quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Quem não conhece as ruas do centro de Goiânia vai perder-se no labirinto. Melhor não ler a porra desta crônica


Afrouxos e apertos no trânsito


O leitor Arthur de Lucca mandou fax para este prestigiado cronista a propósito da croniqueta “O superguarda de trânsito”.

Acima do jamegão de primeiro mundo, De Lucca falou do susto que levara por conta de panfleto com cara de notificação de multa colocado no para-brisa do carro dele.

Ainda bem que o papelzinho foi colocado, e não colado. Digo isto porque me lembrei dos tempos em que arrastava minha asma pelas ruas do Rio.

A notificação de multa, então, era verdadeira – e colada com cola braba. Mas não era como simples e prosaico panfleto: ela tapava toda a visão do motorista.

Só saía com Coca-Cola.

Letras enormes. De muito longe se lia a drástica mensagem. Quando se aproximava do veículo por trás e via flanelinha com garrafa do refrigerante, o dono já sabia o que iria ver no para-brisa:

“Infringi as leis de trânsito e fui multado.”

Aliás, isso já foi assunto de cronista menor nas páginas do Jornal do Brasil. (O autor também era metido a poeta, e dava nome a seus livros assim: Claro Enigma, Lição de Coisas, As Impurezas do Branco, Alguma Poesia...)

Mocinho do trânsito era cruel. Além de impedir que o infeliz fosse embora tranquilamente, sem ter o trabalhão de desfazer a “obstrução da Justiça”, fazia com que ele ainda pagasse o preço da Coca-Cola com mais de 100% de ágio.

Em Goiânia, há também problema com faixas de “segurança”. Do mesmo modo que não adiro a campanha pelo uso de camisinha, não digo a ninguém que todo chão riscado de cruzamento é território seguro.

Dia destes, por exemplo, levei um daqueles sustos de lassear esfíncter.

Descia eu a Avenida Goiás, carregando tranquilamente o meu charme, a apreciar o uniforme recheado de uma policial militar que ia à frente, quando quase fui atropelado.

É que ali, no cruzamento da Rua 3, o recomendável é atravessar fora da faixa. Eu, porém, hipnotizado pelo traseiro cáqui...

Bela engenharia de trânsito, que só “projeta” para carros. Pedestre que se dane.

Quando o sinal fecha a oeste da avenida, segurando o fluxo de veículos da Rua 3 (teoricamente dando sinal verde também para pedestres que descem a Goiás), não impede que carros virem subitamente à direita, com pneus cantando e trogloditas raivosos na direção.

Mais seguro para o pobre ser humano que anda a pé é passar quando abre o sinal da Rua 3, já que a distância entre o carro que vai cruzar a avenida e o pedestre é maior.

É um dos pontos que mais provocam apertos (ou afrouxos, dependendo do estado de concentração e do grau de gaseificação do desgraçado). Mas existem outros, muitos outros.

Ainda na Rua 3, no cruzamento com a Avenida Araguaia, há mais um ponto mortal.

Se você desce a avenida com a intenção de chegar ao bar de meu amigo Wolmer para quebrar uma que outra, terá de atravessar a Rua 21 (em frente à Casa do Colegial).

Parece que naquele pequeno trecho os carros surgem do nada. [Até aqui, o autor não fala de motocicletas...] O susto é digno de esfíncter de ferro. Com cadeado.

O calvário para chegar ao Bar Bate-Papo não acabou. Você precisa também cruzar a Rua 3. Só que aí pode passar bem por fora da faixa de “segurança” sem ter de se desviar do rumo da pinga com mel.

Será por que a maioria dos que dirigem vê as pessoas na rua como estorvo?

Não foi somente uma vez que quase botei o coração nos fundos da cueca ao passar diante de saída de veículos. Em certa ocasião o motorista apertou a buzina com furor e ainda por cima declamou impropérios contra a falecida. Achou um absurdo que eu caminhasse na calçada.

Há sujeitinho que destila ódio, xinga, buzina sem necessidade – só com a sádica intenção de assustar o absorto transeunte – e, quando para junto da faixa, ou em cima dela, acelera impacientemente, com estertor pré-orgásmico, dando a impressão de que vai fazer o carro saltar feito sêmen sobre os bocós que trancam o toba e humildemente se apressam.

Susto é o que mais há por aqui, pois goiano ao volante é mais perigoso que cobra de asa em campo de nudismo.

Chega de papo aporrinhante. Isto está parecendo relatório da Superintendência de Trânsito, se é que no órgão existe algo tão técnico e profundo.


