quarta-feira, 29 de junho de 2011

Aconselha-se aos office-boys em geral a não se arriscarem no trânsito, por mais valiosa que seja a entrega


A mariola

Estava eu a tomar, tranquilamente, o habitual refresco de tamarindo, em pé, ali no Terminal Padre Pelágio, quando um menino me pediu 30 centavos para comprar chiclete. Negrinho roliço, com a aparência de quem esbanja saúde, despertou neste cavaleiro de triste figura a maior inveja.
Além da infinita precisão de ser amado (por ela), tenho outras, muitas outras, tantas que posso incluir até chiclete entre as minhas necessidades. Ah, as necessidades de cada um...
O garoto não tinha cara de quem estivesse com fome, e sei disso porque esse tipo de cara espelhou muito em minha vida. Ele tinha lá sua vontadezinha de mascar, o que não deixa de ser necessidade.
Não propriamente como a que tive certa vez, quando arrastava a minha asma pelas ruas do Rio.
Morava num sótão na antiga Rua General Pedra, n.º 10, que pertencia a um agiota português. Repousava a cabeça romântica em edição dominical do Jornal do Brasil, estirando a carcaça em folhas impressas espalhadas pelo assoalho.
Mas não, não vou me estender neste papo miserável. Sem falar que pode surgir alguém para dizer que plagio o norueguês Knut Hamsun, que escreveu um livro chamado Fome. (Quando, anos mais tarde, li a tradução de Carlos Drummond de Andrade, feita sobre texto em francês, me senti roubado.)
Bem. Vou falar um pouquinho da mariola.
Era hora do almoço e me dirigia para a mansarda. Para almoçar? Não, para me deitar e economizar energia para a jornada da tarde, olhos fechados, dor de ouvido e saudade, puta saudade de casa.
Mas eis que, da calçada da Avenida Presidente Vargas, vi o pequeno brilho no meio da pista. Fixei os olhos naquele ponto, e os carros que passavam eram apenas vultos velozes. Fiquei parado, tenso, e comecei a procurar brecha naquele trânsito nervoso. O brilho poderia ser uma moeda.
O sol tinia em minha testa suada, no nariz queimado, no ouvido a supurar. Puxei o ar fuliginoso da avenida para o peito, que deu um forte chiado, de agradecimento ou protesto. Armei o bote. Tinha que ser uma moeda.
Vupt. Dei um pulo que nem o João do, voei pela dianteira de um carro e caí na outra faixa da pista, com a mão ávida a abafar a rodinha de metal.
O chiado agora não era do peito. Um para-choque quase tocou em meu casaco marrom (que fora de uma das irmãs). Uns três carros frearam com fúria, outros se desviaram perigosamente para evitar o engavetamento.
Eu me levantei e corri para a margem da pista de dentro. O mundo todo parecia me chamar de filho da puta, o cândido menino de dona Branca.
Quase contente, marchei rumo à Central do Brasil. Pisando nas tábuas que serviam de passeio em torno das obras do metrô, cheguei a um tabuleiro sobre que se vendiam caramelos.
Numa pilhazinha tímida, vi a cobiçada mariola. Perguntei o preço à mulher sentada em um banquinho do outro lado do tabuleiro, abri a mão e olhei para a moedinha, molhada de suor. Era aquilo. Em estado lastimável, por causa de muito pneu e asfalto. Por ela, eu estava meio envergonhado.
Com o docinho de banana no bolso, caminhei para a General Pedra, logo ali atrás da estação.
Deitei-me no chão do sótão, à fresca penumbra, e metodicamente afastei o papel transparente, expondo apenas metade da mariola. Mordi maciamente. Meu almoço. Depositei a outra metade em pequena pilha de livros. Meu jantar.
Fechei os olhos e deixei o doce dissolver-se lentamente, sugado pelo céu da boca, que doía.
Quanto custa um chiclete? Não sei. No Terminal Padre Pelágio, virei de vez a metade que me restava do refresco de tamarindo.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, n.º 67, 16/9/2001)

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Coisas do tempo em que os japoneses ainda não faziam jabá de jegue, animal a caminho da extinção


