Um assalto light
Domingo passado, este portento da intelligentsia latino-americana assistia ao programa do Gugu quando... Vamos ao onde primeiramente.
Estava eu na mercearia de meus amigos Sebastião e Lourdes, pernões cruzados, concentradíssimo na mancha de molho de mostarda na calça jeans mais que bufada, quando uma voz de veludo, transbordante de amor e bondade, me fez erguer os olhos para o televisor atrás do balcão.
Era Celso Pitta. Não, leitor; espere. Não desista. Continue a ler. Afinal, sem você não sou ninguém.
Com a mais humílima cara de pau, o prefeito de São Paulo, falando para todo o Brasil, pedia à ex-cara-metade que “medisse as palavras”. Fiquei fascinado, embora, degenerado como sou, fizesse tradução simultânea: “Cuidado com o que diz, sua cabra.”
Mesmo com um revólver apontado para o rosto, demorei a sair do transe hipnótico.
Revólver apontado para o rosto? Sim, leitor, era um assalto. Mas vamos por partes.
Quando aportei na mercearia de meus amigos, às 8 da noite, estava mais entediado que jegue de cangalha estacionado em frente de bodega à espera do dono, que conta lorotas e enche a cara.
Na televisão, num intervalo comercial (intervalo comercial... que coisa), Ney Matogrosso, serpiginoso, matava de vergonha algum compositor sério.
Simpático jovem, que ali tomava cerveja com um amigo, me perguntou candidamente: “Ney Matogrosso é gay?” Sorri e perguntei se era só agora que ele desconfiava. Ele sorriu de volta, simpaticíssimo. “Pensei que esse jeitão dele fosse porque todo artista é malucão.”
Foi aí que me sentei, apoiando cotovelo no balcão. Além dos rapazes, que tomavam da cerveja mais barata (R$ 1), havia um senhor escorado num freezer, também a golejar. Tiãozinho e a mulher estavam sentados atrás do balcão.
Ney Matogrosso cedeu lugar a Celso Pitta. Os rapazes pagaram duas cervejas e pediram mais uma ao Tião. Quatro pessoas no recinto, cujo silêncio era quebrado pela voz rastejante – pura humildade e amor – de Pitta.
Com dificuldade para sair do torpor, dei rápida olhada na arma que um dos simpáticos rapazes que tomavam cerveja ao balcão apontava para o meu nariz, e voltei a me fixar no vídeo cheio de Pitta cordeirinho.
Quando a ficha caiu (como costuma dizer o populacho), voltei a olhar para o moço do revólver, já ensaiando um sorriso para sorrir da brincadeira.
Mas era mesmo assalto. O moço me disse, baixinho, para ficar quieto, e passou para o lado interno além do balcão. O outro informou baixinho ao homem perto do freezer que era um assalto, encostando uma arma enorme, de cano serrado, no pobre rim direito do respeitável senhor.
O respeitável senhor, com a mão direita, tirou a carteira e disse para o assaltante que nela só havia documentos. Nisso, com a mão esquerda, ele, maroto, jogava R$ 85 para trás do freezer. O gentil assaltante devolveu a carteira sem abri-la.
Fiquei lá, sentado, pernões cruzados, olhando ora para um assaltante, ora para a televisão, ora para o outro assaltante, ora para Tião e dona Lourdes. Ninguém ligava para mim nem para o meu dinheiro. Parece que a cara da gente diz tudo.
Enquanto dona Lourdes tremia toda, o danado do Tiãozinho estava lá, calmão, a ajudar o ladrão a catar notas de R$ 1 na gaveta. Era a primeira vez que ele se via envolvido em assalto, mas não se abalou. Nem parecia torcedor do Goiás Esporte Clube.
Os rapazes saíram sem terminar a terceira cerveja, a qual, aliás, se esqueceram de pagar. E custava apenas R$ 1. Mas deixaram algum troco para meus amigos.
Pessoas que estavam sentadas a uma mesa do lado de fora da mercearia nem sequer perceberam que ocorrera um assalto. Continuei sentadão, pernas cruzadas, a assistir ao programa do Gugu.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 138, 19/3/2000)
Uma pena. Quando a cerveja custava apenas R$ 1, eu ainda não bebia...
ResponderExcluirNo mais, queria apenas reagir a assaltos da mesma forma que você.
Obrigado pela atenção, pela leitura qualificada.
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