quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

É importante que se tenha lido a crônica anterior, pois esta é continuação do ibope do Hamiltão. Entra em cena a indiazinha


Um trio quase feliz


A culpa é da enchente. O igarapé que rolava aos fundos da “estância” em que eu morava transbordou, virou rio e invadiu meu quarto.

Fiquei de bubuia o máximo que pude, esticando a rede à medida que a água subia. Cheguei a ficar tão perto do teto que já não tinha mais espaço para uma ereção.

Por falar nisso, o teto era na verdade o assoalho do quarto da senhoria. Eu habitava o porão, aonde de vez em quando ela me levava um pirarucuzinho.

Antes que este texto pareça coisa de “escritor goiano” – e nem escritor eu sou –, é preciso entrar no assunto.

De qualquer forma, tive de me mudar por causa da enchente. Cercando a nova vizinha, fui obrigado a levar o filho dela ao cinema, entre outros “agrados”.

(Ora, eventual e acomodado leitor. Em vez de eu ficar aqui historiando texto, devia era mandar você ler a crônica da semana passada. Aliás, faça isso, que não vou perder mais tempo e espaço.)

Escolhi um filme cujo título evoca meu amigo Quincão: Um Homem Chamado Cavalo.

A índia. Não a do filme, é claro, mas a que me encantou. Enquanto Cabeção e eu olhávamos os cartazes na enorme sala de espera do cinema (antigamente era outra coisa...), a indiazinha adejava em torno de nós.

O desgraçado do menino, com já disse, era inteligente e perguntador. Nesse caso era bom, porque, de cartaz em cartaz, a índia ia nos acompanhando e ouvindo os comentários.

Às vezes dava um sorrisinho, às vezes uma palavrinha. Eu, como se tivesse problema de audição, me aproximava para ouvi-la. Ela recendia a qualquer coisa de comestível para o miserável do faminto de xota que sempre fui.

Quando terminou o circuito diante dos cartazes afixados em todas as paredes da sala, eu já estava irremediavelmente apaixonado.

A desgraça era o Cabeção, o filho da vizinha, a vizinha que eu não queria mais comer. Pelo menos ali no hall do cinema.

Ele era o empata-foda mais persistente que já conheci. Primeiramente, empatava-me com a mãe, uma pancada de mulher cuja carroceria era de fazer inveja a qualquer tchãzeira. Depois, empatava-me com a minha iracemazinha.

O otário aqui ainda levou o infeliz até a bonbonnière, onde ele escolheu o que bem quis. Para a indinha do meu coração, ofereci um Sonho de Valsa...

Formando um trio quase feliz, fomos para a sala de projeção. A certa altura do corredor, parei e, cavalheirescamente, estendi um braço em direção a três cadeiras, oferecendo passagem à moça.

Ela passou por mim. Quando ia segui-la, o moleque, quase me atropelando, embarafustou-se atrás dela. Revoltado, peguei a rabeira daquela fila indiana.

Ah, que vontade de agarrar o filho da mãe pelo colarinho.

Depois de sentados, cutuquei-o e sussurrei a seu ouvido: “Vamos trocar de lugar?”

Assustei-me com o próprio tom de voz. Diabos, estava quase implorando.

Se o leitor deu uma chegadinha ao texto anterior, sabe que o menino me chamava de senhor, apesar de meus 20 aninhos. Ele acoplava um seu a meu sobrenome, envelhecendo-me mais ainda.

Vira minha assinatura nos livros que me tomara emprestado. O danado lia até dicionário. Mas cultura sem espírito crítico não ensina ninguém a se mancar.

“Vamos trocar de lugar?”, implorei. E o miserável egocêntrico: “Não, aqui está ótimo, seu...”

Nunca um filme me parecera tão longo. Fervendo de raiva e frustração, não conseguia entender patavina do que se passava na tela.

Em certo momento, ao olhar meio de banda para o Cabeção e vendo-o todo relaxado e satisfeito com a vida, uma fúria assassina tomou conta de mim.

Cheguei a armar a unha dura do polegar para aplicar-lhe um beliscão.

Quando saímos do cinema, meu saco transbordava. Era uma patética enchente de saco.

Sem me policiar mais, adrenalina já me transformando num Hulk branquelo, disse para a mocinha: “Você pode me esperar aqui, enquanto levo esse estrupício para a mãe dele?”

Ela sorriu breve e discretamente, anuindo.

Fiquei meio inseguro e me perguntei: “Será, será que elazinha vai mesmo me esperar?”

