segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Hamiltão rompe a preguiça depois de longo tempo. Um texto apenas para aquecimento do que virá, segundo promete o salafrário


PF à la carte

A proliferação dos chamados restaurantes self-service acaba com a minha beleza. A primeira vez que peguei um desses foi em São Paulo, no intervalo de reunião numa casa velha de onde só podíamos sair (da mesma forma que havíamos entrado) aos poucos, espaçadamente, para não chamar a atenção do público em geral e da polícia em particular. Era novidade, e eu pude escolher as leguminosas, com os dois companheiros com quem havia deixado a casa velha. Mas a minha paixão pelo prato-feito é imorredoura, sentimentalíssimo leitor comedor de refeições ligeiras. O prato já vem prontinho da cozinha, muitas vezes passando por um buraco em meia-lua na parede.
Naqueles idos não havia balança nos restaurantes, humilhante maquininha com tara e tudo em que se assenta um prato descomunal, com o qual se procura criar a ilusão de que a comida é apenas um montinho razoável. Hoje existem também os self-services “à vontade”, sem balança, quando o neguinho pode esgoelar-se com o que der conta de feijão, arroz, abóbora e (nem sempre no à-vontade, quando há funcionário para controlar a gana do freguês) muxiba, em pratos pirex de reduzido tamanho.
Minha paixão pelo PF é imorredoura, embora comer não seja das coisas de que mais gosto de fazer. Quer dizer... Bem, não brinquemos com acepções. Estou tentando sustentar um papo sério com o leitor.
É verdade que meu peito nostálgico (e asmático) se aperta quando me vêm à memória as poucas refeições à la carte que fiz, a viajar de caminhão com meu pai ou depois de conduzir garbosamente a raríssima namorada a restaurante de luz dourada, quando o pagamento de salário, mais raro ainda, saía. (Meu pai pedia os pratos sem olhar carta nenhuma, pois não havia isso em pontos de motorista de caminhão, mas eram – condescendamos, afetuoso leitor – refeições à la carte.)
Penso que devo pausar um instante para explicar que PF significa prato feito ou, da forma de minha preferência, prato-feito, com hífen. (Talvez eu devesse grafar P-F, para diferenciar da famigerada.) Explico por que explico: não há muito, coleguinha de boas origens (credo) me pediu para explicar que coisa era aquela que eu dizia comer. Vai ver achava que era patê foie-gras, ou coisa assim.
Sei que o leitor não tem apetite por detalhes. Voltemos.
O devorador de pratos-feitos deveria ser pessoa humilde, pouco exigente e tal. Geralmente, sim. Mas há os enjoados, os chatos, que ficam especificando ao atarantado servente de estabelecimento cheio como querem o prato. “Pouco feijão, mais arroz, um caldinho, só um caldinho de carne cozida, e um bife bem-passado no canto, sem encostar no feijão.” O garçom já corre – atarantado – para o buraco em meia-lua antes que esqueça as especificações quando o freguês grita da mesa: “Sem cebola.” Já vi isso acontecer em mesa com cinco funcionários de loja das redondezas, cada um deles com especificações do PF, azoretando a pobre da moça que os atendia.
Nessas horas me dá vontade de escoicear: “Vai procurar restaurante de grã-fino, porra.” (Versão menos chula de “Vai procurar uma rola”.) Só que preciso de muita calma para comer.
A rigor, se é que existe alguma coisa a rigor, o PF é à la carte. O cardápio está logo à entrada da casa de pasto, a giz, em pequeno quadro-negro:

Hoje, dois pratos:
– Bife de fígado ou de vaca ou carne cozida
– Dobradinha

Feijão e arroz estão subentendidos para o prato da escolha, a menos que o feijão seja tropeiro e o arroz seja com pequi. Já sentado, o cliente informa se quer salada (alface com tomate) e verdura (jiló ou abóbora, por exemplo). Se pedir ovo, são mais 50 centavos.
Mas achar um PF está uma dificuldade, leitor a esta altura empanzinado, depois do advento e da subsequente proliferação dos self-services. Isso até no mundo da grã-finagem, suponho.
Não é fácil para mim pegar fila atrás de gente que está no intervalo de alguma convenção, crachás enormes no pescoço, a salivar à vista das vasilhas com comida mais fria que morna (quiçá com asas de mosca ou pernas de barata ou fios de cabelo), sem parar de falar, a jogar perdigotos juntamente com o sotaque. Não dá.
Ah, não é só. Para esculhambar de vez, inventaram o PF de self-service de balança. Um funcionário da casa vai à frente do freguês atirando bruscamente coisas no prato à medida que avançam diante da bancada com as vasilhonas. O rango sai mais barato, pois não é colocado na balança. Há um porém. Você tem de escolher: abobrinha ou macarrão? carne ou frango? Sem churrasco, cuja trempe fica lá na ponta e é supervisionada por rigoroso funcionário, possivelmente o genro do dono do restaurante.

Hamilton Carvalho
(23/11/2015)