quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Hamiltão desce ao nível do chão: sapatos, meias e lixo a céu aberto com camisinhas lambrecadas...


A nudez castigada

Não é preciso que você tenha calo seco em sapato apertado. Depois de uma caminhada de quilômetros, que gostoso tirar sapatos e meias.
De qualquer forma, é gostoso ficar com os pés nus em tardes tépidas, sozinho em casa. Ou com o corpo todo nu, só ou ao lado de cheirosa mulher. É o conforto.
Ah, o conforto. É por causa dele que detesto camisinha.
Quando digo que não caibo nessas porcarias de borracha que se vendem em farmácias e portarias de hotel, há quem pense que faço apologia de minha dotação.
Nada disso. Sujeito modesto, qualquer tamanho me serve quando se trata de amar. Calço sempre as medidas da amada.
Detesto me imaginar atrapalhado na hora de vestir o maldito preservativo. (Antigamente camisinha era palavrão; mocinhos de fino trato enchiam a boca de camisa de vênus, discretamente, em voz baixa.)
O uso da coisa vem de longe. Dizem que os primeiros preservativos para homem eram feitos de couro de boi.
Coitada da mulher, arranhada no mais fundo de si por costuras e dobras de couro curtido, num atribulado vaivém de macho com dificuldade para gozar.
O uso não é novo, não. Lembro do lixo da Peru, quando menino em São Paulo.
“Peru” era o apelido secreto que a meninada da rua botou numa mulher grandona e vermelha que passava os dias gastando camisinha com os amigos do marido, enquanto o infeliz mourejava em alguma fábrica de sabonete.
A meninada, empunhando varinhas, todo dia ia garimpar o lixo da Peru. Incrédulo leitor, pela quantidade de borracha lambrecada que se pescava, a Peru escolhia parceiros à altura de sua (dela) voracidade sexual.
Camisinha, às vezes, proporciona algo de bom. Por exemplo: quando a mulher oferece ajuda na hora de colocar a enroladíssima borracha e se mete a criativa. Até aí tudo bem, muito bem, muito bom, delicioso, deliciosíssimo.
O chato é depois, quando você vai beijar a amada, aquele gostinho de lubrificante...
Moda. Moda é possível até nos domínios do preservativo. Na Holanda foi lançada a camisinha “baggy”, na onda das calças que são mais folgadas nas pernas.
A borrachinha antipática teria formato mais largo, com elástico para estrangular o zé-da-garoa pela raiz.
O fabricante promete conforto. Sei não, leitor entusiasmado, sei não. Conforto para mim é algo mais que uma vestimenta estranha. Já pensou? A gente apresentar aquela coisa malvestida aos olhos da amada, com um coitadinho lá dentro, estrangulado, sufocado.
O laboratório do “invento” batizou o troço de Ezon, palavra cuja origem seria “easy on”, que em português é “entra fácil”. Entra fácil...
Para você curtir o conforto de estar com os pés nus não é preciso que tenha calo seco e sapatos estreitos. Mas há gente que faz a coisa por modismo.
Numa sexta-feira, depois de eu ter zanzado o dia todo pelo centro do Rio, na neblina, em dedicado trabalho de office-boy, meu chefe me convida para jantar.
Sodré queria que eu conhecesse a mulher dele, que depois descobri ser admiradora dos costumes japoneses.
Para pisar o sagrado chão daquele lar, eu tinha que tirar os sapatos. Fui atacado por imensa vontade de sair correndo rua acima.
Havia consumido a sola dos sapatos no ingrato trabalho de ir a bancos e repartições públicas, de percorrer ruas, largos e becos. E agora me encontrava ali, carimbando com buracos o tapete da casa do chefe.
Isso não era nada. O lépido Sodré já estava só de meias, e era daquele jeito que eu teria de ficar. Mas como?
Em cada pé, tinha apenas meia meia. Até hoje me vejo ali, naquela sala arrumadinha, vestindo cano de meia, entrededos cheios de preta e fétida lama...
Não, leitor cruelmente risonho, aquilo não tinha nada de confortável.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 61, 31/5/1998)

