terça-feira, 16 de agosto de 2011

Hamiltão quer ser honesto. Mas acaba se perdendo. E como!

No esgoto

Não, o título jamais seria “No fundo do poço”, mesmo porque não suporto mais ouvir isso naquela voz rouquenha, com falso sotaque carioca, de bispos e pastores da Igreja Universal do Reino de Deus que ocupam quase toda a programação da TV aberta em determinados horários, com a intrusão, aqui e ali, de “outras denominações”. Percebo que os milagreiros da Iurd assimilam a dicção de Edir Macedo ainda quando obreiros – espécie de leões de chácara com faro especialmente desenvolvido para identificar repórteres. (Quer dizer, antes que a Rede Record abrisse tantas vagas para jornalista...)
É claro que o obsessivo leitor sabe que estive no fundo de um bueiro, modesto buraco sem espírito nem metafísica que não passaria, talvez, de dois metros de profundidade, concretamente implantado no meio de uma rua. Ou seja, o tipo de poço ideal para um materialista, que precisaria apenas levantar os braços e alçar-se para fora – e sem pagar dízimo.
A intenção aqui era realmente falar de um esgoto. A intenção era, porque o assunto já me parece sem interesse, sem significado e sem implicância metafórica. Na verdade, trata-se tão somente de vaga lembrança acordada durante a redação de texto sobre explosivo bueiro de uma apresentadora de TV.
Foi no tempo em que a gente morava na Casa da Água de Gasolina.
O nobre leitor de novelas inglesas poderá sentir-se ofendido com suposta ironia nessa designação de moradia brasileira, com maiúsculas e tudo. Creio que não se sentiria de outra forma mesmo que eu tivesse dito antes, tal qual Manuel Antônio de Almeida ao começar as Memórias de um Sargento de Milícias, “Era no tempo do rei”, pois aqui não há rei além de Pelé, nem nobreza que não seja a dos meus leitores.
Com isso, e a pronta condescendência de quem me lê, explico que o nome da casa se justificava. Para meu começo de conversa (excluída a embromação aí de cima), ele foi criado por necessidade de crianças “crescidinhas” cheias de recordação das diversas residências que tiveram. “Você se lembra do nosso conjunto de rock?”, faz alguém em sereno momento de evocações. “Foi na Casa da Água de Gasolina.”
Havia um posto de combustível... Certo, leitor meticuloso, hoje não se diz conjunto e sim banda, que não é a que Chico Buarque via passar. Mas a história registra também, entre uma e outra qualificação, “grupo de rock”. Isso faz parte da evolução da humanidade, embora não faça parte da evolução deste maldito texto.
Aliás, estou me lixando para qualquer pretensão que possa ter havido ao me embundar diante do teclado.
A banda era formada pelos Cinco Pequenos, expressão que conferia status e privilégio aos menores dos oito filhos de meus pais. A minoria nunca aceitou pacificamente a “discriminação”, razão por que eu – especificamente eu, o mais “atentado” – vivia cheio de hematomas.
É preciso situar o leitor, antes que me perca mais ainda. Os hits da época ficavam por conta de Little Richard (“Tutti frutti”), Neil Sedaka (Oh Carol”), Paul Anka (“Diana”) e Elvis Presley, que também interpretou “Tutti frutti” (“Ture frure”, na versão dos Cinco Pequenos). Anka é o parceiro (involuntário) de Michael Jackson em “This is it”.
Como ninguém sabia inglês, a gente improvisava a letra das músicas com o som aproximado de palavras em português ou palavras que nada significavam. Desconfia-se de que eu era o crooner da banda, dada a escabrosidade das versões. (Qual é, leitor? Sei muito bem que hoje se diz vocalista e não crooner.) Mas minha irmã Lúcia, mais nova que eu, não ficava muito atrás de mim no entusiasmo. Ela conseguia aproximar o tom de “Rip it up” a “Pires de Pirela”, em fantástica performance com uma lasca de lenha à guisa de guitarra.
Ah, sim. Para quem não vem lá de trás comigo: Pirela era um jegue de gigantesca caceta, manco, que circulava pela cidade inteira a ruminar suas segundas intenções. O pires da letra improvisada pela mana era a glande achatada que coroava a rola fenomenal.
Nossos shows se realizavam no quintal, que terminava em um esgoto. A cisterna, no entanto, ficava abrigada em uma área que dividia a cozinha e o banheiro do restante da casa. O forte cheiro de gasolina da água devia ser por causa do posto de combustível que ficava do outro lado praça.
Aceita-se o passar dos tempos, pois não? Dias atrás estive em um pub de Goiânia, e houve certa estranheza. Não de minha parte, leitor intolerante, porque entendi perfeitamente bem o constrangimento da garota que me acompanhava quando a dona do estabelecimento veio até mim e perguntou se eu era o pai dos “meninos” da banda. Entendi. Mesmo assim a caçamba me deixou no fundo do poço.

