quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A aura romântica do banditismo, o glamour que rompe cadeias e o jornalismo “engajado”...


A musa encarcerada


[Cronologia de um sequestro de 94 dias (segundo a Folha de S.Paulo):16.dez.98 Welington José de Camargo é sequestrado, às 22h40, em sua casa, em Goiânia, por quatro homens armados / 21.dez.98 – Os sequestradores fazem o primeiro contato com a família. Welington conversa com seu irmão Emanoel de Camargo por telefone e diz que está bem / 6.jan.99 – O advogado da família Camargo, Paulo Viana, informa que os sequestradores pediram US$ 5 milhões pelo resgate de Welington / 7.jan.99 – O refém envia carta à família / 21.jan.99 – Sequestradores reduzem valor do resgate para US$ 3 milhões / 12.mar.99 – O apresentador Ratinho propõe a criação de um 0900 para levantar dinheiro e pagar o resgate de US$ 3 milhões. Segundo o secretário da Segurança Pública de Goiás, a atitude seria um recuo no caso, já que os sequestradores teriam aceitado a quantia de US$ 300 mil / 13.mar.99 – De madrugada, os sequestradores enviam à retransmissora do SBT em Goiânia um pedaço de orelha e um bilhete, supostamente escrito pelo refém, pedindo agilidade nas negociações / 14.mar.99 – Ratinho pede desculpas no ar e diz que se afasta do caso / 15.mar.99 – Exame comprova que pedaço de orelha é de Welington / 17.mar.99 – Um pacote com jornais com reportagens sobre o sequestro e um bilhete é deixado, por volta das 6h30, em frente ao clube recreativo Telegoiás, a 700 metros da sede do Grupo Anti-Sequestro do Estado / 18.mar.99 – A polícia divulga retrato falado da mulher que deixou o pacote em frente ao clube recreativo / 20.mar.99 – A família de Welington paga o resgate de US$ 300 mil / 21.mar.99 – Welington é deixado pelos sequestrados em um buraco, a 150 metros de uma estrada vicinal. O local fica entre as cidades de Goiânia e Guapó”]


Como diria a macróbia tia de Stanislaw Ponte Preta, em mulher não se bate nem com uma flor, mesmo porque não adianta nada.

Mulher de verdade reconhece e retribui afetuosas atenções de um verdadeiro cavalheiro. Eis o testemunho de uma delas: “Ele é diferente, romântico e carinhoso.”

Quem diz isso é mocinha de 19 anos chamada Tatiane Martins de Souza, em entrevista exclusiva (coitado do The New York Times, com aquelas coletivas de Hillary Clinton) ao Diário da Manhã. Belas fotos produzidas por meu amigo Edílson enfeitam a edição do dia 21.

O cavalheiro merecedor de tão terno reconhecimento tem currículo invejável. Num resuminho: assaltante de banco, sequestrador, líder de duas rebeliões de presos, cortador de orelha com faca rombuda e sem anestesia...

Enfim, um self-made-man da mais nobre estirpe que é, acima de tudo, carinhoso, como atesta a mocinha “romântica, glamourosa e encantadora” – para usar aqui os adjetivos que abrem o laudatório texto da reportagem.

Pelo visto, o entrevistador não se fia muito nos carinhos do Osmarzão ou de seus amigos extramuros e procura cor-de-rosar.

Sim, leitor, Osmar Martins, homem de altos predicados, está preso. A encantadora, glamourosa e romântica musa do repórter Willy Silva também está presa.

Coitadinha, foi indiciada como coautora de um sequestro. Mas não é nada: algum promotor de cabeça raspada à Ronaldinho [hoje Ronaldo] deverá “prolatar” a sentença de absolvição e arrancar suspiro de alívio do juiz.

Quando ainda estava na Delegacia Estadual de Investigações Criminais, antes de ser transferida para a Casa de Prisão Provisória, Tatiane, segundo o jornal, conquistara algumas regalias “com o seu charme feminino”.

O deslumbrado repórter – cuja melhor fantasia sexual deve ser cair nas garras de um casal Bonnie-Clyde (o que da parte de Clyde não representaria perigo à retarguarda, já que o romântico bandido estadunidense, dizem, era broxa, algo que ninguém se arriscaria dizer a respeito do Osmarzão) –, o deslumbrado repórter enumera, alencarianamente, as “regalias” da alcova destinada à heroína.

“Tinha uma cela só para si, com cortina para o reservado e televisão exclusiva.” Além disso, a alimentação da menina “era a mesma dos policiais” (meu deus, que luxo), “com direito a sobremesa”. Depois de um dois-pontos enfático, mister Willy Silva põe a sobremesa: “frutas da estação”.

Nesse passo, a doce mocinha, provável carcereira de um paraplégico durante 95 dias, vai conseguir se tornar cliente preferencial em todas as apart-cadeias em que porventura se hospedar. Tenho certeza de que as orelhinhas dela vão ficar inteiras.

Com tanto charme e romantismo, será mais bem tratada que o suposto matador do banqueiro Edmond Safra. O diretor da penitenciária de Mônaco foi taxativo: “Aqui não falamos em prisioneiros, mas sim em clientes.”

A revista IstoÉ descreveu a cela do enfermeiro Ted Maher e citou alguma coisa de comer e beber do “cliente”: a cela tem vista para o mar, ar-condicionado, tevê a cabo, geladeira; no café da manhã, há croissants e, no almoço e no jantar, champanhe.

Bater em mulher hoje nem mesmo Jece Valadão, que se tornou evangélico e arrependido das afogadas de ganso que deu durante toda a vida. É assim: neguinho broxou, tem que virar “crente”, para compensar a frustração.

Mas Osmarzão passa a impressão de continuar ativando as baterias do zé-da-garoa [de acordo com a reforma ortográfica, palavra composta de três elementos deixou de sê-lo...]. E, segundo o testemunho da amada, é carinhoso e romântico e não deve, portanto, bater nela.

De qualquer modo, leitora de histórias românticas de crime, mesmo que sujeitos como o Clyde viril da Tatiane jurem que não batem em mulher nem com uma flor, é bom não lhes dar ouvidos. Afinal, você ainda tem muitos anos de brinco pela frente.


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 127, 31/12/1999)

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