sábado, 12 de abril de 2014

Hamiltão em hora absurda. Mas outra vez “de cabeça leve”


Weligton do salão

Fui à barbearia.
Sim, leitor de boa vontade, é necessário que você vá ao texto anterior, para relembrar ou, caso não o tenha lido, tomar conhecimento. É claro que eu poderia “colar” aqui o trecho que interessa. Mas o que me irrita mais do que repetir e repetir é ter condescendência para com a preguiça do leitor. Ah, sim, talvez me irrite mais ainda a preguiça de autor que faz remissão a links para que os leitores se virem, em vez de encarar o trabalho dele historiando um pouco. Só que isso não interessa, pô.
Aliás, nem sei mesmo o que interessa.
Vivo em meio a contrassensos. Mais um não vai acabar com o que me resta de humanidade. “Eu poderia dizer que fui à barbearia se a pessoa que me desbastou as cinéreas madeixas fosse do sexo masculino, o barbeiro”, escrevi no texto que acima – inutilmente, vejo bem – sugeri ao leitor.
Há pouco, dias atrás, semana que passa, fui a uma barbearia que se chama Weligton do Salão. Imagine o fiel leitor se o nome do salão de beleza da Eliane fosse Eliane da Barbearia. Isso não pegaria bem para muita gente de bem. Nem se fosse Eliane do Salão.
Pauso-me, diria (não tenho certeza) Fernando Pessoa. O olhar de lince do leitor me incomoda, embora eu não saiba que diabo é lince. A barbearia que, num repentão, surge na rota do meu ônibus (que aliás pertence a uma concessionária do serviço público), um pouquinho antes do ponto em que desço a caminho de casa, representou a resposta a uma emergência, e não uma traição à minha barbeira. Se bem que Welington (com ene, como está no certificado na parede, no alto do espelho) tem uma mão boa, profissionalmente falando.
Sim, pauso-me. O nome do rapaz está grafado na fachada da modesta sala do jeito que o reproduzo no título desta crônica, mas no certificado de conclusão do curso de cabeleireiro – ministrado por meio de convênio entre governo federal e prefeitura – está com um ene entre o ele e o gê, como discretamente expliquei entre parênteses. Aí é que entra o tal olhar de lince do leitor. “E se na certidão de nascimento do moço ‘Welington’ for ‘Wellington’, com dois eles?”, insistiria um arrogante qualquer. Se me coubesse escolher os leitores, não escolheria gente tão infeliz.
Acho-me no direito de renovar o meu pausar-me para outro esclarecimento, já que o mundo das minudências me sufoca.
Disse, no já chatíssimo texto anterior, que ia ao barbeiro “a cada dois ou três meses”. Não é uma mentira, é uma imprecisão. Os órgãos de imprensa em que tenho trabalhado não costumam pagar os funcionários em prazo tão curto. O corte de cabelo, em qualquer lugar, é “à vista”, embora, no desespero e recorrendo a este meu charme infantil, por duas vezes cavei um “fiado”.
Não, não foi traição. Desde que a longilínea morena me aparou a guedelha pela primeira vez, mantive-me fiel à tesoura dela. O devasso leitor concluiria que essa lealdade se estendia às longas pernas morenas dela, o que não é verdade, mesmo que eu admita que tal verdade não me obrigue a nenhum juramento.
Mencionei o cheiro a milho verde que emanava do vulto que volteava a cadeira de barbeiro em que me sentava. Rejeito, veementemente, a observação de minha colega de trabalho que tentou desqualificar aquele aroma vegetal quando exalado por corpo humano. Dispenso o leitor de recorrer ao (meu deus) texto anterior.
Não mencionei o ventre, aquele ventre macio e, digamos, leve que me roçava os braços arrepiados que se apoiavam nos braços da cadeira. Não mencionei, nem devo, aquela sensação (apenas sensação) de coisa grossa que me crescia entre as coxas. A minha alma computou tudo isso como a manifestação poética de um momento novo. E o ofegar que me chegava à nuca era algo imaterial, ilusão táctil talvez, ou talvez o zéfiro do cair da tarde.
A última vez, estes meses atrás, em que estive no salão dela, as coisas não decorreram exatamente assim. Ela exibiu um pelo retorcido de 12 centímetros que me arrancara da orelha esquerda, o qual estivera escondido no desgrenhado geral da cabeça. Disse algo sobre o lobisomem da idade, e quase elabora um discurso dialético-existencial com aquilo na mão, voltada para duas garotas que aguardavam atendimento, enquanto eu a observava pelo espelho.
A esta altura o leitor se pergunta se foi mesmo por causa de uma emergência que procurei a barbearia do Welington. Foi. E fico por aqui, fazendo força para não voltar ao assunto.
Contrassensos, ah, contrassensos.
O nome do estabelecimento bem que poderia ser Salão do Weligton, mas não me compete pensar pelos outros. Pauso no que penso, diria Fernando Pessoa (ou outro poeta metido a bacana).

