quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Esferográfica cambaleante em roto papel, distúrbios elementares e balbucios – não necessariamente nesta ordem. Como antigamente, muito antigamente

                 
A canção e o bêbado

Aí eu: “Ainda é cedo, amor / Mal começaste a conhecer a vida / Já anuncias a hora da partida...” Aí eu nos botequins da vida.
Venho sentimental desde a crônica da semana passada, pois não? Só que agora, a uma mesa de bar – rompendo firme autodeterminação de não redigir fora da atmosfera condicionada da Gazeta –, não consigo me concentrar nas palavras da cantiguinha com que iniciei este lítero-babaca texto.
É que, como o goianíssimo leitor sabe, há sujeitinhos que estacionam o carro ao meio-fio, abrem a traseira (do carro) e botam o som na maior altura. Agora, neste exatíssimo momento, Reginaldo Rossi, a todo o volume, me atrapalha.
Não que eu não goste das peças produzidas por ele, pois nem só de Tchaikovski vive a humanidade. Mas é que...
Ainda é cedo, amor / Mal começaste...” Aí eu, a uma mesa de bar, não consigo nem escavacar a ferida nem ficar de olho no deadline determinado pelo Salvio Juliano, que, além de editar a “Folha G”, ilustra belamente este cantinho de página.
“Seja irresponsável”, diria uma de minhas ex-mulheres. (Na verdade, elas não são minhas ex-mulheres, mas sim ex-minhas mulheres.) No entanto, apesar da má fama, carrego muita responsabilidade na cacunda.
Aí eu, então, estava aqui, na recaída: “Presta atenção, querida / Embora estás resolvida...” Mas o som que vem do carro vibra nas paredes e leva meus tímpanos ao teto do crânio.
Assim, deixei escapulir a canção que me volteava no cérebro e desisti de ficar na fossa, como se dizia nos tempos de flores e pedras. Para não chegar ao desconforto da vida, procurei entrar no espírito da coisa, e passei a reparar em torno de mim.
Dona de lindo pezinho de rabo passou rebolativa pela mesa do marmanjo aqui, rumo ao mictório. A calça dela, justíssima, ia fundo nas reentrâncias, desenhando tudo.
Quando a moça vinha de volta notei que a roupa estava do mesmo jeito, como se ela tivesse feito mijadinha vestida. Pensei, apenas pensei: “Vai ser boa assim lá em casa.”
Houve tempo em que era mais audacioso. Certa vez, disse isso para esfuziante dama – “Vai ser boa assim lá em casa” –, e ela foi. É verdade que naquela época eu me apoiava na estampa autenticada de garotão.
Atualmente o que mais cai no meu pedaço é garota sukita com o papel decorado. O que não me impede de, de vez em quando, fingir uma dorzinha de cotovelo: “Ainda é cedo, amor, mal começaste a conhecer a vida.”
Aí eu... O leitor que me perdoe: estou bêbado demais para continuar.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 142, 16/4/2000)

2 comentários:

  1. Cara, esta foi de pensar naquelas que peguei...
    Só não posso denunciar meu tio com a minha idade...

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  2. Pois é, Cassiano, faz muito bem em não denunciar a minha idade revelando a sua, embora em minha mente você continue aquele garotinho terrível. Aliás, pensando bem, até que ainda faço sucesso, pegando carona nas novelas de TV em que aparecem aqueles coroas comendo gatinhas assanhadas...

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