terça-feira, 1 de novembro de 2011

Antes enjeitado pelo autor, o texto agora entra aqui feito o filho pródigo...


Ensaio sobre a solidão

Coleguinha chegou para dizer que este espaço está sendo usado para tratar de assuntos fúteis, levianos.
Tal declaração não procede. Tanto é verdade que, mantendo a linha de seriedade adotada aqui desde a primeira crônica, abordarei tema de crucial relevância: a solidão.
Existe quem tenha vocação para a coisa. Portanto, solidão praticamente não significa nada.
Mas vejamos. Sujeito de sucesso, mulher boa e filhos inteligentíssimos perde de repente o emprego. Os numerosos amigos são os primeiros a desaparecer. Em seguida cai fora a mulher com os filhos.
Depois de algum tempo em completo abandono, o infeliz está deitado no imundo catre, refletindo. O vento uiva no quintal, e ele se lembra de que o cachorro morreu, o gato desapareceu e até os cobradores sumiram.
Por pouco o solitário também não se desintegra, ruminando todas as dores do mundo.
Esse não é bem o caso de um amigo que possuía algum dinheiro amoitado em caderneta de poupança. Ele me diz que, quando percebeu que já não valia nada para ninguém, que se tornara um zero do tamanho da Praça Cívica, partiu para o desregramento.
“Em duas semanas”, lembra o calhorda, “comi uma zona inteira e descontei vinte anos de fidelidade conjugal.” Assegura que somente numa noite traçou todas as chulapas de um bordel.
Triste mesmo é o caso do solitário que escreve para seção de cartas de revistinha de sacanagem ou classificados de jornal para se oferecer. Informa contar com situação financeira estável, que tem onde “receber”, que é discreto, saudável, sem vício.
É comum o sujeito acrescentar que é ativo e/ou passivo, que aceita casais, que é bem-dotado.
Aliás, esse negócio de boa dotação é tão relativo que me faz lembrar de episódio protagonizado por outro amigo.
Diz ele que, quando armou a barraca, ou melhor, o circo, a dama ficou maravilhada, e mais ainda quando ele tirou a lona para transportar o picadeiro.
A baixinha tentava apenas lisonjear. Tanto é verdade que ele, quando caiu em cima e foi lá, não achou nada. Por isso, no momento em que ela deu um gritinho e disse que doía, o suposto pé de mesa perguntou, com sinceridade: “O que é que tá doendo, mulher?”
Há pessoas que vivem em tão pungente solidão que recorrem a anúncios de prostitutas (ou prostitutos) em respeitáveis jornais. E ali se encontra de tudo para todos os gostos sexuais.
Existem anúncios oferecendo “dominadores do prazer”, mulheres em dupla para mulheres sós e/ou casais e aquelas que se dizem casadas “de verdade”, bonitas, ousadas, carinhosas e “completas”.
Como se não bastasse tanta plenitude, a maioria delas coloca “apetrechos” à disposição dos interessados. Uma “loirinha insaciável sem limites” garante que está sempre pronta para dar e receber.
E aí, leitor solitário? Vai topar? Que tal dar uma conferida na Barbará Travesty, “feminina e discreta”?
Barbará assegura que mostrará do que é capaz “se você é uma pessoa exigente e gosta de algo muito especial”. E, para soltar seus freios, o traveca vai na base da indução: se “curioso”...
Assim, depois você poderá alegar, para si e para quem ficar sabendo, que foi movido apenas pela curiosidade. Ninguém tem o direito de zombar do espírito aventureiro que leva alguém a buscar “loucas aventuras”. No caso de Barbará, talvez nem precise de apetrecho.
Sei, leitor céptico, que você está lá a pensar: “Pô, isso não é coisa de solitário, é sem-vergonhice mesmo.”
Mas não acha que sujeitinhos que gostam de uma boa sacanagenzinha podem viver mais que nós, homens atormentados e tolhidos pelo doce passado?
Não seria melhor procurar Ana Kelly, que oferece um “bumbum avantajado”, ou Andreia, que promete realizar todas as fantasias, do que meter uma bala na cabeça?
É claro que aquelas fotos que vêm com anúncios poderiam fazê-lo hesitar. Você vê cada pé de rabo, mas o vê há tanto tempo, na mesma foto, que farta peça anatômica pareceria hoje, ao vivo, uma jaca atrofiada.
Leitor puritano, perdoe ao solitário promíscuo. Afinal, ninguém pode atirar a primeira pedra sem ter que, em seguida, atirar toda uma pedreira.
Este não é tema de menor importância. Só espero que o coleguinha não volte para insinuar que almejo alguma espécie de jabaculê.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 58, 10/5/1998)

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Hamiltão vai ao médico. Mas não relaxa. Será sempre um doente


