quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Xérox amarelada entre papéis destinados ao lixo. O acaso premia o leitor


Risos, lágrimas e palafitas

Meu amigo Resende não ficou de bubuia. A “estância” em que alugava quarto era alta, apoiada em compridas estacas de palafita.
Da janela, cuspíamos na superfície próxima e barrenta do igarapé crescido pela enchente do Solimões e do Negro.
Resende era um sujeito atarracado, de cabelos lisos e meio claros, de olhos grandes e verdes e de sorriso cheio de alvos dentões, que contrastavam com o bronzeado do rosto.
Fazia enorme sucesso com as mulheres. Ele por perto, não sobrava para ninguém.
Ria fácil, espontâneo. Ganhava todo mundo. Ao contrário de nós outros, amigos que se conheceram sobre o Rio Amazonas, em cargueiro, no percurso de Belém a Manaus, não passou dificuldades.
Era de Castanhal, Pará, e estava ali “fugido”, pois engravidara mocinha “assanhada”.
Nos primeiros tempos amazonenses, ocupou o mesmo quarto que eu. Comíamos quase sempre quitute e almôndegas em conserva, com arroz preparado numa espiriteira. Despesas – lá vai também aluguel – por conta do palerma aqui.
Nos momentos mais difíceis para mim, Resende não se apertava. Era sempre convidado para partilhar refeição com alguém, quase sempre com uma família inteira.
Quem mais o convidava para almoçar era o vizinho da casa da direita, um senhor com jeitão de próspero, que tinha um “motor” (barco a motor) e, oficialmente, transportava peixe. De que era o transporte não oficial? Não interessa, pô.
O próspero não escondia a antipatia que nutria a meu respeito, eu indivíduo calado na presença de estranhos, cara de fome e de pouca vontade, sempre jogadão na rede que trouxera na viagem. (Na terceira classe não há camarote, muito menos beliche.)
O próspero chegava à porta do quarto e convidava Resende para almoçar. Mal olhava para mim, mas fazia questão de descrever o cardápio (tracajá etc.).
O amigo também não abria espaço para que o convite fosse extensivo. O leitor, vivido, sabe de gente assim. Se eu, antipático, não existisse, não existiria o simpaticíssimo Resende. A coisa funciona por contraste, e o paraense intuía e explorava o fato.
Ele foi trabalhar no motor do próspero e se mudou para estância melhor. Depois, alistou-se no Exército. Não ficou de bubuia quando a enchente chegou.
Fui visitá-lo, pelo menos para tirar a bunda do molhado.
Raimundo, outro amigo de navio, maranhense, estava lá e contava a história do rompimento de seu noivado. Diante da noiva e chorando (chorava fácil), jogou a aliança ao fundo de um copo de cerveja e entornou o áureo líquido goela abaixo.
Ah, escatológico leitor, não me venha perguntar se posteriormente ele resgatou a joia. É provável, já que o anelzinho (o de noivado) foi depois protagonista de outra história com o mesmo enredo.
O maranhense voltou a ficar noivo da mesma moça, depois de tudo o que aprontara, e, em outra de suas fantásticas encenações, acabou de novo com o noivado.
Dessa vez, num rompante de indignação (meu deus), arrancou a aliança e a atirou no meio da sala, diante da moça e dos pais dela.
A rodelinha quicou no assoalho de tábuas mal-ajustadas e saiu rolando, rolando e – puft! – desapareceu.
Os quatro – Raimundo, a moça e os pais –, momentaneamente unidos pelo desastre, empunhando varinha, garfo, peixeira e agulha de tricô, vasculharam todos os regos do chão da sala.
Após muito tempo, tempo a escurecer, o furor foi tomando conta do grupo. Foi tomando e tomou completamente. Aí – crac! crac! craaac! – alguém arrancou a primeira tábua. Apareceram martelo, enxada, marreta e foice – e deu-se o mutirão da destruição.
A aliança deve ter sido encontrada, já que Raimundo ficou noivo de novo e, pelo que me consta, não tinha dinheiro para comprar outra.
Mas isso aí aconteceu depois da ingestão do ouro.
Ali, no quarto de Resende, o drama sentimental do rapaz nos fez rir a valer. O próprio Raimundo, embora moderadamente, também riu.
Mas o interessante mesmo era ver Resende rir. Ria com gosto, olhos brilhando, os dentões brancos à mostra.
Ainda ria ao abrir a porta para o carteiro.
Sério de repente, rasgou o envelope do telegrama. Com as pupilas fixas nas maiúsculas, começou a rir, os olhos brilhando, brilhando, até que as lágrimas despencaram de vez.
Continuava a rir e a chorar quando lhe tomei o papel e li: TEU PAI CORRE RISCO DE VIDA PT. Assim mesmo. Exíguo, barato, impiedoso o telegrama.
E Resende ria. E chorava. Nem falo de mim, porque até o cínico do Raimundo, que só ousava chorar quando envolvido em seus golpes de paixão, abriu o aparelho lacrimal.
O igarapé, sob a janela e para além das palafitas, descia pesado com a água barrenta da enchente.
A estância em que Resende morava era boa. Ele não ficou de bubuia.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 84, 14/2/1999)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Hamiltão vai à sapataria e implica com a solicitude do vendedor. É que ele não conseguia se alhear da presença “gostosa” de um grupo de garotas


