domingo, 22 de janeiro de 2012

Um encontro em fria noite de sábado. O autor narra com singeleza. E, assim, chega a comover


Miriã

No que bati os olhos nela, pensei: “Essa daí deve dar mais do que galinha do rabo torto.”
Foi no bar do Uárlen, já que o meu amigo Tiãozinho fechara a mercearia para ir à roça catar pequis e ordenhar vacas. (Mas Tião não me engana: a incursão era mesmo para mostrar ao encarregado da chácara que o dono está de olho...)
De longe dava para ouvir o estrondejar da máquina de música. Entrei no recinto, firme no rumo do balcão, concentrado no pedido que faria à companheira de Uárlen.
Quase fui atropelado. Sim, leitor. Uma baixinha roliça volteava freneticamente em torno das duas mesas de bilhar ao som de uma música estilo ai-se-eu-te-pego. Veio para o meu lado cega feito bola de efeito. Com o reflexo dos meus tempos de goleiro de futebol de salão (hoje conhecido como futsal), dei elegante gingado na ponta dos pés, e evitei o desastre.
Quem nos observasse distraidamente naquele brevíssimo momento poderia tomar-nos por velhos parceiros de danças eróticas. Mas o parceiro dela era um sujeito pequeno e magro que não conseguia acompanhar o ritmo alucinante da moça, ambos já meio encanjebrinados.
Pedi a bebida e voltei com ela para me sentar a uma solitária mesa na calçada, encostada na parede entre as duas portas. Coloquei-me com a cadeira de frente para a rua, o braço direito apoiado na mesa. Quando me entortava para a esquerda e olhava para trás via um grupo de pessoas em inocente carteado, mais ninguém. E estava fora de vista da dupla de dançarinos.
Meu amigo Tião repete com frequência que vivo “dando chute na sorte”. Que o leitor julgue a pertinência disso. Para começar ponha os olhos em mim naquela noite de sábado, a beber no passeio, sem me dar conta de que fazia frio, em flagrante e pública solidão. Por uma vez apenas, infinito leitor, pense complacentemente nesta vida cambaia, nas sortes e nos azares dela. Aliás, foda-se. Vá cuidar do que lhe pertence.
A baixota gordinha saiu num torvelinho da atmosfera cálida do interior do bar e se dirigiu a mim: “Moço, veja que absurdo.” Na rabeira dela veio o baixote magrelo. Mas o absurdo não era ele. “Na minha terra a gente ouve música de graça, e aqui eles cobram cinquenta centavos pra tocar uma”, resfolegou a agilíssima dançarina. “Um absurdo.” O tom de voz era alto.
Deu uns dois giros pelo passeio (quase escrevi “Ciscou à minha volta”, mas me lembrei da galinha do rabo torto da abertura deste texto e achei que seria abusar das comparações) e se achegou a agitar os punhos cerrados. “A gente tá consumindo a bebida desses elementos e ainda temos de pagar pela música.” Aí pediu para se sentar à mesa.
Sentou-se. Resumiu a própria vida sem pausar na falação. Chegara havia pouco do Maranhão, aprendia a fazer sapatos femininos (“Sou sapateira, não sapatão”), gostava de se divertir e namorar. E se chamava Miriã. O baixote, de pé, com o chapeuzinho pendurado de banda na cabeça ossuda, bafejou perto de minha boca: “Essa dá nó duplo em gota d’água.”
A intervenção do companheiro de dança não a perturbou. “Não liga não pro teu futuro cunhado”, pediu a dama festiva a olhar carinhosamente para o homúnculo. “Falo mesmo mais que o homem da cobra.” Foi então que...
“Por falar em cobra”, emendou. Pegou a minha mão que repousava na quina da mesa e me pressionou o dedo médio, forçando-o na direção do braço. Queria, desse modo, tirar a medida do meu pau. O método seria infalível, segundo ela. O dedo, no entanto, não foi muito além da parte carnuda da mão.
Ao notar o ar de desalento da elétrica maranhense, destravei a língua e passei a me justificar anatomicamente. Garanti que meus dedos eram pequenos, desproporcionais em relação a outras partes do corpo. Fui enfático, reiterativo.
Um negro de uns dois metros de altura me fez estancar o jorro de justificativas. Curvou-se diante da dama e lhe ofereceu o espetinho de carne “molhado” em farinha de mandioca que trazia do churrasqueiro que ficava a cerca de vinte metros do bar. Ela não aceitou a gentilíssima oferta, e o grandalhão passou pela porta à minha direita e se sentou fora do meu campo de visão.
“Não fique com ciúme, ele não tá olhando pra mim”, disse Miriã numa voz surpreendentemente baixa. “Parece que ele tá cochilando.” Impaciente, retomei o assunto de minhas medidas penianas. Confesso que não sei por que me empenhava tanto naquilo. Foi quando o negro se materializou novamente. Insistiu para que ela aceitasse o churrasquinho, pois ele não o comeria por não se sentir bem.
Ela enfiou perigosamente o espeto na boca e arrancou dois nacos de carne “molhada” em farinha de mandioca. A mastigar com furor, inclinou-se para mim, retornando ao assunto. “Sendo assim, ele vai ser teu futuro cunhado”, afirmou jogando o queixo na direção do baixinho. Foi aí que me toquei. Eram irmãos.
Agarrou a minha mão e me puxou para ela enquanto se atirava a mim para um apoteótico beijo com direito a língua. Era como se metessem em minha boca, inteiro, um bife à milanesa.
A reclamação quanto à cobrança da música era só pretexto para se aproximar, assegurou. “Eu disse ao mano que tu ia ser o futuro cunhado dele logo que tu passou por nós pra sentar aqui fora.” Para me safar, prometi que a encontraria no dia seguinte, domingo. Não compareci, e não digo que tenha chutado a sorte.
Falei sobre esse encontro ao meu amigo do Bar e Mercearia Silva. Omiti, naturalmente, a dúvida levantada por Miriã quanto às minhas dimensões penianas. Na verdade, eu não deveria ter contado nada. Com um sorriso cínico a mostrar o reluzente dente de ouro, Tião proclamou: “Eu não disse?”

Hamilton Carvalho