Hamilton Carvalho

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Não há novidade no front, entre um ano e outro. O mesmo labirinto, a mesma linguagem arrevesada

                                                                                                    [Imagem de master1305 no Freepik]



De cabeça leve


Vai que eu esteja assim mesmo no ano-novo, o otimismo imbecil a se derramar pelo canto dos lábios junto com a sidra Cereser morna, furta-cor à luz esbodegada do puteiro de Tia Alzira. Vai que eu tenha emprego – ainda que fodido e mal remunerado como sempre – e possa “socializar” um 13.º com os meus pinguços. Assim: de cabeça leve feito espanador de diarista canadense ou mão de amigos invisíveis.
Mas não é o caso, no meu caso. E, se fosse, seria suspeito.
Fui ao salão de beleza. Eu poderia dizer que fui à barbearia se a pessoa que me desbastou as cinéreas madeixas fosse do sexo masculino, o barbeiro. Se fosse para me repetir, poderia explicar ao leitor por que de uns tempos para cá tenho minha preferência voltada para cabeleireiras, que não me fazem a barba, da mesma forma que não me faziam a barba os barbeiros de antigamente, os gentis rapazes de jaleco branco do Salão e Barbearia Charm, Rua 6, Centro, frequentado exclusivamente por homens. O “Salão” na placa indicava que havia manicure (sexo feminino) à disposição dos executivos (hoje CEOs).
Não sei. Acho que nos tempos que correm ninguém mais se barbeia em barbearia. Talvez Carlinhos Cachoeira, sei lá. Mas também ninguém mais envia pajem a determinado profissional com a missão de entregar uma cabeleira para ser empoada. Ou será que ainda? Não sei.
Ora, etimológico leitor, vamos lá à origem perdida das expressões, ou vamos ficar aqui a conversar sem compromisso, como de costume, até o fim dos tempos ou apenas até o fim deste ano?
Pois é, então. O salão é uma pequena sala (eh idioma) de porta única enviesada para a praça da feira de domingo. Ao longo da parede fronteira à dos espelhos, um banco para bundas de espera. Entre ele e a bancada com suas escovas e cremes, duas cadeiras de barbeiro – humildes, acanhadas, duras. Não são Ferrante.
O patético é que são duas cadeiras. A mulher trabalha só, provavelmente por não ter como pagar alguém para ajudá-la. Mas a outra cadeira está lá, de prontidão, o tipo de prontidão que sempre reservamos para o lugar ao lado, o da esperança.
O leitor me conhece, e desconfia.
De manso e de fino, desço à prosa rasteira para contar de minha primeira vez com aquela mulher, ela como cabeleireira, eu como portador da própria cabeleira.
Pensando melhor, não vou me estender sobre isso. Digo apenas que relutei, não queria, não tinha coragem de cruzar aqueles umbrais e me deixar tosar por aquelas mãos que estavam sempre a folhear revistas por não haver clientes com que se ocupar.
Quando me jogava Ladeira do Vento abaixo e amarrava o burro naquelas paragens era para tomar cachaça no bar do Lucimar – nome aliás de namorada que tive nos longínquos tempos amazônicos – ou para comprar quiabo em ressacadas manhãs de domingo. E, claro, a cada dois ou três meses para que me aparassem a guedelha na barbearia que fica loguinho depois do bar.