Hamilton Carvalho

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Em nova fase, Hamiltão vem com tudo. Esperemos que mantenha o fôlego


O bueiro da Ana Maria Braga

Tudo aquilo era falso, leitor. Mas, como sou muito crédulo, pensei testemunhar o Bairro de Ipanema depois de desastre nuclear: completamente deserto – exceto pela presença de intrépida repórter que, calçando mitenes pretas, empunhava um microfone. Na verdade era a apresentadora de TV Ana Maria Braga, e a Ipanema seria “cidade cenográfica” das Organizações Globo.
Chego à conclusão de que desemprego imbeciliza. Que é que eu tinha que ficar a ver programa matinal de televisão? Num lampejo de lucidez, passei a odiar a apresentadora ao me descobrir tapeado. Tudo bem, tudo bem: confesso ter notado que caíra no logro somente depois que ela mesma, magnanimamente, admitiu que aquela reportagem sobre bueiros explosivos se tratava de brincadeirinha.
Era simulação que contava com deslumbrado pesquisador da Universidade Federal do Rio. Entro no assunto com atraso, da mesma forma que a Ana Maria (esse “da mesma forma que” é para não usar o “como”, que poderia ser confundido com o verbo comer), e o leitor não precisa ser informado de que me refiro à onda de explosões de bueiro da Light, a companhia de energia elétrica.
Por sinal, trabalhei na empresa que fazia os buracos da Light. Os escritórios dela ficavam num oitavo andar da Rua 7 de Setembro, ali pertinho da Avenida Rio Branco. Naquelas redondezas, hoje, saltam tampas de bueiro mais pesadas que a do bueiro da Ana Maria Braga. (O Pasquim vivia a debochar dos buracos da Light, como se seus colaboradores soubessem que se armavam bombas de efeito retardado em algumas décadas, ainda que, também ali pertinho, haja explodido bomba de verdade na agência da LAN Chile, Línea Aérea Nacional de Chile à época dos bigodes de Pinochet.)
A minha vida é um bueiro de ressentimentos. Desta ausência de luz é que sai o meu humor, se é que dela sai alguma coisa além dos miasmas de sonhos decompostos. Mas eu poderia abrir, se não um túnel, uma nesga de tolerância para deixar entrar o ar do espírito esportivo da Ana Maria Braga – por mais suspeito que ele seja, desde que a produção do programa passou a inventar “reportagens especiais” na disputa por audiência.
Ah, leitor, sou forçado a admitir que, no início, fiquei encantado com a enriquecedora linguagem da anti-José Luiz Datena da televisão brasileira. Enquadrada pela câmera ela, molemente, sem nenhum toque de sensacionalismo, anunciou: “Estou aqui de permeio a um bueiro.” De imediato, a voz sobressaltada do Louro José esganiçou: “Sai daí, sua doida.” (Informo a quem não gosta de perder tempo que Louro José é um papagaio de borracha que se mexe em cima de um balcão, embora a voz dele provenha de um coitado que se esconde sob o citado balcão.)
Quando a imagem enfocada se distancia, percebo que é o bueiro que está “de permeio” entre a apresentadora e a câmera. Mas não importa. O que importa é o empenho da dama no enriquecimento da linguagem deste exuberante país. Ela, nitidamente, não quer rastejar no campo minado do linguajar comum.
Sim, leitor, é de propósito que uso esse “campo minado”, para arrastar você, quase militarmente, não para a guerra, mas para o bairro da Crimeia. Na realidade, existem dois bairros Crimeia em Goiânia, o Leste e o Oeste. Também como fruto de fertilíssima imaginação, há aqui as vizinhas Vila Nova e Nova Vila e outros “residenciais” e “setores”: Goiânia 2, Goiânia Viva, Universitário, Leste Universitário... É por isso que não me perco na vida: tenho Goiânia para me perder. Mesmo que não venha ao caso – se é que há algum caso –, acrescento, ainda, que morei em outro Crimeia, desta vez em Anápolis (mais conhecida como “cidade de Anápolis”).
É de propósito que aqui chego, e me mantenho no assunto.
Foi, pois, no Crimeia Leste que estive mais “de permeio” a um bueiro do que a Ana Maria Braga. Tratando-se de algo verdadeiro, com sólida tampa de ferro, alguém quis faturar uma graninha, provavelmente (agora não há nada de provável) em um ferro-velho, como hoje se faz à custa da fiação elétrica dos postes. Levaram a tampa e deixaram para mim o buraco aberto bem no meio da rua. Nele caí verticalmente, já que não poderia cair na horizontal. De emprego novinho, corria para pegar o ônibus, cara torta para o lado de onde ele deveria surgir.
Enfiei-me direitinho naquela cava hiante, como se diria em bom linguajar. Simplesmente sumi, ficando invisível para quem estivesse de fora, e dentro, claro, não cabia nada além de mim e dos óculos embaçados pelo vapor da corrida.
Pensando bem, era bueiro tão falso quanto o da apresentadora da Globo. Não me lembro de ter visto fios, nem dutos, nem túnel. Era só aquele sarcófago, que me envolvia feito uma luva.
Ah, por falar em luva. Talvez tenham sido aquelas negras e dramáticas mitenes da Ana Maria Braga que me induziram a acreditar na veracidade da explosão provocada pelo dedo do deslumbrado pesquisador da UFRJ. Isso porque, num ineditismo de sensibilidade artística, a dama do Mais Você abdicara das brancas, alvíssimas mitenes de sempre. Somente por aquela vez, espero.

Hamilton Carvalho

NOTA EDITORIAL

A partir de hoje, 3/8/2011, são postadas crônicas escritas especialmente para Vida Cambaia. A eventual inclusão de textos já publicados será assinalada com data e nome do veículo.