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Se a crassa humanidade tivesse lido e assimilado os sábios ensinamentos do Hamiltão, não haveria gripe suína


Uma campanha

muito educativa

Pode parecer que não é coisa de homem sério, mas até que eu gosto de poesia. Hoje, no banheiro, lembrei-me de um poema que vi afixado em um posto de vacinação em Porto Alegre, se não me engano.
Não me lembro bem da cidade, mas do poema não me esqueço sequer de um verso: “Depois da privada, / mão bem lavada.”
Lavar as mãos, antes ou depois. Caixa de banco, por exemplo (desde que não seja eletrônico), sempre deve fazê-lo antes quando se tratar de expelir apenas líquido. (Isto não quer dizer que ele não o tenha que fazer depois, por via das dúvidas e do esmegma.)
Principalmente caixa que trabalha em posto de arrecadação de tarifas de água e luz, já que passa o tempo todo mexendo com aquelas notinhas pobres, ensebadas.
Nesse caso, tratando-se somente de líquido, eu o faço antes e depois. Não é que veja necessidade de lavar a mão após tocar na parte mais limpa do meu corpo, bem protegida e resguardada.
É que, civilizadíssimo, dou sempre descarga, e aquele botãozinho (o que fica acima do vaso – e na parede) é mais que suspeito.
Conheci professor de biologia que afirmava que esse negócio de lavar mão depois da privada, mesmo em se tratando de sólido, é pura paranoia. Ele não cogitava sequer na possibilidade de um acidente, digamos, diarreico.
Era por isso, confesso, que quando ele me estendia a mão para cálido cumprimento eu olhava para o lado e para cima, ocupadíssimo em coçar o hemisfério direito da cabeça...
É, leitor, eu tinha que aderir a alguma campanha educativa. É o destino. Só não adiro a campanha por uso de camisinha, por exemplo. Não sou famoso nem ganho cachê de multinacional. Além disso, sou honesto.
Os fabricantes dão garantia de segurança, mas, pelos pipocos de que tenho sido testemunha de muito perto... Sem falar na lorota de tamanho único para aquela coisinha liliputiana, meia-coronha.
Como dizia um irmão, a melhor amiga do homem é a mão. E a mais segura, principalmente quando limpa.
Mas não ficaria bem, não é verdade?, sujeitinho aparecer na televisão espalmando a mão cheia de dedos, como se estivesse em campanha eleitoral: “Faça sexo seguro...” (O poético leitor pode até criar uma rima perfeita, se quiser.)
Você já leu bula de camisinha? Já pensou o que é desembalar o produto, assestar a lupa e começar a tentar decifrar aquelas letrinhas exatamente naquele momento?
Não há, porém, que reclamar. É dever do cidadão ler a bula antes da aplicação de qualquer produto. Ou da aplicação de qualquer coisa com o produto. Se der tempo...
Realmente, já que não tenho coisa melhor para fazer, vou aderir a uma campanha de esclarecimento. Lave a mão antes de apertar a minha.
Você, fiel leitor, sabe que sou um cara sensível, até mesmo – como diria o professor – paranoico. Não sei se é porque trabalhei em laboratório, mas meu míope olhar funciona como lente de microscópio.
Convenhamos. Existe gente que não se localiza. Estou lá no boteco, às tantas e às tontas, entra um amigo e me saúda de longe enquanto se encaminha para o mictório.
Depois sai todo lépido e me estende aquela mão seca, quente (não foi lavada), que acabou de empalmar o eventual copulador. Para que esse efusivo cumprimento se já me havia acenado e saudado com um sonoro “Olá, garotão!”?
O pior é que o sujeito, quase com deleite, prende demoradamente a mão do infeliz cumprimentado.
Leitor asséptico, vamos aderir à campanha do lava-mão. Pelo menos entre amigos mais próximos, aqueles gentilíssimos cavalheiros que gostam de segurar na nossa depois de cada micção, a qualquer pretexto.
Existe quem não gosta mesmo de usar sabonete. O tablete perfumado chega a mofar no abandono da pia.
Certos profissionais, no entanto, com paranoia ou sem paranoia, deviam recorrer a esse singelo hábito de higiene. Mesmo depois de simples desmelecada.
Havia um barbeiro lá na minha terra que era um tipo tão popular que, se fosse candidato a vereador, seria eleito prefeito.
Ainda não havia máquina elétrica e, como o homem caprichava, meu coco ficava um tempão debaixo daquele cleque-cleque, até que só restasse um quadrilátero de cabelo no alto da testa.
Ele zerava meu cabelo em tarde quente, sufocante.
O simpático profissional ainda não tinha terminado o trabalho quando, de repente, soltou um gemido e, segurando a barriga, aflito, correu para os fundos da casa em que ficava a barbearia.
Depois que voltou, desculpou-se, dizendo não saber o que havia comido para ser atacado por aquela súbita caganeira. E, cantarolando, continuou no cleque-cleque, alisando com pente e mão o resto de cabelo.
E ali estava eu, impávido, aspirando aquele cheirinho de bosta...
Sim, leitor atento, eu falava de poesia. E de poesia engajada. Não sei se você se lembra desta expressão. Poesia engajada...