Assim, com aquela coisa cabeçuda e curta nos meus calcanhares, eu comprido e mal-ajambrado, de chinelão, peguei o rumo da liberdade.

O sol do equador derretia a Glostora do coco vasto do estorvo, que se esbofava para me acompanhar.


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 80, 17/1/1999)

Começa o ibope do Hamiltão. Um roteiro verdadeiramente cinematográfico


Na Ladeira do Vento

Hoje, eu saidinho de casa, ali na Ladeira do Vento, vi um menino. Ora, é claro, leitor metido a merda, é claro que meninos se veem por toda banda. Mas aquele – ar circunspecto, sisudo – parecia miniatura de gigante.
Ali, na ladeira, mãos em concha na tentativa de acender um cigarro, lembrei-me de outro menino, de tempos meio que distantes. Sério e cheio de formalidades, ele me dava o aporrinhante tratamento de senhor colado ao sobrenome.
Eu tinha apenas duas décadas de pálida existência e estava doido para comer a mãe do cabeçudo (ele era realmente cabeçudo). O garoto não dava trégua, não limpava o meio de campo.
Ele e o pai. Só que o pai, separado da mulher, aparecia por lá somente uma vez por semana, para dar uma carimbada na ex.
O problema é que ele não tinha dia certo para a visita. Podia aparecer a qualquer momento de qualquer dia. E você sabe, leitor sacana: flagrante de ex-marido é dos piores.
O cabeção, no entanto, me atrapalhava demais. Quando eu estava em meu quartinho, que era pegado no da mulher, ele ficava de lá para cá o tempo todo. Era como se quisesse se assegurar da distância entre mim e aquela mulheraça calipígia.
Ao me mudar para a estância (que é como se chamavam lá as casas, geralmente de madeira, que tinham quartos de aluguel), ao me mudar para a estância, fugindo da enchente, perdi o sossego dos fins de semana.
Depois dos duros dias sob as ordens do velho Jorge Abrahim, meu maior prazer era o far-niente. Eu lá, seminu, atiradão na rede, uma das mãos com um livro e a outra metida na cueca, fazendo cafuné nos pentelhos...
Aí, o abominável toque-toque.
Seu...” E lá vinha meu sobrenome em pronúncia afetada. Em seguida, uma sombra, uma cabeçorra, um sorriso formal.
O desgraçado era inteligente. Passava horas a folhear livros, a fazer perguntas e a decretar minha condenação aos infernos.
Mas eu queria traçar a mãe do piolhinho de saco, e cretino como eu age assim. Alisa a cabeça de empata-foda quando, na verdade, quer meter o cascudo.
O sofrimento não parava por aí. Havia ainda a acochambrada semanal do ex-marido. Meu deus, nossos quartinhos eram divididos por fina parede de madeira cheia de brechas.
A gemeção era discreta, mas era gemeção. Sem falar que meus ouvidos ampliavam os sons enlouquecedoramente.
Confesso, leitor escandalizado, que uma vez não resisti e olhei por uma frincha. Acontece que ficar ali, de pau duro, todo teso para evitar estalos da rede, doía, literalmente doía.
Então eu a vi, a cona. Que pentelhal.
O cínico do ex deitou-se e esperou. Lá veio a mulher, nuinha e morena, com os braços abertos, as mãos segurando um cobertor a cobrir-lhe as costas.
Penso que a razão da coberta era obstruir a visão do filho, cuja cama ficava do outro lado do quarto. O sujeitinho só era empata para este cronista cheio de escrúpulos.
A fêmea exuberante ajeitou-se por cima do acomodadão. E treparam debaixo do cobertor e sob o tremendo calor amazônico.
Enquanto a enchente durasse, eu teria que permanecer ali. A coisa era mais séria ainda quando o vizinho do outro lado resolvia levar a namorada para alguns delírios fodais.
Ah, maldita enchente.
Depois, o Cabeça, que um dia quis ir ao cinema. Dá para adivinhar quem teria que levá-lo. O bobaça aqui.
Imagine a cena. Debaixo do solão, antes da chuva, lá ia eu, de chinelão, comprido e mal-ajambrado, com aquela coisa pequena e cabeçuda a meu lado, enfiada em uma espécie de paletó e de calças curtas.
O filme que escolhi talvez não fosse lá muito indicado para criança. O título: Um Homem Chamado Cavalo.
Mas seria concessão demais ter que assistir a um filme da Disney só para agradar ao pentelhinho. O que interessava era a mãe, e ela só precisava saber que tive a bondade de levar aquele rebento feioso para “se distrair”.
Antes de ser pai, eu já era um pai.
Ao chegar à porta do cinema... Não acreditei. Surpresa, feliz surpresa. Conheci linda indiazinha e com ela encetei (que lindo, hein?) um tímido mas promissor papo.
Não, leitor aborrecido, não vou contar a história da indiazinha. Não agora. Fica para a próxima semana.
Na Ladeira do Vento, ao ver um menino com aparência de homem de negócios, lembrei-me de outro menino e, muito especialmente, de encantadora índia.
Assim caminha a minha pequena humanidade.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 79, 10/1/1999)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