Pirela

Ah, emoções que acordam velhas emoções. É como se Maria Purcina voltasse a jogar basquete no meu coração e... Ora, romântico leitor, por que tornar a falar da garota, se ela já foi objeto de embriagadíssimo texto deste desprezado cronista?
A ressonância daqueles tempos só me faz entender uma coisa: aprendi a controlar um tantinho os impulsos provocados pela paixão, o sarcasmo dirigido ao mundo, a dor tonta que me fazia lançar palavras como se fossem dardos envenenados. Hoje, acerbo, volto o grosso da tempestade para mim, eu digno de todo o escárnio de que sou capaz.
Na época de Maria e sua indiferença, uma de minhas vítimas prediletas era o “Pirela”. Coitado do menino. Lá ia eu para a rua, em frente ao Hospital Regional, sob os eucaliptos, para o joguinho de bola. Quando via aquela patética figura com o pé engessado, à margem da brincadeira, não resistia: metia um Pirela em frase maldosa.
Ele ganhou o apelido depois que fraturou o pé e por causa de um jegue manco, que tinha um casco enorme, virado para fora. Mas, pensando bem, não era para o menino ficar tão ofendido com a alcunha, já que Pirela, o jegue, tinha uma caceta fenomenal, a preferida de todas as jegas da cidade.
Curioso, aquele membro. Comprido e torto, quase a tocar o chão, era albino, em contraste com as demais partes do corpo. Somente a ponta (o “pires”, como a meninada chamava) era preta.
O animal tinha o dom de ser visto em todo lugar. Não havia quem não o conhecesse – e admirasse. Era um garanhão, no sentido humano e sem-vergonha do termo. O nome dele adviera provavelmente de Pirelli, o pneu. Mas juro que nunca vi pneu albino.
Em período de eleições, o jegue se transformava em outdoor ambulante. Havia político que, para usufruir do prestígio de Pirela, pichava o próprio nome no dorso do animal. Feito cabo eleitoral abnegado, com aquela caceta chamativa, o jumento fazia chegar a todos os bairros a propaganda de outro – serenamente, lentamente, e a ruminar pelos terrenos baldios.
Agora voltemos ao menino.
Um dia ele estava a ver o joguinho, melancólico como sempre, desde que ficara impossibilitado de participar. De pé diante da cerca do hospital, estendeu a perna engessada para um lado, igualzinho a Pirela, o jegue, e colocou as mãos para trás, à altura da bunda.
Um dos goleiros, vendo aquela pose, não se conteve. Botou o pinto para fora, fê-lo endurecer e o pousou ternamente na palma de uma das mãos de Pirela, o garoto. (Juro que não fui eu.) Num reflexo, o coitado fechou a mão. Quando percebeu o que era, deu um repelão na rola, e devidamente filho-da-putou o indecente dono dela.
A turma parou o jogo só para farrear em torno de Pirela. Claro, eu também. Afinal, Maria Purcina, havia pouquinho, dobrara a esquina sem dar nem tchum pra mim.
Com o fim da partida, à tardinha, fui para o doce recanto do meu lar, como diz o hino da cidade. Mal entrei, um estrondo no janelão da sala. Uma pedra atingiu o caixilho, por sorte não quebrando vidro. Pareceu um tiro. Meu pai, que estava no recinto, ficou pálido (devia ter seus motivos).
Saltei para fora e avistei Pirela a correr, manquitolando, para a casa dele. Fui ao encalço do infeliz, pegando a primeira coisa que vi pelo caminho, um pedaço de adobo. Ele entrou, fechou a porta. Então mirei a janela verde daquela casinha amarela, uma acanhada janela de madeira.
Aí, tarde demais, avistei os cabelos brancos da avó do garoto. Ela abriu a janela para receber na testa o torrão, que se espatifou. Em pânico, desabalei para casa e saltei o muro, para me esconder no quintal. Fiquei sem saber se a velhinha teve problema além de um baita susto.
Emoções, antigas emoções. Apesar de tudo aquilo que as novas emoções me trazem, por que falar de Maria Purcina? Nem tchum.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, n.º 49, 26/8/2001)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Foi no tempo em que blecaute virou apagão. Para “racionalizar”, o governo estabeleceu limite no consumo de energia elétrica nas residências. Cortes aleatórios