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 57, 3/5/1998)

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O ínclito autor às vezes se torna implicante. Mas a comunidade evangélica há de relevar

Cantigas de espantar demônios

A mulher, com sebosos cabelos longos, sentada com bíblia no colo, abriu o hinário que meteram nas entranhas dela.
Lúbrico leitor, não dê uma de revisor dislético. Leia direito. Os cabelos da mulher eram sebosos mesmo, e não sedosos.
Como eu dizia, a matrona começou a cantar hinos. Até aí tudo bem. Acontece que aquele berreiro era dentro de um ônibus lotado de sofredores estremunhados a caminho do trabalho, fazendo alongamento na barra do teto, numa tamanha segunda-feira.
Desafinada, quase histérica, cantando plágios de músicas invertebradas, com letras metidas a paulada por algum ambicioso “jovem evangélico”, a mulher na certa estava querendo-nos “converter”.
Ou, quem sabe, limpar aquela atmosfera carregada de demônios, cheia de curvas glúteas e baixos-ventres indecentes por natureza.
Se a desgraçada fosse um rádio, você poderia mudar de estação ou, melhor ainda, desligar, já que rádio agora, quando não joga no ar gritos de desvairado, toca plágios.
Rádio é bom, tem seus momentos. Imagine, leitor caseiro, domingo pesadão, depois do almoço empurrado por cima do cervejal do estômago, televisão ligada na baboseira de sempre. Só televisão ligada? Não.
O marido está lá, atropelado por um bermudão, as esquálidas e peludas pernas estiradas no tamborete, e o rádio portátil na coxa ligado num jogo de futebol. E jogo de futebol narrado por locutor goiano, com aquele sotaque ecoante de ermos e gerais.
O sujeitinho queria ser simultâneo. Acompanhar o jogo do Goiás e ver a banheira do Gugu. Banheira? Como diria um amigo, aquilo está mais para saboneteira.
Mas a mulher queria era ouvir o papo estimulante do Liberato com um garotinho em um táxi. Já pensou? Garotinho de 8 anos de idade andando sozinho de táxi em São Paulo, com motorista nítida e horrivelmente maquiado.
Paixão não se discute. A mulher se levanta, rodopiando os quartos, pega o rádio do torcedor e lança o repto: “Você quer ver banheira, é? Pois vem cá!”
Vai aos fundos da casa e mete o rádio no taque de roupas. Exatamente na hora dos comentários. Afogou Kajuru em caldo de cueca.
Se os ônibus de meu bairro fossem equipados com radiodifusor, como alguns de bairros com inexplicáveis privilégios, já seria de enlouquecer. Uma hora de “sertanejo” com o coro da massa que, ao arreganhar as cordas vocais, aumentaria o volume do bafo matinal misturado com a sovaqueira.
Não é por nada, não. Não é preconceito. Mas as filhas de minha vizinha da esquerda não deveriam ser tão cruéis.
Elas me impingem todo dia Sandes Júnior com a voz lacrimosa ao ler supostas cartas de ouvinte. (Aposto que exemplar deste jornal vai ser misteriosamente metido por baixo da porta da casa de dona Luzia.)
Parece que me perdi do assunto.
Ah, sim. Hinos religiosos. Não sei qual o poder que eles têm para “limpar” o ambiente de influências nefastas, satânicas.
Maus tempos atrás, eu trabalhava para empresa que tinha copeira muito religiosa. Quando ela me via entrar na cantina, danava-se a cantar.
Não sei por que razão, leitor profano. Quem me conhece sabe que sou sujeito bem-comportado, que tem papo de nível elevado, respeitoso feito o diabo.
Na hora do cafezinho, eu ficava lá, conversando com alguns coleguinhas, e a mulher, talvez por não entender, se escandalizava com a prosa. Aí apelou para os hinos.
Quem estivesse procurando por mim saberia onde me encontrar ao ouvir o berreiro. Mas na cantina não havia mais rodinha de papo. A moçada não se entendia com tanto só-jesus-salva.
A mulher cantava tão alto que ninguém na empresa escapava de ouvir, até que um dos gerentes, extremamente irritado, gritou, lá da mesa dele: “Para com essa cantação, inferno!”
Ela parou. A rodinha voltou a se reunir na hora do cafezinho. Só que a mulher, ao me avistar, corria para o fundo da cantina e ficava lá, de costas para a turma, até sentir que eu havia me retirado.
Pois é. Se essa outra mulher, na segunda-feira braba, fosse um rádio que a gente pudesse estrangular...

