quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Como certos pregadores evangélicos, Hamiltão chega à beira do autoconvencimento...


Ei-lo, o superguarda


O leitor que me perdoe por esta inaceitável falta de modéstia, mas sou um iluminado (só não digo que vivo em odor de santidade por causa do cheiro das safadagens habituais).

Quem der uma voltadinha à edição 96, de 9 de maio, deste bravo semanário, vai ler logo no começo da crônica “O superguarda de trânsito”:

“O Detran está de parabéns. Conta em seus quadros com um funcionário cujas qualidades sobrenaturais causam arrepio até neste incrédulo cronista.”

Até aí seria apenas coisa de visionário. Mas agora não. Achei o funcionário, leitor. Achei o divinal soldado das hostes celestiais.

Sim, angelical leitor, em verdade vos digo (releve-me o deslocado pronome), em verdade vos digo: ele não está a serviço do Detran, de um simples Detran, de um Detranzinho qualquer.

Está – como cheguei à conclusão na citada crônica – a serviço de “celestial Detran”, que por sua vez está a serviço, naturalmente (ou sobrenaturalmente), do todo-poderosíssimo.

Mas o que aqui importa, leitor obcecado, é que achei o homem. Achei. E, para que você não me confunda com Mãe Dinah ou Nostradamus, revelo sem fazer charminho o nome do milico divino (aliás, a imprensa diária já o revelou há mais de uma semana): Davi Moreira.

Prometi a minhas filhas não escrever mais sobre trânsito. Isto, porém, é uma revelação, a ressaca de um alumbramento. Não tem nada a ver com o caos profano das ruas de Goiânia.

Golias, digo, Eduardo Canedo bateu com a moto na grade de proteção (proteção de quê, meu deus?) da Marginal Botafogo. Como diria cronista de fino trato, o rapaz veio a óbito.

Foi quando apareceu Davi. Ele, a bem da verdade, e a verdade vos digo, não trazia nenhuma funda ou sequer um acanhado badoque de câmara de ar de pneu de bicicleta.

Trazia algo mais terrível (assim pensaria, por exemplo, meu amigo Jaime): um bloquinho de notificação de multas.

Quando viu o cadáver estendido no asfalto, Davi, como se acabasse de sair de uma batalha do Velho Testamento para entrar em outra, não vacilou. Sacou do bloquinho, empunhou intimoratamente a esferográfica Bic e...

Multou o morto. Antes, porém, como deduz Gean Carlo, irmão de Eduardo, o guarda de anjo deve ter perguntado ao falecido pela documentação (que estava na carteira, num bolso) e não obteve resposta.

Portanto, em vez de aplicar apenas três multas (por falta de habilitação, documentação do veículo e capacete), deveria tacar-lhe mais uma – por desacato à autoridade.

Assim, ele aprenderia a não cometer infrações e, ainda por cima, ser malcriado.

Afinal, como dizem os mestres ideólogos da tolerância-zero, a ação da polícia é antes de tudo educativa, preventiva. Uma espécie de vaselina, digamos assim. Como no sertanejo de Euclides da Cunha: antes de tudo.

O profeta, digo, o major Carlos Antônio Elias, assessor de comunicação do Além, digo, da Polícia Militar, é categórico: “Não é dever do policial informar se o rapaz estava morto ou não.”

No caso de Eduardo, cujo corpo visivelmente sem vida repousava na triste Marginal Botafogo, não havia laudo médico.

Bom senso é coisa de indisciplinado. Claro. O dr. São Pedro – pê-agá-dê em chaves e fechaduras e possivelmente em medicina legal – não gostaria que simples meganha celestial passasse por cima de sua autoridade.

O mago, digo, o presidente da Junta Administrativa de Recursos a Infrações, Itamar dos Reis, deu, de acordo com a imprensa, esta valiosa informação: a multa é aplicada no veículo, não no motorista.

Tá explicado. A moto é quem vai pagar.

O leitor há de convir: apesar desta cara de bobo, sou iluminado. Só espero, agasalhado em minha franciscana humildade, que não haja peregrinações à sede da Gazeta. Mesmo porque os meus estigmas têm gosto de ketchup.


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 110, 15/8/1999)

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