Na sala de Hipócrates

Depois de minha consulta ao ginecologista, eu...
Assim não dá. Já vejo o leitor fazendo o olhar deslizar até o pé da página para conferir a autoria do texto: é de mulher? Não: é do mesmo ínclito e viril cronista de sempre. Sim, de sempre, apesar do sumiço.
Sei que milhões de pessoas, com o coração amolecido pela mídia, ficaram preocupadas com o meu desaparecimento. Não, mais uma vez não: não estava em companhia do cantor Belchior em nova turnê. Nem fui abduzido por algum benigno (e possivelmente pervertido) extraterrestre.
Entre tantos nãos e sins, admito: estava em crise. Mas aí o leitor se adianta curioso para saber se a crise era de identidade  – ou, mais especificamente, de sexualidade, dado o começo inadvertido desta crônica.
Então só me resta recomeçar.
Antes, porém, devo lembrar que muita gente lança mão da perfídia ao afirmar que sou um homem “excessivo”, no sentido de que seria dado a excessos: mulheres, vinhos, fumos... Tudo no plural. E não é bem assim.
Quando fincaram pé para que eu fosse submetido a um check-up, minhas filhas levaram em conta uma vida inteira de excesso (agora sim) de trabalho inglório, sem nunca ter ido ao médico a não ser para pegar atestado de “exame demissional”.
A primogênita compulsou uma relação de especialistas em clínica geral, marcou consulta e me arrastou ao médico. Ao voltar para casa, no carro, portando uma receita contra hipertensão, contei à garota como tinha sido o exame. Ela disse: “Estranho, muito estranho.”
De imediato, decidiu que me levaria a outro especialista. Meio vacilante, discordei, pois achara o profissional “atencioso e sensível”, prescrevendo uma série de exames laboratoriais, embora ele só tenha medido a pressão arterial a meu pedido.
À revelia do mais insubmisso dos pais, Elzinha marcou consulta com outro especialista. A caminho do hospital resolvi dar mais uma olhada naquela receita contra hipertensão que levava juntamente com o resultado dos exames de laboratório. Foi então que notei, abaixo do nome do médico, a especialidade dele: ginecologia.
Nessa última vez, a filha fez questão de me acompanhar à sala do cardiologista. Estendeu para ele os papéis dos exames, com aquela atitude de mãe que leva o filhinho ao pediatra, e passou informações sobre mim, inclusive (ou principalmente) as que eu queria ocultar.
Fui encaminhado para outros exames, ali mesmo no hospital, realizados numa sala chamada Hipócrates. Apesar do meu pavor, até que... Bem, ainda tenho que voltar para mais um exame, e devo privar o leitor de certos detalhes. Assim como um país, também tenho a minha lei do sigilo.
Ah, sim, leitor. Quanto à crise, eu quis apenas ser glamouroso.

Hamilton Carvalho

terça-feira, 6 de setembro de 2011

O leitor há de convir: bom-mocismo não combina com Hamiltão...


No foco

Ao inicializar a crônica hesito muito. Inicializar? Meu deus, o que os informáticos fazem com esta cabeça nordestina, que entra com tanta dificuldade em capacete de mototáxi?  Bem, vou começalizar de novo.
Hesito muito pelo simples fato de chegar ao leitor com a cara meio envergonhada de retardatário, já que estou uma ou duas semanas sem aqui comparecer. Mas também porque, nesta “nova” fase, sou acometido de estranhos pudores, ao contrário de Aldous Huxley, que vinte anos depois da publicação de Brave New World tentou transformá-lo em “profecia” anticomunista.
Ninguém parece dar-se conta de que são Pequenos Irmãos os que vigiam o mundo absconso de banheiros e sacadas por meio de câmeras e minicâmeras, diferentemente do que querem imaginar embevecidos admiradores de outra fracassada profecia. Até mesmo uma Grande Irmã – ou Média, pois é apenas prefeita – da Bélgica foi flagrada de bunda para o amante que, de queixo levantado, revirava os olhos enquanto a traçava no alto de bela muralha.
Bem, talvez seja por vingança que uma prefeitura instalou câmeras de “segurança” em banheiro que, apesar do qualificativo, não se destina a banhos. Foi no Brasil. A gente aqui precisa às vezes estar na vanguarda de alguma coisa. Aliás, a vanguarda era da Guarda Municipal de Americana, em São Paulo. Membros (!) da valorosa corporação se rebelaram, e um deles deve receber indenização por ter tido sua “privadacidade” violada.
Como é que não pensei nisso após filmado com a “aguda empunhadura à proa” em grã-fino restaurante de Goiânia? É claro que uma indenização de R$ 5 mil, igual à determinada pela Justiça no caso do guarda de Americana, não daria para cobrir as despesas que fiz com a namorada naquele restaurante, somadas as poucas vezes em que lá estive.
Sucede que, no discreto canto que o maître (que me chamava de doutor) reservara para nós, exercitei meus rudimentos preliminares, o que fez o desmiolado cá de baixo “pensar” que o macio e lubrificadíssimo mergulho seria ali mesmo. Então, já tarde, sozinho no WC (bacana, hein?), ao dar uma relaxada para liberar o caminho da urina e literalmente enxugar a varinha (a modéstia é traço característico deste autor), virei-me para puxar a toalha de papel que ficava no estojo ao lado da pia.
Mas dei de cara e corpo inteiro com o espelho, e me vi naquela atitude que me lembrou o verso do soneto que Chico Buarque introduzira na letra de “Fado tropical”. Acima do espelho havia uma câmera nada discreta.
Apesar da má fama que carrego na cacunda, sinto-me constrangido em banheiros públicos, consciente ou não da existência de câmeras. Há sujeitinhos indecentes que não se furtam de jogar uma olhadela ao mijante do lado, mesmo quando os vasos de micção são individuais e permitem que se oculte (parcialmente embora) o membro cavernoso, murchíssimo de vergonha.
Imagine, então, leitor pudico, se o receptor de urina for daqueles do tipo de cocho diante dos quais os machos disputam espaço, soltam peidos e gemidos e sacodem obscenamente a caceta.
Eu me recordo de uma noite em Buenos Aires. Enquanto aguardava o momento de embarcar no trem em Chacarita – o que só aconteceria ao amanhecer –, fui a um bar, ali mesmo na estação, e passei a encher a cara de vinho tinto, discutindo futebol (era o que se podia discutir em público nos tempos do general Videla) com dois ou três portenhos que bebiam genebra ao pé do balcão.
O diurético leitor já imagina a premência. Era preciso mesmo ir ao mijadouro. No amplo quadrado em que havia três cochos ao longo de paredes, escolhi um lugar mais, digamos assim, folgado. Logo que, desalojado o zé-da-garoa, eu começava a sentir o alívio, ouvi à minha esquerda: ploft ploft ploft. Ao – inadvertidamente – olhar para o lado, vejo um baixinho, de barba azulada e sorriso sem-vergonha na cara voltada para mim, a estapear e a balançar uma gorda rola em estado de – aparentemente, friso – semiereção.
Ao chegar à saída, olhei para trás e vi o baixinho se deslocar para outro cocho e repetir a mesma operação ao lado de outro infeliz. Não havia câmera.
Hoje, até em lanchonetes, há desgraçados que instalam filmadora no banheiro das mocinhas à altura do vaso sanitário, como mostram vídeos em sites ou enviados por e-mail a elementos suspeitos como eu. Não se trata de mera “espiadinha”.
Agora o leitor entende a minha hesitação, o meu constrangimento. Neste – sem pretensão de ironia – covarde mundo novo.