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 56, 26/4/1998)

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Hamiltão destrambelhou de vez: de cara, chama o leitor de chato, num texto de dar coceira


Uma noite do cacete

Você é chato? Não? Você pensa que não, mas é. Talvez não seja chato full time, ou para determinadas pessoas. Mas que você é chato, em algum momento, com algumas pessoas, lá isso é.
Fui garotão rebelde, temperamental, cheio de ímpetos e nervos. No entanto, sempre cavalheiro, suportava qualquer chato que se sentasse a minha mesa. Pura idiotice.
Hoje, supostamente mais calmo, supostamente sereno, cheio de bom senso e postura política, não engulo piolho. A não ser que tenha algum objetivo. Por exemplo, catar assunto para crônica.
Às vezes tolero algum chato quando à mesma mesa há gente que é tão boa companhia que compensa um pouco o inferno da chatice. E mesmo assim o phthirius tem que ficar no outro extremo da mesa.
Não dou papo. Às vezes, quando o assédio já está estuporando minha parca inteligência, digo na lata: “Ó, cara, você é chato e eu não tenho saco pra isso.”
Pior é que alguns não se mancam e ficam tentando justificar a aporrinhação. Isso deve ser o que um psicólogo chama de efeito Gabriela: eu nasci assim, eu sou mesmo assim...
Semana passada um parasito desses pousou em minha mesa. Para agravar a situação, o bizarro elemento não pagava nada. Bebia e fumava – fumava muito – por conta de meus amigos. O que me dói é que foi também à minha custa, já que fui vítima no rateio da conta.
Sujeito na idade de tomar vergonha, queria se passar por garotão, forçando no sotaque de alienado, metido em bermudão e calçando tênis com meia de colegial.
Ver aquela cara de espertinho era terrível. Ainda pior era ter que aturar o papo. Para se dar ares de importante, a todo momento perguntava meu nome. Queria que eu perguntasse o dele. Um pequeno triunfo: não sei o nome daquela toupeira.
Uma característica do chato é discordar de todos para se manter em evidência na roda. O pediculídeo dessa noite era de uma ignorância monumental e se metia a saber de tudo.
Sei, leitor fiel, que você não esperava que eu escrevesse uma crônica chata. Mas isto aqui é um ato de vingança.
Prefiro bilhões de vezes passar uma noite me coçando por causa do verdadeiro Phthirius pubis (L.) a tolerar parasito de mesa de botequim.
É claro que não é nada agradável, ainda mais quando se pega chato de homem. Pera aí, leitor maldoso. Explico.
Era uma vez lá no Maranhão. Eu tinha namoradas limpinhas, saudáveis, e me surpreendi quando, durante almoço, meu pai, olhando-me fixamente, disse: “Você tá com um chato na sobrancelha.” Corri ao espelho.
