sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O pai dizia: “Moleque, vai vender banana na feira.” Mas Hamiltão teimava em estudar comunicação social...


Telefones traiçoeiros


Ah, alma generosa é aquele sujeitinho que entorta umas no bar do amigo e quando o telefone público toca ele atende. Mocinha do outro lado do fio pede (ou ordena) que o Alma vá chamar o Petúnio, o namorado dela, ali pertinho, na esquina, quer dizer, na outra esquina do quarteirão. Até debaixo de chuva, lá vai o Alma.

Há pessoas que atendem o telefone por compulsão e depois vai ali do outro ladinho da rua na maior má vontade para chamar um monumento de mulher.

Já o cínico atende e deixa o aparelho pendurado e não vai chamar ninguém. O abusado do bocó que fez a ligação que se dane.

Ele, o cínico, tem razão. Eu, por exemplo, só gosto de atender nas regências indireta e direta, ou seja, atendo ao telefone as damas de minha jurisdição. Esse negócio de ficar levando recadinho para macho é coisa para pau de cabeleira.

Botar na cara – digamos, por “solidariedade” – aquela coisa sebosa e fedorenta, cheia de bacilos, para outros amaciarem o caminho de uma copulazinha, eu não boto mais.

A esta altura o leitor já percebe que fui uma alma generosa. Ou, para que ninguém levante certa dúvida, um alma generosa.

Fui, sim. Até que um dia me azucrinei. É que mocinha do meu pedaço (há muitos anos, viu, vocezinha?) vivia recebendo ligações no orelhão que havia em frente da casa dela.

Adivinhe quem atendia ao chamado. O lorpa aqui, é verdade (quase incorro em modismo, escrevendo “è vero”).

Sucede, leitor folhetinesco, que eu andava meio troncho por ela, mocinha tímida cujo queijinho do céu ainda devia estar intacto na mesa posta por Deus.

Com aqueles misteriosos telefonemas, a garota começou a mudar. Pode ser loucura minha, mas ela parecia mais solta, risonha e comunicativa. O encanto havia se quebrado (será que só ele?), e a princesa ia toda saltitante se pendurar no telefone.

Senti que alguém se instalara àquela mesa e estava com o queijo e a faca na mão. Pronto, foi assim que deixei de ser guarda-orelhão.

Mas não é só de telefone público que mantenho distância. Ninguém liga mesmo pra mim... (exceto minhas filhas, claro.) Comecei o ano dispensando-me da inútil agenda.

Coleguinhas que costumam largar celular perto do meu teclado, quando saem para molhar o meato, que me perdoem. Não adianta aquele trinzinho irritante insistir que não atendo.

Acredite, leitor informaticamente informado: não sei mexer na coisinha, quer dizer... Ah, você sabe. Mas o atraso de vida não é somente meu.

Veja, por exemplo, o caso de Roni Abreu Fernandes, que não sabe lidar com celulares, apesar de ser operador de máquinas.

Estava ele lá no Titanic Chopp, no Conjunto Dona Íris, todo cheio de panca, a golejar, quando foi, segundo o jornal que noticiou o fato, “abordado por ocupantes de uma radiopatrulha”.

Quando entabulava “rápida conversa” (o jornal não explicou, mas o moço deveria estar de costas, mãos na parede e pernas abertas – é o que afirma a minha larga experiência com os homens da tolerância-zero-só-na-periferia), quando entabulava “rápida conversa” com o iceberg, digo, com o sargento Joaquim Rodrigues Ferreira Júnior, o desgraçado de um celular tocou.

RAF, que é aéreo mas não é força, tentou desajeitadamente atender (depois que teve permissão para sair da posição de lagartixa, naturalmente).

Ficou cutucando aquela coisinha mais ensebada que maçaneta de mictório, e não acertava com o botão que deixaria o pretinho ligado.

O sargento Ferreira Júnior pegou o aparelho (não sei se delicadamente...) e atendeu. Com isso, demonstrou que, hoje, temos uma polícia preparada. Está provado: treino na Academia não se limita a balas de borracha.

O moço da Scotland Yard, digo, da pê-eme desligou o troço, olhou fleumaticamente para o pobre RAF – e tacou-lhe ordem de prisão.

É que, do ouro lado do fio (fio?), o dono do celular implorava ao suposto ladrão que lhe devolvesse o ensebadinho.

Ele contava com um ladrão de alma generosa. Só pode.


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 128, 9/1/2000)

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