Hamilton Carvalho

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Hamiltão quer ser honesto. Mas acaba se perdendo. E como!

No esgoto

Não, o título jamais seria “No fundo do poço”, mesmo porque não suporto mais ouvir isso naquela voz rouquenha, com falso sotaque carioca, de bispos e pastores da Igreja Universal do Reino de Deus que ocupam quase toda a programação da TV aberta em determinados horários, com a intrusão, aqui e ali, de “outras denominações”. Percebo que os milagreiros da Iurd assimilam a dicção de Edir Macedo ainda quando obreiros – espécie de leões de chácara com faro especialmente desenvolvido para identificar repórteres. (Quer dizer, antes que a Rede Record abrisse tantas vagas para jornalista...)
É claro que o obsessivo leitor sabe que estive no fundo de um bueiro, modesto buraco sem espírito nem metafísica que não passaria, talvez, de dois metros de profundidade, concretamente implantado no meio de uma rua. Ou seja, o tipo de poço ideal para um materialista, que precisaria apenas levantar os braços e alçar-se para fora – e sem pagar dízimo.
A intenção aqui era realmente falar de um esgoto. A intenção era, porque o assunto já me parece sem interesse, sem significado e sem implicância metafórica. Na verdade, trata-se tão somente de vaga lembrança acordada durante a redação de texto sobre explosivo bueiro de uma apresentadora de TV.
Foi no tempo em que a gente morava na Casa da Água de Gasolina.
O nobre leitor de novelas inglesas poderá sentir-se ofendido com suposta ironia nessa designação de moradia brasileira, com maiúsculas e tudo. Creio que não se sentiria de outra forma mesmo que eu tivesse dito antes, tal qual Manuel Antônio de Almeida ao começar as Memórias de um Sargento de Milícias, “Era no tempo do rei”, pois aqui não há rei além de Pelé, nem nobreza que não seja a dos meus leitores.
Com isso, e a pronta condescendência de quem me lê, explico que o nome da casa se justificava. Para meu começo de conversa (excluída a embromação aí de cima), ele foi criado por necessidade de crianças “crescidinhas” cheias de recordação das diversas residências que tiveram. “Você se lembra do nosso conjunto de rock?”, faz alguém em sereno momento de evocações. “Foi na Casa da Água de Gasolina.”
Havia um posto de combustível... Certo, leitor meticuloso, hoje não se diz conjunto e sim banda, que não é a que Chico Buarque via passar. Mas a história registra também, entre uma e outra qualificação, “grupo de rock”. Isso faz parte da evolução da humanidade, embora não faça parte da evolução deste maldito texto.
Aliás, estou me lixando para qualquer pretensão que possa ter havido ao me embundar diante do teclado.
A banda era formada pelos Cinco Pequenos, expressão que conferia status e privilégio aos menores dos oito filhos de meus pais. A minoria nunca aceitou pacificamente a “discriminação”, razão por que eu – especificamente eu, o mais “atentado” – vivia cheio de hematomas.
É preciso situar o leitor, antes que me perca mais ainda. Os hits da época ficavam por conta de Little Richard (“Tutti frutti”), Neil Sedaka (Oh Carol”), Paul Anka (“Diana”) e Elvis Presley, que também interpretou “Tutti frutti” (“Ture frure”, na versão dos Cinco Pequenos). Anka é o parceiro (involuntário) de Michael Jackson em “This is it”.
Como ninguém sabia inglês, a gente improvisava a letra das músicas com o som aproximado de palavras em português ou palavras que nada significavam. Desconfia-se de que eu era o crooner da banda, dada a escabrosidade das versões. (Qual é, leitor? Sei muito bem que hoje se diz vocalista e não crooner.) Mas minha irmã Lúcia, mais nova que eu, não ficava muito atrás de mim no entusiasmo. Ela conseguia aproximar o tom de “Rip it up” a “Pires de Pirela”, em fantástica performance com uma lasca de lenha à guisa de guitarra.
Ah, sim. Para quem não vem lá de trás comigo: Pirela era um jegue de gigantesca caceta, manco, que circulava pela cidade inteira a ruminar suas segundas intenções. O pires da letra improvisada pela mana era a glande achatada que coroava a rola fenomenal.
Nossos shows se realizavam no quintal, que terminava em um esgoto. A cisterna, no entanto, ficava abrigada em uma área que dividia a cozinha e o banheiro do restante da casa. O forte cheiro de gasolina da água devia ser por causa do posto de combustível que ficava do outro lado praça.
Aceita-se o passar dos tempos, pois não? Dias atrás estive em um pub de Goiânia, e houve certa estranheza. Não de minha parte, leitor intolerante, porque entendi perfeitamente bem o constrangimento da garota que me acompanhava quando a dona do estabelecimento veio até mim e perguntou se eu era o pai dos “meninos” da banda. Entendi. Mesmo assim a caçamba me deixou no fundo do poço.