Cerco ao comprador

Enfim, de sapato novo.
Para mim, é sempre ato constrangedor entrar em sapataria, ser abordado de cara por um vendedor e me ver seguido enquanto tento fazer a escolha.
Coisa chata, essa de vendedor colar na gente. Em livraria, então, nem se fala. Raramente entro numa dessas bodegas sabendo que brochura vou comprar.
Meu prazer é ficar calmamente perambulando entre prateleiras, a apreciar lombadas, a ler orelhas e a me decidir sem a presença impositiva de vendedor.
Tempos atrás fazia assim em certa livraria. Isso quando não era época de matrícula nos colégios e de listas de material escolar. Desconfiado do freguês, e acreditando que o movimento atrapalhava a vigilância dos balconistas, o dono da espelunca jogava a literatura para trás dos balcões ou para os fundos da loja.
Uma delas instalou filial “moderna”. Entrei ali apenas uma vez. Morro sem ler mas não volto. Uma vendedora colou em mim: “Pois não?” Era um pois-não a cada passo que eu dava.
Tentando me livrar da moça, disse: “Estou apenas dando uma olhada.” Ela: “Pode olhar à vontade.” Mas não me largou do pé, apesar de o estabelecimento estar quase sem movimento, o que permitia que ela me vigiasse de determinada distância, discretamente.
Com sapato é pior ainda, porque existe outro aspecto. Sempre tive problema com meias. Quando meus sapatos estouram, as meias já estouraram há muito. E aí existe aquela coisa de experimentar.
Vendedores nas sapatarias colam na gente porque há acirrada disputa entre eles. Brigam pela comissão.
Mas em livrarias e supermercados não é por causa disso, não. O infeliz do freguês já é suspeito logo que chega.
Estou lá no supermercado, bonachão, quando ouço voz de alto-falante: “Sorria, você está sendo filmado.” Já fico nervoso e, sem dúvida, com cara de quem ia cometer um delito.
Em supermercado de pobre é diferente. Entrei, comecei a olhar para aquelas coisas que pernóstico chama de gôndolas. O dono lá, seguindo-me com os olhos.
Chego ao fim do corredor, e o dono lá, na outra ponta, de olho. Passei de repente para outro corredor e observei: o homem, na outra ponta, deu um salto e caiu no mesmo corredor.
Tinhoso, não me perdeu de vista um segundo sequer. Ele, pai de nobre deputado [à época ainda vereador], devia ter suas razões para desconfiar do mundo.
Não gosto, mesmo, de comprar sapato. Aliás, não gosto de comprar é nada. Ainda que fosse turista de shopping center, não sentiria o impulso, a gana de adquirir coisas. Talvez pela falta do hábito de andar com dinheiro, cheque, cartão de crédito...
Certa vez, numa emergência, precisei comprar um par de sapatos. Estava com meias razoavelmente novas, já que apenas uma estava furada.
Para que o dedão unhudo não espantasse o vendedor e não me derrubasse a cara, era só experimentar um sapato. Simples, muito simples.
Procurei loja “em liquidação”. Antes de cruzar a porta, fui capturado por um vendedor, que depois me veio com uma montanha de caixas.
Sujeitinho solícito. Solícito até demais.
Sentado diante daquela montanha, aconteceu o que não devia: bateu-me um branco. Esqueci em que pé estava a meia sem furo.
O vendedor, solícito – solícito até demais –, não saía de perto, para que eu pudesse dar uma arriscadinha. Fiquei paradão ali, tentando me lembrar. Ah, o moço não se fez de rogado. Começou a desamarrar o cadarço dos meus sapatos.
Olhei para o lado, para o grupo inteiramente gostoso de garotas que experimentavam sapatinhos.
“Não, não é preciso”, disse, em pânico. “Eu mesmo faço isso.” O que fiquei fazendo foi unidunitê, em silêncio, com o rosto agoniado voltado para os pés.
Com lentidão, levando as entranhas para o cérebro, fui descalçando o pé direito. Devagar, muito devagar, fui puxando o chulezento para fora, procurando divisar o dedão antes que ele assomasse por completo.
Ufa. Sim, queridíssimo leitor, fiquei aliviado. Com exceção daquele cheirinho maldoso, tudo estava bem com a meia. Se tivesse a mesma sorte em loteria, faria uma coleção de sapatos maior que a de Frank Sinatra.
Depois de provar e aprovar o calçado, estava exultante. O vendedor, no entanto, solícito até demais, insistia para que eu provasse o outro sapato. Teorizava: “Não existe pé igual ao outro, exatamente do mesmo tamanho.”
Eu dizia que já estava atrasado para um compromisso. Nada. O moço, solicitíssimo e preocupado com a saúde de um dos meus pés, não desistia. “Não há nada pior do que um sapato apertado.”
Não era machadiano. Se o fosse, saberia que o enorme e gostoso alívio que se sente ao tirar uma botina apertada vale bem o incômodo do aperto.
Endureci e dei a disputa absurda por encerrada.
Agora, de sapato novo, não preciso mais esconder os pés debaixo da cadeira. Tudo isso porque ganhei, de presente, dois pares de meia. Um, naturalmente, vai ficar guardado para futura emergência.