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 98, 23/5/1999)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Hamiltão, na prática, revela o truque: o que vale não é aquilo que se diz, mas como se diz



Ventos de agosto

Penteadíssimo, botei a cara na ladeira. Os ventos de agosto me apanharam à porta de casa e me levaram ao ponto de ônibus.
Fiquei ali um tempão, no côncavo da frente fria que se abatera sobre a cidade, imaginando com que enganar o leitor esta semana.
Diante de mim havia bela carroceria metida em justíssima calça preta. A moça – a dona da carroceria – não me dava a mínima bola. Até aqui, nada de assunto para crônica.
Na verdade, assunto não me falta. Acontece que o negócio de mexer com a minha vida entrelaçada com outras vidas assusta um pouco a freguesia, pois há quem duvide de meu bom senso.
“Esse cara”, neguinha pode pensar, “vai contar pra todo mundo, e por escrito, que eu dei pra ele.”
Peguei, leitor, peguei a explicação para tão longa abstinência.
Mas, por cima da explicação, bate crudelíssima dúvida: será que tenho tantas leitoras assim?
Se a coisa continuar no pé em que está, vou botar anúncio no “Classiamor” do Diário da Manhã – o que me levaria a entrar em competição direta com a moçada do Cepaigo [Centro Penitenciário Agroindustrial de Goiás, hoje com outra denominação].
Enfim, apareceu o ônibus. Sem pressa, subi os degraus atrás daqueles hemisférios languidamente móveis que recheavam a calça acetinada da jovem.
Os hemisférios, por breve momento à altura de minha cara, pareciam zombar de mim, o olho nos meus olhos. (Ai, preciso urgentemente...)
Um coleguinha que me acha pra-baixo disse que eu deveria aprender a fazer “egomarketing” (depois de tanto trabalho tentando aprender a ser só...).
Merdíssima nenhuma. Não necessito de nenhum apelo estilo spotlight. Quero atrair apenas uma parte da humanidade – a parte feminina. Só.
Isso a gente faz com discrição e charme, não com presepadas chamadas autoestima, o egotismo disfarçado de alto-astral (ou será, por aproximação, autoastral? Não tenho aqui nenhum manual de autoajuda para dirimir a dúvida).
Não faltam mocinhas a me oferecer alma e coração, é certo. Mas não sei por que descargas d’água isso é tudo o que estão dispostas a dar. Elas me pegaram para cristo, só pode.
Dentro do ônibus não vi novidade. A mesma massa a se comprimir, a mesma sovaqueira, as mesmas pisadelas, os mesmos trancos. Sem novidade.
A determinado ponto entrou uma mulher de velocímetro já meio carregado, vestida com elegância e a ostentar monumental cabeleira mogno.
Ela, majestosamente, abriu caminho entre a caboclada ignara do subúrbio. Trazia no peito uma espécie de outdoor.
Aliás, a propósito do cabelo mogno da mulher. Recorro mais uma vez a manual de Nestor de Holanda, para quem os puristas não gostam que se diga acaju. Galicismo.
Mas o jornalista justifica o ponto de vista da dama do society: “Cabelo acaju é uma coisa; cabelo mogno não dá ideia do que o cabeleireiro cobrou.”
No nosso caso, como se trata de cabeleireiro de periferia, vai mogno mesmo. Afinal, a tabela de preços é afixada logo à entrada do salão de beleza.
No outdoor, isto é, no broche enorme que a mulher trazia... Ah, en passant: broche, como se sabe, também é francesismo. É por isso que a moçada de hoje prefere button, no castiço inglês de Rosenwal Ferreira [que, assim como todo publicitário, escreve “bottom”, grafia que está mais para bunda do que para o detalhe, na ácida observação do cronista].
No button da mulher (não no botão, atente-se), no button estava escrito em letras negras: “Comece a emagrecer agora”. Depois, letras vermelhas: “Pergunte-me como”.
Ela, apesar da certa quilometragem, era a própria garota-propaganda, ao vivo vivíssimo. Havia – mas relevemos – alguma banhazinha meio que dissimulada. O que justificaria mais uns dizeres: “Já fui bem mais gorda, juro”.
Desci do ônibus e, empurrado pelos ventos de agosto, por fim cheguei à redação da Gazeta, desgrenhadíssimo. E aqui estou, ainda sem assunto para a crônica da semana. Sem assunto vou ficar, pronto.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 111, 22/8/1999)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Texto burocrático. Não propriamente chato, porque o estilo é brilhante


O superguarda de trânsito


O Detran está de parabéns. Conta em seus quadros com um funcionário cujas qualidades sobrenaturais causam arrepio até neste incrédulo cronista.