Hamilton Carvalho

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Em nova fase, Hamiltão vem com tudo. Esperemos que mantenha o fôlego


O bueiro da Ana Maria Braga

Tudo aquilo era falso, leitor. Mas, como sou muito crédulo, pensei testemunhar o Bairro de Ipanema depois de desastre nuclear: completamente deserto – exceto pela presença de intrépida repórter que, calçando mitenes pretas, empunhava um microfone. Na verdade era a apresentadora de TV Ana Maria Braga, e a Ipanema seria “cidade cenográfica” das Organizações Globo.
Chego à conclusão de que desemprego imbeciliza. Que é que eu tinha que ficar a ver programa matinal de televisão? Num lampejo de lucidez, passei a odiar a apresentadora ao me descobrir tapeado. Tudo bem, tudo bem: confesso ter notado que caíra no logro somente depois que ela mesma, magnanimamente, admitiu que aquela reportagem sobre bueiros explosivos se tratava de brincadeirinha.
Era simulação que contava com deslumbrado pesquisador da Universidade Federal do Rio. Entro no assunto com atraso, da mesma forma que a Ana Maria (esse “da mesma forma que” é para não usar o “como”, que poderia ser confundido com o verbo comer), e o leitor não precisa ser informado de que me refiro à onda de explosões de bueiro da Light, a companhia de energia elétrica.
Por sinal, trabalhei na empresa que fazia os buracos da Light. Os escritórios dela ficavam num oitavo andar da Rua 7 de Setembro, ali pertinho da Avenida Rio Branco. Naquelas redondezas, hoje, saltam tampas de bueiro mais pesadas que a do bueiro da Ana Maria Braga. (O Pasquim vivia a debochar dos buracos da Light, como se seus colaboradores soubessem que se armavam bombas de efeito retardado em algumas décadas, ainda que, também ali pertinho, haja explodido bomba de verdade na agência da LAN Chile, Línea Aérea Nacional de Chile à época dos bigodes de Pinochet.)
A minha vida é um bueiro de ressentimentos. Desta ausência de luz é que sai o meu humor, se é que dela sai alguma coisa além dos miasmas de sonhos decompostos. Mas eu poderia abrir, se não um túnel, uma nesga de tolerância para deixar entrar o ar do espírito esportivo da Ana Maria Braga – por mais suspeito que ele seja, desde que a produção do programa passou a inventar “reportagens especiais” na disputa por audiência.
Ah, leitor, sou forçado a admitir que, no início, fiquei encantado com a enriquecedora linguagem da anti-José Luiz Datena da televisão brasileira. Enquadrada pela câmera ela, molemente, sem nenhum toque de sensacionalismo, anunciou: “Estou aqui de permeio a um bueiro.” De imediato, a voz sobressaltada do Louro José esganiçou: “Sai daí, sua doida.” (Informo a quem não gosta de perder tempo que Louro José é um papagaio de borracha que se mexe em cima de um balcão, embora a voz dele provenha de um coitado que se esconde sob o citado balcão.)
Quando a imagem enfocada se distancia, percebo que é o bueiro que está “de permeio” entre a apresentadora e a câmera. Mas não importa. O que importa é o empenho da dama no enriquecimento da linguagem deste exuberante país. Ela, nitidamente, não quer rastejar no campo minado do linguajar comum.
Sim, leitor, é de propósito que uso esse “campo minado”, para arrastar você, quase militarmente, não para a guerra, mas para o bairro da Crimeia. Na realidade, existem dois bairros Crimeia em Goiânia, o Leste e o Oeste. Também como fruto de fertilíssima imaginação, há aqui as vizinhas Vila Nova e Nova Vila e outros “residenciais” e “setores”: Goiânia 2, Goiânia Viva, Universitário, Leste Universitário... É por isso que não me perco na vida: tenho Goiânia para me perder. Mesmo que não venha ao caso – se é que há algum caso –, acrescento, ainda, que morei em outro Crimeia, desta vez em Anápolis (mais conhecida como “cidade de Anápolis”).
É de propósito que aqui chego, e me mantenho no assunto.
Foi, pois, no Crimeia Leste que estive mais “de permeio” a um bueiro do que a Ana Maria Braga. Tratando-se de algo verdadeiro, com sólida tampa de ferro, alguém quis faturar uma graninha, provavelmente (agora não há nada de provável) em um ferro-velho, como hoje se faz à custa da fiação elétrica dos postes. Levaram a tampa e deixaram para mim o buraco aberto bem no meio da rua. Nele caí verticalmente, já que não poderia cair na horizontal. De emprego novinho, corria para pegar o ônibus, cara torta para o lado de onde ele deveria surgir.
Enfiei-me direitinho naquela cava hiante, como se diria em bom linguajar. Simplesmente sumi, ficando invisível para quem estivesse de fora, e dentro, claro, não cabia nada além de mim e dos óculos embaçados pelo vapor da corrida.
Pensando bem, era bueiro tão falso quanto o da apresentadora da Globo. Não me lembro de ter visto fios, nem dutos, nem túnel. Era só aquele sarcófago, que me envolvia feito uma luva.
Ah, por falar em luva. Talvez tenham sido aquelas negras e dramáticas mitenes da Ana Maria Braga que me induziram a acreditar na veracidade da explosão provocada pelo dedo do deslumbrado pesquisador da UFRJ. Isso porque, num ineditismo de sensibilidade artística, a dama do Mais Você abdicara das brancas, alvíssimas mitenes de sempre. Somente por aquela vez, espero.