O banho

Aviso de corte de energia elétrica chegou à morada deste cronista de alma cambota. Hoje Liginha, a caçula, cronometrou o meu banho e – como se o ato fosse um atentado à liberdade – pediu desculpa. Mas não me poupou: “É preciso diminuir mais.”
Minhas filhas são assim, cidadãzinhas exemplares, embora tenham aprendido a não ser legalistas. Afinal, foram concebidas no breve descanso do guerreiro.
Já que a qualquer momento as trevas cairão sobre o humilde abrigo de pai e filhas que, não há muito, voltaram a viver juntos, não sei como chegar e dizer às meninas: “Olha... hum... quer dizer...” Umas tossidelas, esfregadas da palma das mãos suadas nas pernas da calça...
Não sei como chegar às meninas e dizer: “Voltem para a casa da mamãe.” É claro que elas iriam adorar, e a mãe também. Mas ficariam frustradas, porque acreditam ter uma missão a cumprir ao lado do velho guerreiro.
Encaro qualquer merda. Minhas meninas, no entanto, não merecem Fernando Henrique Cardoso e aqueles que se manietam em acordos que, apesar de se desmancharem no ar, deixarão manchas no fundo da cueca moral.
Bem, essa coisa de racionamento pode até ser bom para mim. Ando reclamando muito da rotina. É duro acordar, tomar banho, escovar os dentes e ter o dilema musical de sempre: “Com que roupa eu vou?”
Quem vê assim pensa. Domingo declarei, bocão cheio como quem realiza grande e feminista feito: “Vou lavar roupa.” Marchei para o quarto para recolher as peças e parei, estatelado: “Que roupa, meu deus?”
A rotina, eu dizia, está me matando. Poderia, então, vezinha que outra, saltar um banho. As meninas, por exemplo, já reduziram a lavagem do cabelo. Eu, que não consigo namorada nem implorando (dia destes intentei tal experiência), não tenho por que não tolerar um grudinho numa dobra aqui e noutra acolá do corpo, ou um esmegmazinho na desusada.
Houve tempo em que meu amigo Raimundo, lá em Manaus, dizia que banho demais gasta. Naquele calorão, o namorador Raimundo costumava passar uns três dias seguidos sem molhar os pentelhos. É claro que abusava do bastão de desodorante Rastro ou Avon, não me lembro.
O moço exalava uma estranha composição química, fortalecida com o sarro do Hollywood. As manauaras, contudo, penduravam-se nos beiços dele. Vai ver que é nisso que residia o feitiço do rapaz.
Pelo meu lado, apesar de toda a assepsia... Se contar do primeiro dia em Manaus até a primeira carimbada, era para ter existido um bebê de pelo menos uma semana a me complicar a vida.
O amigo Raimundo fazia o maior sucesso. Sem falar que ele era sempre remunerado, ou em espécie ou em mantimentos. Assim mesmo o desgraçado se dissera “um puto barato” quando Processo, uma de suas namoradas, lhe deixou dinheirinho no fundo da rede e saiu para faturar mais.
O apelido da dama era outra ruindade do Raimundo. Certo dia, em mesa de bar, o desgraçado afirmou que a mulher que ele comia era “mais feia que processo”. O barba-azul devia ter lá suas razões para fazer a comparação.
Obviamente, nós, na presença dela, não a chamávamos de “Processo”. Só que uma vez, ainda em mesa de bar, eu a exortei, distraidão: “Processo, vamos descer outra?” A moça ficou sem entender, mas Raimundo, impávido, explicou: “Ele quis dizer que, neste processo do passar das horas, ainda dá para a gente tomar outra cerveja.”
Não era à toa que ela nos achava brilhantes.
Pois é, a Lígia me anda marcando por causa do apagão. Ao mesmo tempo – tadinha dela – quer que eu me mantenha sempre limpo. Quando lhe falei de minha proposta para economizar energia, ela fez “Credo, pai”.
Aí, quase autoritária: “Nunca, nunca vou permitir que você fique sem tomar banho.” Para amaciar um pouco, maliciou-me com um olhar e disse, muito lentamente: “Ela não tem cara de quem gosta de homem porco.”
Pô. É como diria o cartunista Almir, do Diário da Manhã: a gente não pode nem colaborar.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, nº 43, 19/8/2001)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

