se haviam encontrado.
Cheguei perto dela, e ela não arredou. Apenas a cabeça se ergueu e os olhos ficaram fixos fora de mim. É como se ela soubesse de algo como um pontapé. Parecia que, com resignação, esperava. O quê?
Pesadamente me agachei, até apoiar a bunda nos calcanhares, para examinar melhor aquele animalzinho marrom, fosco, encardido.
Foi quando senti a aspereza do couro dos sapatos e vi a ponta branca dos joelhos secos. Eu ia para a rua sem ter vestido a calça, pesada que fosse. A chave, que apanhara na estante, já estava em posição de penetrar na porta.
Ergui-me, pesadão e dolorido, sem esboçar gesto de carinho, sem dizer palavra. Voltei ao quarto para completar a indumentária.
Saí, não sei por que nem para onde, e deixei Futrica lá, ela que ainda não se chamava Futrica mas que alhures tivera um nome, talvez lembrado com saudade.
Ela, por certo, entrou em casa através de um vão na porta, no lugar em que a placa de vidro se havia soltado. Mas vinda de onde? Como? Por quê?
Embora pequena, era adulta e não muito nova, pelo que pude constatar, apesar de não entender de animais.
À noite, de volta ao lar extraviado, não dei pela cachorra. Nem me lembrava dela. Fui direto revolver lençóis e pensamentos.
Mas de manhã, ao abrir os olhos relutantes, eu a vi, deitada ao lado da enxerga, muito dona do pedaço.
Não a enxotei, mas também não dei bola para ela. (A bola a que me refiro não é aquela comidinha envenenada que a gente tem vontade de dar para o cachorro do vizinho, quer dizer, para o cão dele, que late sem motivo a noite inteira.)
Por que, assim de repente, Futrica me vem à lembrança? Acredito que seja porque o casal de gatos de que cuido passou a me seguir, como fazia ela.
Sim, leitor, você deve-se lembrar: minhas filhas me transformaram em baby-sitter de gatos. Como onde moram não podiam cuidar deles, elas me “presentearam” com a dupla miadora que literalmente não me larga o pé.
Agora os gatos deram de me seguir pelas ruas do bairro, como se fossem cães. Morro de vergonha, mas é difícil evitar. Os portões da casa são gradeados, e eles passam folgadamente por ali.
Ora vão à minha frente, saltitantes, rabos levantados, ora se deixam ficar bem para trás e depois vêm em disparada e me ultrapassam, ora se metem em lote baldio a farejar – mas jamais, para meu desespero, me perdem de vista.
Se entro numa venda para comprar qualquer coisa, eles, com a maior imponência, ficam lá fora, na calçada, sentadinhos lado a lado, até que eu saia.
Para vir trabalhar, é uma luta despistá-los. Faço de conta que vou, por exemplo, ao quintal. Ela e ele correm atrás, paro de súbito, dou uma rápida virada, desembesto-me pelo corredor do outro lado da casa e atiro-me para o portão. Às vezes dá certo.
Se deixar, eles me seguem até a parada de ônibus, em cujas redondezas podem ser atropelados. Os bichanos, com o início grã-fino de criação que tiveram, não são muito espertos fora dos limites do terreiro de casa.
Pois é, a cachorrinha, que um parente das meninas chamou de Futrica – e o nome pegou –, também me seguia pelas ruas.
Um dia, parou de me seguir. E... É duro, leitor. Acho que ela morreu de depressão pós-parto, alguma coisa assim, fora do meu entendimento.
Feito pai boboca, eu nem desconfiava que ela estivesse grávida. Uma manhã, havia dois filhotes, que logo morreram. No dia seguinte, ao voltar do trabalho, encontrei Futrica ao lado do cadáver de outro filhote.
Depois que pariu, recusava comida e ficava o tempo todo deitada no mesmo lugar, ali na varanda obumbrada, onde antigamente havia festa. E, ali, numa noite...
Foi naqueles tempos difíceis entre os mais difíceis. Não sei se fiz tudo o que podia para salvar Futrica, não sei. De qualquer forma, arrasto pela vida o peso desta consciência torturada.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 119, 7/11/1999)