Hamilton Carvalho
Gazeta de Goiás, n.º 83, 7/2/1999)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O pândego leitor pode saltar esta crônica. Aqui só há sofrimento


Ao sol do desespero

O sol de hoje quase me pôs à beira de ato semelhante ao da personagem de Camus em O Estrangeiro. Caía a pino, pesado, e fazia ferver o tutano desta carcaça, se é que tutano havia nela.
Igualzinho ao sol do desespero de tempos atrás.
Eu andava sem rumo pela cidade, horas e horas, sem sombra, sem água. O mundo se resumia àquela incandescência que me desbotava as íris, ao calor que me ardia nas virilhas suadas, à dor que tinha que doer mais.
Com os sapatos rotos e os pés em bolha, corroído pela sede, mas acrisolado, busquei o caminho de volta.
Ora, leitor sacana, vamos sair do pedantismo e tratar de coisa séria.
Na verdade, eu queria era falar de uma carona que peguei, creio que lá para as bandas do Garavelo. Não, não sei bem que região era aquela. Puro desnorteio.
Avenida larga, asfalto quentíssimo, ponto de ônibus sem abrigo, ônibus sem chegar. Ocorreu-me que aquela linha pudesse estar desativada. Então, pô, tomei a decisão de sair andando até encontrar via mais movimentada.
Mirei aquele estirão reverberante, aquelas imagens tremulamente longínquas. Empurrei-me para lá.
Após algum tempo de marcha dura debaixo do solão, o moral começou a se arrastar com os pés. Desejei carona, mas isso é coisa que ninguém mais se arrisca a dar a estranhos.
Tempos remotos, também dei minhas caroninhas. Claro, para meninas que caíam no meu terreiro, o que frequentemente acontecia, por exemplo, em Imperatriz, Maranhão.
Lembro-me de uma. Foi depois de reuniãozinha “social” e depois de muito jogo amoroso entre a fera aqui e morena cuja sensualidade cheirava a premência de sexo.
Driblei empata-chamego e introduzi a sereia na caminhonete que ficava sob minha suspeita responsabilidade. Meti o pé no acelerador quando atingimos a Belém-Brasília, empurrei a quarta marcha, e lá fomos nós.
(Você, leitor nada superficial, percebe o sugestivo emprego de determinados verbos: introduzir, meter, empurrar...)
A certa altura olhei para a garota e a vi tensa, “freando” com os pés. Reduzi a velocidade e estacionei de mansinho, como bom menino que jamais frequentara a Praça do Racha.
Imbecil, eu. Estraguei, por causa de besta entusiasmo excessivo, a preparação física de quase uma noite inteira. Aquela corrida desbragada e sem sentido, com um encanjebrinado ao volante, esfriou a tímida gazela.
Já que estava com a mão na massa, continuei na tentativa de rasgar-lhe o desejo.
Fria; tépida; quente. Quente mas não vulcânica.
Sim, leitor dono de pobre currículo sexual, para conseguir comer virgem em boleia, ela (a virgem) tem que estar em estado de erupção.
Mas eu já estava num ponto em que o egoísmo é inelutável, aquele ponto em que o sujeito passa a argumentar mais com palavras e menos com carinhos. Argumentos profundos, como um tal de “Deixa, deixa, deixa...” Nem o letrista Vinicius.
No entanto, deu certo. Deixou que lhe despisse a parte inferior do corpo, o que comecei a fazer de maneira meio que afoita e desajeitada. Sem nenhuma colaboração da menina, tirei-lhe a calça comprida.