O texto é bom. Embora comece com grunhidos


Um almoço

Um amigo deste aflito redator é daqueles sujeitos irritadiços que costumam se manifestar aos berros ante a menor contrariedade. Na realidade, é um indivíduo grosseiro. E faço tal afirmação sem medo de levar trompázios, pois sou das poucas pessoas que o brutamontes respeita.
Tanto me respeita que, vezinha que outra, lê croniqueta saída deste sofrido teclado. Sei disso porque, recentemente, fez comentários com referência a texto sobre alimento e engasgo. O nome da crônica é “A comida”.
“Hoje estive num restaurante que parece ser o mesmo da sua crônica”, disse-me o detestável sujeito há mais ou menos quinze dias. Já que ele não esboça pinta de tiete de cronista provinciano, não me ocorreu que o homem tenha ido àquela casa de pasto apenas para apreciar um cenário que, sem dúvida, entrará para a história, como se fora um lugarzinho da Liverpool dos Beatles.
Aliás, minha filha mais velha esteve comigo no restaurante e fez questão de conferir detalhe anotado no texto. Mas, no caso de minhas filhas, o respeito que têm pelo que faço não há que ver com esquisitices de macho.
Estranhável mesmo era certa mania de outro amigo deste amigo de poucos. Era só daminha dos melhores apetites corrupiar no pião mágico cá do degas e ele se engraçar por ela. Engraçar é o apelido; caía de sinceridade em cima da menina. Eu, que nunca arredondei promessa nos beiços, discretamente limpava a área e procurava outro terreno baldio para me amoitar.
O próprio sujeito admite, com sorrisão descarado, que nessa coisa de querer pegar xota dessorada por mim há algo de bestamente freudiano. Mas, calcado na vida sem sonhos, eu diria que ele toca um tanto para a veadagem, se é que há veadagem platônica.
Já estou livre disso. Cansado de atirar charme para mocinhas complicadas do jornalismo, passei a bater minhas bolas em gramados mais confortáveis e menos iluminados – e sem as vaias da torcida. Com isso o colega, perdido no mesmo mundinho besta de Academus, não pode exercer o seu, digamos assim, reboquismo sexual. Pelo menos à custa de minhas conquistas.
Mas eu falava era do amigo troglodita. Ele disse que chegou ao restaurante em hora em que o panorama já estava meio desbastado, pouca gente pelas mesas. Selfserviu-se, dirigiu-se a uma mesa de canto (“talvez onde você gostaria de ter sentado aquela vez”) e solenemente depositou a enorme pratada.
Faminto, começou logo, com método e presteza, a jogar forro nas vísceras. Depois, sofreado, vagueou o olhar pelo cenário. Foi então que avistou robusto adolescente que acabara de entrar. Quase dois metros de altura. “Esse aí deve torar pelo menos dois quilos”, avaliou o amigo.
O garotão se aproximou de um lado da mesa, inclinou-se e, olhando por cima dos óculos, disse ao brutal, bem baixinho: “Perdi o dinheiro do almoço; será que o senhor poderia...?”
O amigo, nadando no tempo, mirou aquela cara arredondada, pensou no dinheiro do bolso e na balança do restaurante e – assim como que dengoso – anuiu. Disse, meio que sussurrando, contaminado pela suavidade do rapaz: “Pode se servir.” O outro, baixinho: “Obrigado
O moço voltou com um pratinho sem-vergonha, alguns graminhas de 1 real e pouco. Dois pedacicos de carne, colherzinha de arroz, dois talinhos de couve-flor – e só. Ereto diante da mesa, murmurou: “Posso me sentar com o senhor?” O amigo: “À vontade.”
De novo, a soprar as palavras, doce como a oferenda: “Aceita um refrigerante?” O vasto adolescente, sumidamente: “Só água.” A água veio e o meninão segurou um gole à meia-garganta quando o sujeito da mesa ao lado soltou tremendo arroto. Mas engoliu o líquido e continuou a comer.
Comiam em silêncio, com maciez, sem bater talher. O sujeito da mesa ao lado, esquecido da estranha dupla que almoçava ali pertinho, fez trovejar dois arrotos de lascar. Ah, mas agora, com cenho levemente franzido, como em suave reprimenda, o garoto fitou o resfolegante animal, que, intimidado, pediu: “Desculpe.”
Fim de almoço. Cada qual com o olhar vago no prato vazio. Dez segundos. Meu amigo perguntou as horas num murmúrio e o garoto murmurou “Duas horas”. “Estou atrasado”, ronronou o amigo, levantando-se. O garoto também se levantou, e ficou respeitosamente ereto.
O amigo, em veludoso chiado: “Tchau.” O garoto: “Tchau. Obrigado.
Ouvi essa “história” no Ceará, boteco da Rua 8, centro de Goiânia. Foi estranho demais ver aquele rude sujeito fazer, cheio de blandícia, todo o arremedo da cena no restaurante. Ele, no entanto, pareceu acordar quando perguntei: “Só isso?”
Ergueu-se – a catadura a expressar toda a irritação que sentia –, deu um soco na mesa e intimou, com voz alta e áspera: “Queria o quê, seu porra?” E, abrindo a braguilha, caminhou na direção do mictório.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, nº 19, 22/7/2001)