Hamilton Carvalho

NOTA EDITORIAL

A partir de hoje, 3/8/2011, são postadas crônicas escritas especialmente para Vida Cambaia. A eventual inclusão de textos já publicados será assinalada com data e nome do veículo.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

O olhar do autor vagueia através da janela indiscreta de um ônibus...


A volta da viola

Existe em Goiânia uma Praça do Violeiro. Fica no Setor Urias Magalhães. É mesmo um belo lugar. Ninguém liga muito para aquele recanto, mas é realmente um lugar bonito. Passo por ali vez que outra, escorraçado para o trabalho.
Já andava há alguns meses sem óculos e, ao jogar o olhar pela janela do ônibus, divisava o contorno do violeiro – estátua feita por algum “primitivista” – sem me deter em detalhes que seriam, realmente, mal vistos. Sem falar que, meio que afastado da amada (e ela sem fazer questão de se aproximar de mim), estuporei de vez. Mas entrou graninha, comprei óculos, abri os olhos para melhor. E vi...
Leitor, deixe-me dar uma chegadinha para trás. (Para trás no tempo, bem entendido.)
Em 1999 escrevi, indignado: “Que miserável roubou a viola do violeiro?” É isso mesmo, ínclito leitor – alguém surrupiara a viola daquela patética figura. “O instrumento do coitado é hoje apenas o desenho de um gesto”, continuei, em texto brilhante. “Ele, no entanto, está lá, firme, há muitos anos, tocando silêncio no invisível.”
Quando redigi isso aí provavelmente estava atacado pelo espírito de algum poeta goiano vivo. Veja só: “Mas, otimista, penso que talvez o violeiro esteja melhor sem viola, sublimando a canção da eternidade.”
Foi então, com toda essa poesia na cabeça, que me lembrei de uma estátua da minha infância. Quer dizer: minha infância, propriamente dita, não tinha estátua, mesmo porque ela não era lá merecedora de homenagem.
Era estátua de mulher na praça principal de uma das cidades em que residi, “um mulherão de pedra, tamanho natural, calipígia, naquelas proporções ditadas pela boa e pródiga natureza e não por um Versolato qualquer”.
Sem assunto, solto meus devaneios: “Estátua importante para mim, nos meus tempos de menino.” E explico: “Porque – ali, na praça, sem censura e sem frescura – me deu a real noção de como era uma mulher gostosa pelada.”
Já a estátua do violeiro... Como registrei no mesmo texto, é feia, malproporcionada, cheia de bossa. E é de homem. Por isso reconheço: “O escultor da minha terra era macho retado, um artista literalmente de mão-cheia.” Criou uma deusa bem-fornida, longe daquela coisa anoréxica parecida com perereca esmagada no asfalto.
No entanto, confesso que senti pena do violeiro sem a sua viola. Até que, poucos dias atrás, eu o vi, o danado, com ar de quem estava feliz, viola presa na mão direita. Será que o larápio a devolvera, depois de se emocionar com a leitura de minha crônica? Se assim foi, vou ser pastor evangélico no Cepaigo [Centro Penitenciário Agroindustrial de Goiás, hoje com outra denominação e mesmo conteúdo].
Ou será que outro escultor, solidário com o colega, providenciou nova viola e a anexou naquela figura esquisita no centro da praça? Mas não, não. O pétreo instrumento musical seria tão vagabundo quanto o anterior. Se não o mesmo, deve ser do mesmo artista.
Apesar de tudo, fiquei contente. Ainda que a felicidade vislumbrada na figura do violeiro tenha sido dada pelos meus óculos novos.

Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, nº 40, 29/3/2007)

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Para que não se sinta logrado, o leitor deve conhecer antes a carta reproduzida logo depois do texto do Hamiltão


O nariz da Cameron Diaz

Se me perguntarem por que sou tão fã de Cameron Diaz, a resposta é óbvia, isto é, está na cara: o nariz dela. À parte outras partes, aquele aparelho olfativo (pelo menos o que se vê dele) me fascina.
Quando o rosto da moça aparece na tela do cinema ou em foto de revista (porque é só assim que o deus justiceiro me permite vê-lo), sinto como se houvesse algum problema de foco na imagem que se agasalha – este é o termo – em minha retina. É a sensação de um poema que, de imediato, nos convida para uma releitura.
Narizes, ah narizes de minha vida. Eu me lembro de que, mal chegado a Goiás, fiz rapidamente uma relação entre o nariz e a bunda de determinadas mulheres. A carroceria das narigudas goianas sempre me deslumbrou. É a perfeição que a minha alma tem engendrado desde a puberdade, ou bem antes dela, sei lá.
Na verdade, na verdade, nariz de mulher sempre me comove, mesmo que o danadinho esteja congestionado pelos mucos de uma gripe titânica. De todos os formatos, tamanhos e cores, são os narizes femininos que apontam o meu destino e a estrada do motel. Nesse terreno não permito que nenhum Boris Casoy venha fuçar.
No entanto, refletindo bem (porque este é assunto para profundas reflexões), chego à conclusão de que foi uma professora de matemática que me dotou com a percepção que se adaptaria tão bem à calipigidade das goianas.
A professora tinha um instrumento de fungar bem respeitável. Era enorme, e só não me metia medo quando a docente (meu deus) se sacudia a escrever no quadro-negro, com as fossas a aspirar o pó da lousa. Quando de repente ela ficava meio de banda e mirava a turma, encontrava sempre meu olhar mortiço absorto abaixo da linha da cintura dela, longe das equações. Aquela mise-en-scène de quase todo dia me transformou em péssimo aluno de matemática pelo resto da vida.
É claro que a protuberância nasal enfeitando o rostinho de uma dama pode ser feia, larga, estreita, comprida, adunca, brúxica, arrebitadinha... Aliás, em nariz arrebitado de mulher há também relação nadegal. Vê lá se ela não empina o traseirinho ao desfilar na passarela lúbrica de nossa retina, vê lá, ô marmanjo.
Ah, que suspiro profundo quando me recordo de unzinho narizinho. É tão íngreme que mais parece uma pista de skate. Lindo, lindo. De qualquer ângulo, mesmo daquele em que se divisam o septo e os buraquinhos róseos, sem nenhuma mácula de meleca.
Como dizia, não importa como seja nariz de mulher. Há, claro, gente besta que acha de botar em tudo uma questão de estética. No entanto, se o malandro for muito enjoado quanto a isso, pode tacar o travesseiro em cima, apagar a luz e virar a cara pro lado.
Não, não duvido de que a Cameron Diaz tenha talento. Mas não é culpa minha se aquele maravilhoso nariz não me deixa percebê-lo.

Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, n.º 31, 25/1/2007)