Confirmado o fato, passei a me coçar desbragadamente. Encontrei o chatíssimo inseto até nas canelas, sem falar em áreas mais recônditas.
Aconteceu que um mala sem alça, anelão no dedo, dente de ouro e reluzente bicicleta, aparecia lá em casa na hora do almoço, filava a boia e, todo folgadão, ia tirar a sesta. Em minha cama.
Como ele era assíduo frequentador da Farra Veia [pron.: “véia”], a zona meretrícia mais antiga da cidade, arrastava piolhos de lá até meus lençóis. Já pensou? Fui vítima de intermediário de chato.
Ah, mas esse não foi o primeiro. Anos antes, em Manaus, um galã de soleira de bordel balançou montanha de pediculídeos em minha rede. Eu trabalhando e o elemento zanzando em meus cordões... Era tão folgado que usava até minha escova de dente.
Coisas assim, porém, o Neocid resolve. Já o anopluro de galochas, ô saco, depois que gruda nem banho de Baygon dá jeito.
Imagine, leitor ilustrado, o garanhão aqui, caçador inveterado das noites cálidas, sentado a mesa de bar de intelectual goiano, naquela atmosfera modorrenta, assexuada, a arrecadar na cara perdigoto de pernóstico. Não dá.
Lá pelas tantas, meus amigos e eu resolvemos mudar de garimpo. Aquele ali estava mais arregaçado que Serra Pelada. Ou melhor, tal ambiente de centro “revitalizado” nunca teve mina nenhuma. É aquela moleza de “artista” flertando artista, de longe, em grupos formados em torno de mesas, ilhas de imbecilidade.
Chamamos táxi e, antes que o motorista terminasse de abrir a porta, o chato já estava aboletado. E o infeliz aqui teve que fazer viagem ao subúrbio coladinho naquela coisa repugnante, com cheiro de fim de noite de mistura com desodorante para lá de idoso.
Caímos num ambiente parecido com intervalo de batalha da Guerra de Canudos. Mesmo assim, duas prováveis presas caíram em nossa mesa. E o raiz de pentelho estava lá, com dois palmos de língua branca no pescoço das meninas.
Elas – cobertíssimas de razão – fizeram o que eu havia previsto. Foram parar noutro reduto. Meus amigos e eu arriamos a bandeira e levamos o chato embora. Já dia claro, solão comendo, e o sujeitinho querendo mais cerveja. Por conta dos outros.
“A esta hora só tem padaria aberta”, eu disse, queimando o dedo no estopim. “Então”, exclamou o parasito, cheio de entusiasmo, “então vamos à padaria!”
Você não é chato, tolerante leitor? Eu, de minha parte, acabo de descobrir que o sou. Mas só por vingança.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 55, 19/4/1998)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A crônica foi publicada em jornal realmente na data que consta ao pé do texto, mas a questão da dupla (ou tripla) personalidade é atualíssima...