Ao me arredondar na curva e avistar bicicletas miúdas deitadas na calçada, à porta da barbearia, era acometido de desânimo e – por que não? – raiva. Estava ali uma espécie de gangue de adolescentes cujos cabelos, parece, cresciam ao mesmo tempo e no mesmo ritmo.
Os barbeiros, dois jovens irmãos compositores de sertanejo, se deliciavam com aquela turma, e em cada cabeça cada um deles se demorava a seguir minuciosas instruções. Falavam dos mistérios do show business ou interrompiam o trabalho para trautear trechos da própria lavra, usando o pente à guisa de batuta. Aguardando a vez, havia sempre um garoto a dedilhar o violão que tinha lugar reservado na mesinha de intocadas revistas.
E os bocós, ah, esperávamos.
A salinha do salão ao lado ficava sem nenhum cliente. A dona, longilínea morena, pernas cruzadas, folheava uma revista.
Lucimar é um desses comerciantes que se cansaram do medo de assalto. Transformou o bar em distribuidora de bebidas, o que significa que passou a atender a freguesia por telefone ou através das grades que mandou instalar no estabelecimento. Num começo de tarde de sábado estava do lado de fora, no passeio, certamente entediado por não se sacudir ao longo de um balcão disputado por gente como eu.
Era inevitável que ele me retivesse para além dos cumprimentos, senti logo. Ao perceber o olhar de desconforto estético que me enquadrava dos ombros para cima, tentei como que uma justificativa: “Tô indo cortar o cabelo.” Ele, meio beicinho, mostrando um rumo qualquer: “Então vai.” Ficou a me observar enquanto eu caminhava pela calçada irregular.
Passei pelo salão da cabeleireira sem sequer olhar para dentro, para onde havia moreno par de pernas cruzadas. Eu estava esmagado pela quantidade de bicicletas miúdas deitadas alguns passos adiante.
Não, não me submeteria àquilo.
Retrocedi, sem pressa e sem ânimo. Mirei o salãozinho exatamente no momento em que a mulher resolveu levantar o rosto das páginas enfastiadas. Na maldita calçada irregular, tropecei em direção ao comerciante, que ainda me observava. “Tem muita gente, volto depois”, expliquei.
“Ué, cara, e ela?”, o amigo apontou. “Ela também é barbeira, cara.” Ante parva hesitação, praticamente me empurra: “Ela corta bem; vai lá.” Fui.
Na segunda-feira a colega de trabalho que se sentava do lado disse, para me aliviar das brincadeiras que os demais faziam a respeito deste coco nordestino: “Você ficou bem com esse corte.” Presumo que eu estivesse com o ar embevecido de poeta quando murmurei: “Ela tem um cheirinho de milho verde.”
“Quem?”, empinou-se a colega. Falei da barbeira. “Credo”, fez a moça, repentinamente ríspida. “Então essa mulher é fedida.”
É quando me sinto só, feio e enrugado feito passarinho que rompe a casca do ovo e sai para o frio cá de fora, sem a proteção de penas ou de asas maternas.
Não era assim que pretendia terminar a crônica, nem começar o calendário. Estiquei o texto sem dizer o que tinha em mente e faço a abordagem do ano como quem salta numa canoa. Prometo voltar ao assunto. Vai que acerte na veia e tenha motivo de brindar com o leitor, cabelo cortado, cabeça leve, à luz do puteiro de Tia Alzira ou, quem sabe, de novos tempos.

Hamilton Carvalho
(31/12/2013-1.º/1/2014)