O guarda especialíssimo a serviço do Detran não apenas vê o invisível, como pode estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. Temos aqui, portanto, um atributo divino, a ubiquidade, aliado à capacidade de voyeur do Super-Homem.

Só que o Super-Homem usava o dom para apreciar a calçola da namorada (quando o besta podia ir além), e o guarda de trânsito o tem para a prosaica e pouco excitante atividade de ler placas de carro ilegíveis.

O milagre é comprovado pelo Auto de Infração A46275. A Bernadette Soubirous, no caso, é o pacato cidadão cumpridor das leis chamado Jaime Pereira Cardoso, brilhante funcionário de O Popular, e a Lourdes é a nossa surpreendente Goiânia.

Amigo cá do degas, Jaimão me procurou para relatar o imponderável evento, em vez de procurar o papa. Na verdade, ele não está interessado em pedir a canonização de ninguém.

A aparição da Virgem Maria, aliás, do guarda deu-se às 18h49 do dia 26 de abril, conforme o auto (que não é o da Compadecida). Ou seja, 49 minutos depois que Jaime assumira suas funções, como pode atestar o departamento de pessoal do jornal.

O bom moço mora no Setor Urias Magalhães e faz todos os dias o mesmo trajeto: Avenida Goiás Norte-Marginal Botafogo-Serrinha. A Virgem, aliás, o guarda registrou a falta “gravíssima” na Avenida T-2, Setor Bueno.

O milagre trouxe para a vida do dedicado trabalhador a cobrança de R$ 140,69 e sete pontinhos. E Jaime, mesmo com toda a fé do mundo, reluta em fazer a promessa de pagar a multa, com ou sem os “20% de desconto já incluso”, apesar dos R$ 6 de FHC [Fernando Henrique Cardoso, à época presidente do Brasil; a mixaria se refere ao “reajuste” do salário mínimo do ano].

O caso não é o mesmo da moça que foi multada por pilotar sem capacete. Isso porque o Monza que ela conduzia fora flagrado por um guarda normal, suponho. Nem o caso do dono de carro multado por estacionar no interior da própria garagem.

Fatos assim acontecem, porque são da vida terrena.

Surpreendente mesmo é o fato de um agente do Detran postado na Avenida T-2 anotar à noite o número ilegível da placa de um carro com o motor já frio no estacionamento da Organização Jaime Câmara.

Mas Jaimão, homem de boa vontade, acredita que apenas houve um mal-entendido, e pede reparação. Em troca, em nome da fé cristã, concederá o perdão àquele que, em momento de fraqueza, se deixou cair em tentação.

Ele me conta que ao voltar do trabalho, 15 minutos depois da meia-noite, logo no comecinho do dia seguinte ao dia em que recebera a notificação, foi parado por dois pê-emes, que lhe gritaram a senha: “A cidade contra o crime!” (Não gosto do sinalzinho do barulho, mas voz de polícia não soa bem sem ponto de exclamação.)

Meloso (como se deve ser na presença intimidadora da Autoridade), o “menino Jaime”, encarecidamente, pediu a um deles que lhe conferisse a placa (do carro) e atestasse a incorreção do auto de infração.

O moço da tolerância-zero garantiu que não havia nada de errado com nenhuma das chapas de licenciamento do veículo. No entanto, recusou-se a registrar o fato no documento, o que se deveria fazer em qualquer lugar onde se desprezasse o excesso de burocracia.

Mas, quem sabe, a recusa se devesse ao fato de o fato ser tão concreto, tão claro, tão facilmente constatável... A vocação para o sobrenatural deu voz quase de gente comum ao policial: “Isso não é de minha alçada.” (A contrição exige a ausência do ponto exclamativo.)

Claro, ele não cometeria a imprudência de arrostar o poder divino.

Coube a mim, e não ao papa, ouvir as lamúrias do amigo. “Sempre fui cumpridor de meus deveres, sempre obedeci às leis de trânsito muito antes do novo código e, ainda por cima, paguei os impostos do veículo antes do vencimento.”

Não adianta, Jaimão. Se quiser se livrar dessa, vai ter que enfrentar burocracia da pesada, a burocracia do celestial Detran. Quem sabe o todo-poderoso se apiede...


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 96, 9/5/1999)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Os gênios incompreendidos às vezes se deixam contaminar pela presunção dos que os cercam...