Esse nome, esse outro nome

Mocinha do meu pedaço me contava, dia destes, as atribulações de amigo dela por causa do nome. Ele tinha nome de mulher.
Ela, por ter supostamente nome de homem, não padece tanto, mas se diz de personalidade dupla. Uma das “personalidades” tem apelido manhoso e é da pesada: bebe, fuma, bota chifre arregaçadamente e está sempre disponível para coisas inimagináveis.
Afirma que papai-com-mamãe é bom, mas pratica com afinco, generosamente, o que ela chama de mamãe-com-todos-em-todas-as-posições-e-modalidades, esporte que não deve ser saudável, ainda mais considerando que ela não é muito chegada a banho.
Quando essa topa-tudo, com dinheiro ou sem dinheiro, se encontra entre pessoas que a conhecem pelo nome que lhe deram os pais, a outra personalidade assume o comando, mas com suavidade e equilíbrio. É pura, fiel, honesta, sem vício. E demora-se no banho.
Comportadíssima na cama, não submete o companheiro – primeiro e único – a cansativos exercícios sexuais, malabarismos inúteis que mulher séria não deve aceitar. É digna e detesta hipocrisia.
Mas não é disso que se trata. A questão é sobre o nome que certos pais, com mania de originalidade, dão aos filhos. Isso quando não querem prestar homenagem ou assinalar data.
Matutão, cheio de empáfia, taca lá um nome “diferente” no neném. O neném cresce e se torna bela e culta mulher que se chama Bucetildes.
Nesse caso, não é de lamentar. Nome é apenas convenção, e não há convenção que possa derrubar um monumento desses. Sem falar que a referência traz certas vibrações...
Há nomes, no entanto, que jogam mais para o lúgubre. Imagine, leitor escalafobético porém nada gótico, o que nos lembram gêmeas nascidas no Dia de Finados levando nas costas a homenagem que os pais queriam prestar: Afinadina e Adefuntina.
Não é nada fácil viver neste mundo cruel.
Sei que isso é truísmo, mas suponhamos que Putêncio queira mudar de nome – e não quer, pois tem orgulho dele. Se quisesse, a Justiça jogaria em cima do coitado todo um instrumental jurídico. Por mais puto que ficasse, ele continuaria Putêncio.
Você se lembra, leitor de revistas do “meio artístico”, do que padeceu Roberta Close? Claro que sim. Depois que cirurgião lhe virou o pacote pelo avesso (o da Close), ela enfrentou obstáculos burocráticos, preconceitos redobrados, o diabo.
Ah, sociedade cruel. Veja bem. Em repartição pública, o funcionário mirradinho ergue os olhos e vê diante dele um mulheraço. Solícito, quase se derramando pelo balcão, o sujeitinho nem olha para os documentos da figura e pede que ela assine sobre a linha assinalada com xis.
No papel vai surgindo, devagar, relutantemente: Be... ne... di... to... Depois, rapidamente: Pinto dos Santos.
O funcionário, refeito do susto, e após dar uma sossegada nos hormônios, debocha, como se a personagem, horas na fila, tivesse acabado de chegar: “Oi, Ditão!”
Mundo cruel.
A mocinha do meu pedaço, com conhecimento de causa, me contava, dias atrás, os padecimentos do macho que tinha nome de mulher. Não era um problema de quem mudou de sexo, nada disso. Ele só queria um substantivo compatível com a aparência viril.
Argumentou com “autoridades”, abriu as cortinas de sua vida, argumentou mais, apresentou fórmulas, sugestões e jeitinhos, e nada. Nada. Tinha que carregar aquela denominação pelo resto da vida.
“O que que custa?”, perguntou aos céus e às “autoridades” inarredáveis. “O que que vai custar ao Tesouro a troca de uma letrinha?” Ele se referia à desinência. Por exemplo, se se chamasse Anastácia, bastaria substituir o último á, colocando em seu lugar um ó.
Vendo que se achava diante de um mundo de irredutibilidades, resolveu radicalizar. Já que a burocracia não se movia, ele se moveria. Isto quem conta é minha amiga, aquela do pedaço.
Ele proclamou: “Ser radical é cortar o mal pela raiz.” Não foi lá muito original, mas foi consequente: mudou de sexo.
A amiguinha garante que ele era muito macho, e garante com conhecimento de causa. Aliás, ela sempre quer conhecer tudo, de causas a efeitos, e diz que pretende fazer uma “experiência homossexual”. Com a “nova” amiga.
Um homem atormentado foi ao encontro da harmonia. Ele... ela tem nome de mulher.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 54, 12/4/1998)