O grande cronista, sob pressão, em virada de ano, cai para o sentimentalão



Uma boa ideia

Mesa farta, todos felizes, no aconchego do lar. É claro que me faço exceção e dispenso toda frescura. Só queria ter uma boa ideia para produzir texto que fosse digno de minhas filhas, distantes.
Elas, no entanto, aprenderam que meu amor não se prende a convenções. Passagem de ano... Mas bem que eu gostaria de tê-las a meu lado neste momento. Imensamente.
Se não consigo arrancar uma boa ideia deste cansado e melancólico cérebro, poderia ao menos falar da ideia dos outros.
Por exemplo.
Engenho Novo, Rio. Num tempo em que isso não era comum acontecer comigo (era mesmo muito difícil), entrei em uma lanchonete. Além do dinheiro para o trem, tinha somente o de um cafezinho, e a fome me avassalava o estômago.
Eu precisava de energia para aguentar os trancos do batente, algo que a beberagem pegajosa que me serviram não me daria.
Tive, então, o que considerei boa ideia. Despejei tanto açúcar no café que ele, de pegajoso, passou a gosmento. Energia pouca, mas energia, pensei. Aliás, essa tática de enganar a natureza vinha de outros tempos.
Enquanto empurrava aquela coisa, tentava a todo custo desviar os olhos do belíssimo lanche que um garoto, mais ou menos de minha idade, arrastava para o bucho. Éramos, ali, os únicos fregueses. Ainda muito cedo, 5 da manhã, hora de encarar o caminho do trabalho.
O garoto, depois de devorar a segunda remessa, foi saindo tranquilamente, palitando os dentes. Sem ter pago.
O dono da espelunca, ao sentir o calote, saiu para a calçada e berrou: “Ei, volte aqui, seu desgraçado.” O caloteiro, já a uns trinta metros, nem deu bola. “Não vai pagar não, filho da mãe?”
O rapaz, como se fizesse uma concessão, parou e, virando-se, disse, cheio de direito: “Não, mas também não vou morrer de fome.”
A ideia que eu não tive ao entrar na lanchonete. No entanto, recebendo-a de mão beijada, não fui capaz de também colocá-la em prática.
Realmente: morrer de fome é imbecilidade. Eu ali, diante de estufas cheias, aspirando odores que falavam até à alma de bem-abastecidos... Eu ali, olhos fundos, quase arriando a carcaça. E muito honesto.
Por sinal, minha mente nunca soube discernir bem as coisas. É por isso que me pergunto se também pratiquei a honestidade quando, por exemplo – nos velhos tempos a que me referi ao falar da “tática” –, recusei certo convite.
Na ocasião, em firma exportadora de borracha, eu tentava conseguir um vale fora de época. Para tanto, tive que expor o “humilhante” motivo.
Em vez de grana, um pau de cabeleira me veio lá com um papelzinho. Um endereço, na belíssima caligrafia da contadora da firma. Um sussurro informou que aquela tirinha significava lauto jantar.
Acontece que o pau de cabeleira era uma garota, e que garota. A qual eu desejava ardentemente comer, claro.
Decepção. Logo ela. Logo ela... Transformar-se em caftina para me prostituir...
Veja você, leitor libertino: sou incompetente até para exercer o ofício de gigolô, ofício útil-com-agradável.
De qualquer forma, guardei o papelzinho. Fim de expediente voltei para o quartinho que havia alugado no Bairro de São Jorge, Manaus. E tive sorte: comi o pirarucu da senhoria.
Uma ideia. Tudo por uma ideia.
É angustiante sentir tanta fome de palavras e não conseguir o estofo de uma ideia, um conteudozinho qualquer para cumprir o dever paterno de demonstrar afeto.
É por isso que caio no desespero e na vulgaridade. Fico feliz apenas porque sei que a Elza e a Lígia me entendem. “Meu pai é tão bobo”, dirão por certo.