Então, dei de cara (principalmente de mãos) com barreira intransponível. Sim, sim, intransponível.
A calçola, a legítima. Aquela cheia de presilhas, alças, botões, costuras, dobras e mais dobras, que chegava até a cintura. Pensei que não mais existisse tal horror.
Conhecera aquilo quando era pequeno, e assim mesmo porque era numa cidade do interior em que as mulheres faziam as próprias roupas de baixo.
A barreira só seria transposta à base de cooperação. A garota não se mostrava disposta a tal. Não queria, talvez, ter participação muito ativa em ato pecaminoso, aliás o supremo ato pecaminoso.
Meu deus, eu sofria mais que o prepúcio do “Maníaco do Parque” quando em ação. [Referência a um motoboy tarado que, à época em que foi escrita a crônica, atacava mocinhas em recantos aprazíveis da capital paulista; segundo entendidos, ele tinha bico-de-candeeiro, ou seja, fimose.]
Exausto e cheio de brio, por incrível que pareça, desisti. Pouco antes sentira grande vontade, confesso, de atirar-lhe a famosa proclamação: “Ou dá, ou desce.”
A desgraçada não me havia concedido sequer o consolo de uma mãozinha. Desceria, por certo.
Ora, quem manda sujeitinho querer molhar o biscoito ao preço de carona? Não é certo, não é justo, é abominável. A carona ter que ser dada com desprendimento, com desinteresse. O preço da molhadinha tem de ser o do amor. (Gostou, meloso leitor de folhetins?)
Já pensou se o carroceiro que me deu carona naquela tarde solzuda viesse para o meu lado com um dá-ou-desce?
Sim, porque peguei carona em uma carroça puxada a burro estropiado. Vermelho, de óculos no nariz escorregadio de suor, sacolejando, lá ia eu a tagarelar com um garoto que certamente não guardava nenhuma intenção estranha a meu respeito.
Lá ia eu, mais perto de mim, envolto na luz do poente sol do desespero. Tinha tomado o rumo do meu destino.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 82, 31/1/1999)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Espera-se que o leitor tenha passado pelas duas crônicas anteriores. Aqui, o roteiro cinematográfico ganha ritmo de thriller


Um órgão quase público


A índia me esperava em uma sorveteria, nas proximidades do cinema. Já devia estar chupando o décimo picolé de farinha de mandioca.

Afinal, eu fizera longa viagem de ônibus, ida e volta, para levar a casa o filho da vizinha, com quem assistíramos, a contragosto, ao filme Um Homem Chamado Cavalo.

Romântico sempre fui – mas sozinho, zanzando na rede. Na hora de encarar a xana, vou com gana. Com rima ou sem rima, dou em cima.

Ao ver aquela coisura ali, picolezinho na boca, esperando por mim, nem cogitei convidá-la para romântico passeio. Ela, jovenzinha sem experiência, também não dava mostras de querer cozinhar o galo.

Andamos um pouco por ruas calçadas de pedras e boas intenções, conversando leve, com parcimônia, nada profundo. Não discutimos antropologia nem nomenclatura. Ela não perguntou se meu nome se escrevia com á, tampouco perguntei se o nome dela era com cá.