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O autor complica até as coisas mais simples e corriqueiras. É um inadaptado

A comida


Ela e eu vínhamos mais desencontrados que irisistas (partidários do senador Maquito Vilela, chamados pela imprensa local de “iristas”). Aí me deu aquela de ser vítima da humanidade, e tomei brava decisão: parar de comer (comida de prato, já que a dona não estava me dando mesmo...).
Houve tempo em que alimentara certa vocação para faquir, e a nova fase seria uma mão na roda. Seria, pois logo no dia seguinte, ao rebolar diante de um restaurante self-service, o cheiro de churrasco me pegou pelo rodapé do estômago.
Solão de começo de tarde, ali na Avenida Tocantins. Passei pelo restaurante e, pouquinha coisa lá na frente, me agarrei em palavras que me haviam dito no dia anterior: “Ela não merece você.”
Voltei pisando duro, cheio de razão, e entrei na famigerada casa de pasto. Meditei um tantinho sobre o prato e resolvi comer pouco. Mas o diabo de self-service dá nessas coisas. Quando – depois de desfilar por três corredores em morosa fila – coloquei o pirex na balança, a infiel do Inmetro me registrou 975 gramas.
Em uma das salas daquela soturna casa procurei mesa de canto. Tímido, fico aflito ao ter de empurrar pela boca em lugares públicos; então tento estar o menos visível. No entanto, só encontrei mesa sem ninguém bem no centro do recinto.
Pousei o fumegante everest diante de mim e pedi uma Coca-Cola, fazendo força para controlar a voracidade. Não deu. Fiquei cego e me entreguei com fúria à árdua terraplenagem.
Foi então que...
Em gorduroso pedaço de carne havia uma pelanca, baita duma. Mastiguei, mastiguei, mas... A danada permanecia resistente, sem ceder à forte mordedura do esfaimado carnívoro.
Levei uma garfadinha de arroz à boca, para ver se ajudava. Nada. De raiva, tão só de raiva, intentei brava engolida. Foi que foi. A borrachona estalou dolorosamente na goela, e desceu. E voltou.
Uma ponta da desgraçada me ficara presa entre dois dentes. Chilept, chicotada no céu da boca. Recomecei a interminável mastigação.
Mandibularmente cansado, entrei em processo de desesperação. Olhei em torno. Parecia que ninguém me observava, todo mundo ocupadíssimo com a própria escavação, a barulhar feito máquina na subida da ribanceira.
Com aquele enorme elástico a me encher a cavidade bucal, armei polegar e indicador. Vai que vai, levanto os olhos para me concentrar na extirpação da coisa. E dou com o cartaz: “Sorria, você está sendo filmado.”
Em estado de choque, lentamente volto a mascar. Nhec... nhec... Meus olhos tristes se encontram com a garrafa de Coca-Cola. Aí me lembro do poder desentupidor de pia do líquido, poder reconhecido internacionalmente pela comunidade científica.
Tomo um denso gole de Coca, gole apertado, dou uma bochechadinha discreta e deixo o xarope esquentar na abóboda palatina. Quem sabe?
A pelanca não se dissolveu, mas senti a gastura passar quando, bom tempo depois, a mais-que-babada se desprendeu dos dentes e buscou o caminho do estômago. Flop.
Com a valentia de meus avós, ataquei novamente o prato, que não mais fumegava. A essa altura, não estava lá com muita vontade de comer, mas detesto o desperdício. Outra vez apelei para a Coca-Cola, notório empurrante.
Ao terminar, mirei com olhos assassinos o que parecia ser a minicâmara e deixei o estabelecimento com mais de um quilo acima do meu peso de faquir. (Não esqueçamos os 300 mililitros do refrigerante.)
O solão comia na Tocantins. De repente, descobri que estava ainda desencontrado, apaixonado talvez. Mas de barriga cheia. Satisfeito, arrotei suavemente.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, nº 1, 1º/7/2001)