(Gazeta de Goiás, n.º 78, 31/12/1998)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Hamiltão fala de bela e cativante amizade. Exemplo edificante, ainda que periférico


O peru do Natal

Dias atrás vi Divino Copo-Cheio sentado à porta de sua casa, com um litrão de 51 entre as pernas e, na mão, um copo evidentemente cheio. Gentilíssimo, levantou-se para me cumprimentar. Aliás, a gentileza é traço que tem em comum com Natal, amigo dele de memoráveis cachaçadas.
Eu me lembrei de que uma semana antes havia encontrado Natal lavando a caveira num boteco. Ora, mas ele não havia deixado de beber?
“Meu camaradinha, estou apenas dando uns tapas de leve”, tentava se justificar, como se eu tivesse lá alguma coisa com o fato.
Ao avistar Copo-Cheio, com aquele eterníssimo boné verde desbotado, bateu-me a lembrança dos tapas de Natal. Era no tempo em que os dois eram inseparáveis companheiros de rabo de galo.
Certa vez, no antigo bar do Florim, aproximaram-se do balcão e Natal pediu: “Camaradinha, sirva-me um café, por obséquio.” Natal é assim, todo maneiroso.
Café, para ele, é a mistura de pinga com vinho de jurubeba, da mesma forma que cerveja, nos bons dias de bolso mais ou menos, é sorvete. “Camaradinha, sirva-me um sorvete.” Logo em seguida: “Bem geladinho, se não for pedir demais.”
Quando Florim bateu o fundo do copo de “café” no balcão de fórmica vermelha, Natal o agarrou e ofereceu a Divino. “Copo-Cheio, dê um tapa aqui.”
Divino deu. Com toda a força. Para desalento do gentil Natal, o copo voou e foi explodir na rua. Melífluo, perguntou: “Meu coleguinha, por que fez isso?”
Nunca vi Natal brigar com ninguém, nem mesmo com um Divino desaforado.
Na verdade, eles eram muito unidos. Quando Natal comprou uma velha motocicleta de 125 cilindradas, de cor preta e ronco suspeito, era comum a gente encontrar os três juntos, ao ritmo de um só cambaleio.
Levaram uma queda feia. Até pensei que nunca mais andariam – abarrotados de canjebrina – na bendita “aranha”, como carinhosamente era tratado o veículo.
Que nada. Estropiados, pintados de iodo, continuaram com seus passeios de moto.
Uma noite, depois de depositarem umas tantas na moleira, o proprietário da moto resolveu levar o amigo para casa. Só percebeu que o Copo-Cheio tinha ficado pelo meio do caminho quando chegou ao destino.
Voltou. Quase não encontra o amigo, aninhado em escura valeta.
Natal casou. Fiquei admiradíssimo. Deixou de beber. Fiquei mais admirado ainda. Melhorou de vida, comprou um Fusca. A amizade com Copo-Cheio esfriou, porque mulher de amigo interfere, não quer sorver bafo de pinga nem tolerar chatice de bebum.
Não fiquei espantado ao ver que Natal empunhava um copo de sorvete, dando seus tapinhas de leve. Em casos assim, recaída é coisa comum. Geralmente sujeitinho que deixou de beber recomeça com uma Caracuzinha.
Mas, afinal, leitor esperto, que diabo este texto chanfrado tem a ver com o peru do Natal, pendurado aí em cima à guisa de título?
Macho como eu não tem que ficar comentando acerca de pintos e muito menos de perus.
O peru do Natal só interessava às “meninas” da Tia, quando o moço era solteiro e passava por lá antes de seguir para o trabalho.
“Meu camaradinha”, costumava proclamar consultando o relógio, “não leve a mal, mas estou meio que apressado.” Quando saía para trabalhar não tomava cafezinho. Passava no Florim para ver os camaradinhas.
“Estou com pressa, ainda vou passar na Tia para furar um courinho.”
Pois é, o peru do Natal só podia interessar às meninas da Tia. Assim mesmo porque ia acompanhado de uma “gratificaçãozinha”.
Mas o sujeitinho casou. Copo-Cheio passou a andar caidão para o melancólico. Afinal, era amizade bonita, com “tapas” e, acredito, sem beijos.
Ali, à porta de casa, sentado com litrão de 51 entre as pernas, sozinho, estava Divino a empunhar o xará. Na cabeça o boné verde desbotado.
Há alguma esperança, não há, leitor sentimental? Devagarzinho, devagarzinho, com tapinhas de leve, o natalício amigo volta a beber. Aí, quem sabe, a velha amizade tornará.
Os dois, então, voltarão a entoar canções da Jovem Guarda ao pé do balcão.
O bar do Florim deixou de existir. Mas a notícia já corre: Tiãozinho do Opala Preto abriu um boteco.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 77, 27/12/1998)