Navegamos um tantinho em nossos sonhos, caminhando lado a lado, juntinhos, ao crepúsculo, a alimentar com toques casuais a chama sensual de nossa carne juvenil.

Pegamos, então, o ônibus que nos levaria ao bairro em que ela morava. Bairro novo, afastadíssimo do centro da cidade. Aliás, era a segunda vez que eu bateria por ali.

A primeira vez foi por farra. Nossa, que farra. Lembro-me de um boteco cheio de cachaceiros, de um violão e de um tambaqui assado. Lembro-me de meu amigo Raimundo, que, com os olhos rasos d’água, arrancava fundo do peito a canção “O ébrio”.

Conheci Raimundo no navio, no percurso entre Belém e Manaus. Seu cartão de visita foi uma garrafa de pinga. O ébrio...

Sempre apaixonado, furtava poemas de minha pobre autoria para ofertá-los às mulheres, sinceramente emocionado, um brilho de lágrima em cada olho.

Ah, tempos.

Quando a mocinha e eu desembarcamos, já era noite. A caceta, mal guardada na cueca, me doía. Oh, tesão sublime.

Ao descer do veículo, fi-lo meio torto com receio de que o aríete, em ponto de arremesso, ameaçasse a integridade moral das pessoas.

Mas não havia perigo. Eu envergava camisão cor-de-rosa, bem na moda, que me chegava quase aos joelhos e reduzia o impacto visual do priapismo.

Só então me ocorreu questão elementar: onde trepar? Ela morava com os pais e os irmãozinhos, e eu não tinha grana para pagar táxi e motel.

Além disso, motel, meu irmão... Motel, até hoje, me provoca a sensação de estar cometendo ato ilícito, quando foder é sempre uma bênção dos deuses.

Um pé de muro. Olhei em torno tentando lobrigar um pé de muro. (Lobrigar? Meu deus, estou cada vez pior...)

Ah, meus históricos pés de muro. Empregadinha caía em meu terreiro, cabelinhos untados com óleo de cozinha, e eu a acochambrava contra muro protegido pelas sombras da noite.

O cheiro, ah, o cheiro do óleo de cozinha mal-refinado daqueles tempos... Até hoje, quando frito ovo, acorda-me tamanha saudade...

Não, não havia adequado pé de muro naquela praça. Dois bares jorrando luz, casas idênticas, bicicletas ancoradas, mas nada em que abrigar a véspera de um orgasmo.

A possibilidade mais viável era um prédio público, talvez escola, localizado no meio da praça. Um dos lados era mais escurinho, já que não era diretamente atingido pela iluminação dos botecos.

Aflitamente priapesco, conduzi a dama até junto da parede, onde havia estreito passeio.

Ela vestia jeans. Baixei-lhe o fecho ecler. Baixei o meu fecho ecler. O zé-da-garoa saltou. Vibrou. Procurou o rumo. Não deu.

Para achar jeito, ergui a pequena índia e a pousei na calçada. Melhorou, mais ainda estava difícil. O troncoso, atravessando dois zíperes e entre dois pares de dentição metálica, penava para dar com o caminho do céu daquela bocetinha.

Bruscamente, um carro para, faróis altos, e as portas se abrem. De cada lado um vulto enorme começa a nos insultar. “Caiam fora, seus safados, se não quiserem levar bala.”

O lanhado membro escorregou, tombou. A garota rapidamente recompôs a roupa e me puxou pelo braço, já que eu ficara ali, inerte, rola para fora, sem fazer nada. A sorte era que o camisão da moda ocultava a desalentadora figura.

Cheguei perto de saber (e sentir) o que realmente significa a expressão “órgão público”.

Fomos andando, ela e eu, trôpegos iluminados, em plena praça, então com inesperada e animada plateia. Parecia cena de filme sobre a Ku Klux Klan.

A cada passo, eu sentia pontadas. É que, no embalo, o zé-da-garoa, desacordado, era mordido pelo fecho ecler.

É, sentimental leitor... Não há paixão que resista ao aviltamento. Quer faze? Levei a garota para casa (a dela) e nos despedimos com silencioso aperto de mãos.

E pensar que tudo começou por eu ter tido que levar menino cabeçudo para assistir a um filme cujo título é Um Homem Chamado Cavalo...


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 81, 24/1/1999)