Doença ocupacional

Ao revisitar Lisístrata, peça teatral de um matuto chamado Aristófanes, encontrei (reencontrei) vários erros de concordância verbal do tradutor e “adaptador” Millôr Fernandes, a partir da nota introdutória, cujo título também tem erro: “... como e porquê”. [Em respeito aos leitores de outros países que visitam Vida Cambaia: no Brasil, a palavra “porquê” é substantivo (o porquê), enquanto a conjunção “porque” (por + que) se grafa separadamente (por que motivo). Como diria o colunista José Simão, não há reforma que dê jeito.]
É vício, ou melhor (ou pior), é doença ocupacional do indivíduo isso de ficar vendo erros em tudo o que lê.
É duro não poder saborear sossegadamente uma boa leitura sem ficar tropeçando a todo momento em errinhos que não seriam notados por pessoas normais e felizes.
(Boa leitura? Há quem goste muito de Márcio Souza. Até apreciei A Resistível Ascensão do Boto Tucuxi, apesar de chorar o tempo todo sobre cadáveres gramaticais e perder a coragem de encarar Galvez Imperador do Acre, “10ª edição revista pelo autor”.)
Não gosto de apontar deslizes gramaticais em texto de ninguém. Cometo os meus, e também não acho bom que neguinho fique debochando de minhas escorregadelas, ou mesmo de meus escorregões de arrebentar o pobre glúteo.
Quando o dever me chama, não me importa nem um pouco que o autor fique com o queixo pousado no meu ombro para acompanhar a revisão e “sentir”. (Epa, peraí, peraí... Sentir mudança de estilo, quando necessária.) Se ele não quiser acompanhar a minha leitura, faço as correções caladinho.
Leio e não dou sequer opinião a respeito do que li. Se neofitozinho estiver mesmo interessado em pegar o tchã ou brigar comigo, que observe o trabalho com atenção depois de publicado.
O que pega mal é sujeito apontar erro errando. Já vi maganão cometer dois ou três em frase miúda para apontar unzinho de coitado com quem não se deveria perder tempo.
Agora mesmo estou com o toba arrochado.
Todo mundo já viu aquela advertência nas saídas de Goiânia e comentou sobre ela: “Fiscalização eletrônica à 500 metros”.
Eis como o monumento de O Popular Ivan Mendonça, na coluna “Giro” do dia 19, informa, sob o título manjado de “Flor do Lácio”:
“Na GO-020, na saída para Bela Vista, o Dergo atropelou a língua portuguesa ao colocar uma crase a mais nas placas anunciando fiscalização eletrônica a 500 metros.”
Esse “uma crase a mais” é demais, ó meu. Principalmente se considerarmos que não há nem uma crase no alerta do Dergo. O que há é um diacrítico que não deveria estar lá.
Sem querer ser professoral, tolerante leitor, crase (no caso da letrinha a que se quis conferir tal papel) é a fusão da preposição “a” com o artigo “a”.
O sinalzinho, coitado – o acento grave –, apenas indica essa fusão, como aliança em dedo de homem safado, aliás, casado. [Há quem defenda o uso desse acento nos monossílabos resultantes das contrações de “para a” (prà) e “para o” (prò), que em Portugal se grafa também com o agudo (pró), ou seja, o monossílabo é considerado tônico. Haja acordo.]
Já houve coisa mais grave. Nestor de Holanda, em sua cartilha citadíssima neste espaço (A Ignorância ao Alcance de Todos), diz que o recordista (na época, década de 60), tratando-se de busca à crase, era Max Gold, “repórter lítero-recreativo”. [Aqui, o Acordo Ortográfico ainda não permitiu um acordo: lítero-recreativo ou literorrecreativo?]
Holanda lembra que, quando divulgador da Rádio Guanabara, o “beletrista” enviou nota aos jornais afirmando: “A programação é á seguinte...”
“Errou, assim”, explica o jornalista, “duas vezes, numa letra só, o que jamais foi conseguido por qualquer campeão”, porque aí não há crase e, se houvesse, o acento não seria o agudo.
Bem. De Lisístrata passo para As Nuvens, na tradução de Gilda Maria Reale Starzynski, que, ao que parece, não menosprezou o leitor fazendo adaptação (ou “ampliando o humor”), o que poderia ser feito durante a montagem da peça.
O vício de ler demasiadamente com os olhos é uma doença. O cara sai do trabalho, pega um livrinho para relaxar e continua trabalhando. Só que dessa vez sem remuneração. Ô sina.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 118, 31/10/1999)