O autor evoca figura das mais esdrúxulas, em texto cheio de preguiça e volteios



Pesos e medidas

Coleguinhas aqui da Redação discutiam a respeito de pesos e medidas. Foi há pouco, dia cinzento, alma cinzenta e cérebro só cinza.
Eu estava bem adequado para bobices e ideias e lembranças cretinas.
Pesos e medidas? Isto é pauta para Inmetro ou balança de açougueiro de periferia.
Mas, como eu estava bem adequado para diarreia mental, assaltou-me a parruda lembrança de Quincão.
A manguaça de Quincão media-se a palmo. Calma aí, leitor fálico. Não me inclua entre certos tipos de medidor.
Acontece que a turminha costumava bater bola num campinho lá do Bairro Jurema, que a gente chamava de Bajurema. Corruptela assim, meu irmão, só na minha terra.
O parrudaço em questão era um moreno de coco redondo, nádegas fartas e soco moralizador. Não era mais alto do que esta pálida e insulsa figura. Mas era mais largo, muito mais largo. Sempre lustroso, por causa do eterno suor.
Não era estampa muito atraente, digamos assim. Digamos assim porque nunca fui de achar macho atraente.
Aliás, há sujeitinho, pretensamente integrado no espírito do tempo, que afirma não ter qualquer receio de achar homem bonito. Não teria nenhum complexo, nunca fora mordido por cobra. Mas que é coisa de veado, lá isso é.
Até mesmo li em revista ou jornal, em texto feito por alguém que supostamente portava colhões na bolsa escrotal, que o corpo do homem é mais bonito do que o da mulher.
Era desses sujeitos que têm teorias.
Segundo ele, o corpo da mulher, com aquelas formas arredondadas, com reentrâncias, elevações e curvas suaves, estava mais para o antigo. Já o corpo do homem, anguloso, enfibrado, teria design moderno, instigante.
Um esteta, o cretino.Um artista teorizador, ou seja, um chato de galochas. Ou simplesmente um veado.
E o Quincão, leitor desnorteado?
Bem. Ele era daqueles caras que reduzem o ambiente a sua pessoa, daqueles que se impõem com seus modos grosseiros e aptidões estranhas.
Quincão adorava, por exemplo, organizar concurso de peidos, com várias categorias: sonoridade, cheiro, umidade...
No entanto, ele parecia viver mergulhado em profunda tristeza, com aqueles gestos vagarosos, olhos melancólicos.
Depois da pelada no Bajurema, a molecada mantinha a tradição: com pinto entre polegar e indicador, enfileirados lado a lado diante de um muro de adobes, mijávamos, um mijo para lá de amarelo, um mijo cansado.
O líquido, batendo nos adobes, fazia subir um odor quente, um buquê de terra e urina.
Peraí. Eu dizia que a meninada segurava o pintinho entre o polegar e o indicador? É verdade. Menos Quincão. Sim, sim, menos ele.
Aliás, aquele fenômeno não poderia ser qualificado de pintinho, ou mesmo tão-somente de pinto. A coisa exigia substantivo de peso.
Ah, sim, peso. Um dos coleguinhas, naquele papo cheio de consequência, ponderava sobre presumível desvantagem de ter caceta de robustas proporções, já que o peso dela (pesadelo?) também seria considerável. “É mais difícil de subir.”
Sei não.
Fico a imaginar o volume de sangue necessário para preencher corpos tão cavernosos. A cada ereção, o proprietário do tacape deve ficar muitíssimo pálido.
Como eu dizia, Quincão era o único que não segurava a coisa entre dedos. Ele a empalmava. Mas, obviamente, a mão ficava aberta.
Após a urinada, todos dávamos a famosa sacudidinha para eliminar a última gota. Com exceção do Quinca. Com as costas da mão, aplicava cada trompaço no lombo marrom daquela jiboia com prepúcio – plaftplaftplaft.
Chega. Chega de texto miserável. Veja você, leitor de estômago forte: ainda dizem que falo somente de xereca. Mas é mesmo de xereca que gosto de falar. Cheio de razão e autoridade.
Dia cinzento, alma cinzenta e cérebro só cinza, e os coleguinhas ponderando sobre lei física e convenções. Sem querer, eu escutava, sem conseguir me concentrar na leitura de um artigo de não sei quem a respeito de não me lembro quem.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 76, 20 de dezembro de 1998)