[Carta de leitor – “Há alguns dias, enquanto descansava após o almoço, me caiu nas mãos o exemplar número 31 do jornal Notícias de Goiás datado de 25 a 31 de janeiro de 2007. Há nesse jornal uma crônica que merece ser comentada. O comentário não é sobre o nariz da Cameron Diaz, que realmente é muito bonito, mas sobre a linguagem chula, feia, grosseira e nada respeitosa que o autor, Hamilton Carvalho, usou em seu texto ambíguo. Na verdade o texto deixa dúvidas sobre o que realmente ele quis dizer. Se pretendia fazer uma apologia ao nariz feminino, os termos disseram o contrário. Vamos aos termos – ‘relacionar nariz com bunda, se deslumbrar com carroceria das narigudas goianas, nariz congestionado pelos mucos de uma gripe titânica, Boris Casoy venha fuçar, (seria ele um porco?), calipigidade das goianas, a professora que usava as fossas para aspirar o pó do quadro-negro, protuberância nasal pode ser feia, larga, estreita, comprida, adunca, brúxica, relação nadegal que o nariz arrebitado possui, nariz que parece uma pista de skate, sem nenhuma mácula de meleca, gente besta. E finalmente o pior: se o malandro for enjoado pode tacar o travesseiro em cima, apagar a luz e virar a cara pro lado.’ Francamente é um desrespeito, nunca vi tanto mau gosto em um só texto. A finalidade da crônica é entreter, deve ser uma leitura leve, quase um passatempo, não uma agressão. Ao final, não se sabe se o texto é sobre o nariz da Cameron Diaz, ou se é uma crítica maldosa sobre o nariz feminino, ou, ainda, se é para criticar a bunda das mulheres goianas. Um jornal precisa escolher melhor o que publicar. O respeito ao leitor deve ser uma preocupação constante. As pessoas gostam de uma boa leitura, elas procuram o jornal porque acreditam tratar-se de leitura confiável, não um festival de bobagens como esse. Em Goiás há profissionais que pensam diferente, que entendem melhor a alma humana e escrevem muito bem. Não é aconselhável preencher o espaço da página com qualquer matéria. Minha intenção é simplesmente dar um feedback e dizer que se um jornal quer ser respeitado deve veicular matérias de melhor nível e qualidade.” José Maria Bastos (Notícias de Goiás, n.º 33, p. 2, 8/2/2007)]

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Na verdade, trata-se de artigo tapa-buraco em fechamento de edição de jornal. A sua inclusão aqui se deve apenas à expressão “mente cambaia”...


Sexo literário

Edição de semanas atrás da revista Veja (que está cada vez mais difícil de ler) traz texto com sugestivo título: “Escritores ruins de cama”. Não que o autor – um tal de Jerônimo Teixeira – tenha feito (acredito) algum teste no estilo alquímico de Paulo Coelho. Os escritores não seriam propriamente ruins de cama, como se fica sabendo ao entrar no corpo da matéria. Alguns, citados pelo repórter, seriam ruins para descrever cenas de sexo, apenas isso.
Toda essa besteira vem (e que o leitor de Notícias de Goiás me perdoe) a propósito de prêmio instituído na Inglaterra por gente de cérebro com um hemisfério só. Bad Sex chama-se a coisa da Literary Review.
Penso, com toda a minha proverbial (e, em certo sentido, autoprejudicial) sinceridade, que sujeitinho que é mesmo bom de cama (tópico, aliás, que não me interessa) não teria como ser bom narrador de atos sexuais de que participa, ou criador de cenas com base neles, já que em momentos assim – ou em qualquer outro – a gente não fica fazendo roteiro de sensações. Elas é que nos arrastam.
“No erotismo, os riscos de um fiasco literário são enormes”, avalia o repórter. “Um tom acima ou abaixo pode resultar em grosseria ou em puritanismo, em humor sem graça ou em solenidade risível.” Falar em grosseria em uma descrição de coito humano (mais uma vez, leitor, perdão) já é puritanismo.
Mas o que me tocou nas avaliações de Teixeira foram o “humor sem graça” e a “solenidade risível”. Com esta minha mente um tanto cambaia, fico a imaginar cena de sexo com humor engraçado: o casal gargalhando à beira do clímax. Ou então a solenidade: “Se me permite, madame, posso chegar lá?”
O moço da Veja é culto. Nem que seja de cultura google. Cita, para humilhar os ingleses, gente como a safada Safo, o pervertido Ovídio e o velho fauno Henry Miller.
Aliás, esse último aí de cima gostava de contar o que fazia na cama com suas mulheres e amantes (que, por sinal, eram também mulheres). Uma delas, a francesa Anaïs Nin, tida como boa narradora de histórias eróticas, devia ser boa só de cama. Apesar de minha imensa preguiça de ler cenas de sexo alheio, senti a barra ao encarar a tradução de Little Birds (Pequenos Pássaros, L&PM Pocket).
Com cento e quarenta e poucas páginas, o livrinho de bolso me tomou mais tempo do que Ulysses, de Joyce. Não o consegui ler de um fôlego, nem de dois, nem de três, nem de sete. Chata, com sua “delicadeza e musicalidade” de estilo (como é dito na quarta capa do opúsculo), a “precursora do feminismo” rateia principalmente na descrição das sensações dos machos humanos durante a reciprocidade carnal do amor (agora você gostou, hein, leitor?). Não entendo por que ela se foi meter nessa.

Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, nº 28, p. 2, 4/1/2007)

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Texto fraco. Ainda bem que é curto

Passageiro na agonia

A gente que anda de ônibus sofre. Mas comigo as coisas parecem mais graves do que para outras pessoas que reclamam da longa espera nos pontos, das sacudidelas das idosas carrocerias, do mau humor dos motoristas (que aumentou com a obrigação que agora eles têm de conferir a identidade dos velhinhos – que lotam irritantemente a minúscula parte dianteira do interior do veículo – e liberar a catraca eletrônica, “automática”, enquanto dirigem), do preço injustificado da passagem, dos variados odores e de outros, e tantos, incômodos.
Minhas filhas concordam quando afirmo que o homem que perdeu a capacidade de se indignar merece uma pá de cal. Mas ressalvam: “Pai, você se indigna demais.”
Outro dia, lá estava eu a navegar em um ônibus relativamente novo, com vigoroso e dinâmico motorista e, ao lado do motorista, um loquaz fiscal da empresa. Lembrei-me de antiga frase: “Fale com o motorista só o indispensável.” E o pior: o motorista era daquelas pessoas que gostam de olhar nos olhos do interlocutor; e nem é necessário mencionar a atitude puxativa para com a “autoridade” fiscalizadora.
O ônibus, apinhadíssimo, parou para receber mais pessoas. Coisa inacreditável que tantos corpos ocupassem o mesmo espaço.
Uma mulher apoiando-se em muletas tentou entrar pela parte traseira, mas foi impedida pelo zeloso fiscal, que mandou o motorista fechar as portas. Correndo desajeitadamente, com pernas atrofiadas e muletas, ela foi até a porta dianteira e pediu que lhe permitissem o acesso àquele veículo de concessão pública. Nem o motorista nem o bate-pau demonstraram qualquer boa vontade para atender ao pedido da cidadã, apesar do coro de sofredores dentro do ônibus: “Deixa, deixa, deixa...”
“Se ela quiser entrar”, sentenciou o altivo fiscal, “vai ter que ser pela porta da frente, para se identificar e mostrar a carteirinha de deficiente físico.” Foi aí que a mulher pediu que ele se identificasse. Ele nem tchum, porque autoridades brasileiras não se dignam mostrar credencial para pé-de-chinelo. Ela argumentou que precisava entrar por uma das portas de trás, pois conseguiria lugar para se sentar. Se entrasse pela frente teria de passar pela catraca, e ela estava sem carteirinha.
Ah, aí é que não iria entrar mesmo, altissonou o fura-greve profissional. “Eles” – a mulher tentou mais uma vez argumentar – “tomaram minha carteirinha porque pessoas em cadeira de rodas ou usando muleta não precisam mais se identificar como deficientes.”
Apoiou-se em uma das barras que ladeiam a porta e tentou abrir a bolsa para mostrar o que chamou de lei. Então o fiscal, de pé à porta feito um cérbero, mandou que o motorista “arrancasse”. Nem precisava, pois o homem já acelerava raivosamente. Deu uma arrancada digna de pole position. A mulher foi arrastada, mas soltou-se a tempo e evitou a queda, graças a longa experiência com muletas e pernas atrofiadas.
Até o fim do percurso tive de ouvir a voz antipática do fiscal, que não cansava de repetir: “Ô povo ignorante.”
Sofro de doer.

Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, nº 27, 28/12/2006)

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Aconselha-se aos office-boys em geral a não se arriscarem no trânsito, por mais valiosa que seja a entrega


A mariola

Estava eu a tomar, tranquilamente, o habitual refresco de tamarindo, em pé, ali no Terminal Padre Pelágio, quando um menino me pediu 30 centavos para comprar chiclete. Negrinho roliço, com a aparência de quem esbanja saúde, despertou neste cavaleiro de triste figura a maior inveja.
Além da infinita precisão de ser amado (por ela), tenho outras, muitas outras, tantas que posso incluir até chiclete entre as minhas necessidades. Ah, as necessidades de cada um...
O garoto não tinha cara de quem estivesse com fome, e sei disso porque esse tipo de cara espelhou muito em minha vida. Ele tinha lá sua vontadezinha de mascar, o que não deixa de ser necessidade.
Não propriamente como a que tive certa vez, quando arrastava a minha asma pelas ruas do Rio.
Morava num sótão na antiga Rua General Pedra, n.º 10, que pertencia a um agiota português. Repousava a cabeça romântica em edição dominical do Jornal do Brasil, estirando a carcaça em folhas impressas espalhadas pelo assoalho.
Mas não, não vou me estender neste papo miserável. Sem falar que pode surgir alguém para dizer que plagio o norueguês Knut Hamsun, que escreveu um livro chamado Fome. (Quando, anos mais tarde, li a tradução de Carlos Drummond de Andrade, feita sobre texto em francês, me senti roubado.)
Bem. Vou falar um pouquinho da mariola.
Era hora do almoço e me dirigia para a mansarda. Para almoçar? Não, para me deitar e economizar energia para a jornada da tarde, olhos fechados, dor de ouvido e saudade, puta saudade de casa.
Mas eis que, da calçada da Avenida Presidente Vargas, vi o pequeno brilho no meio da pista. Fixei os olhos naquele ponto, e os carros que passavam eram apenas vultos velozes. Fiquei parado, tenso, e comecei a procurar brecha naquele trânsito nervoso. O brilho poderia ser uma moeda.
O sol tinia em minha testa suada, no nariz queimado, no ouvido a supurar. Puxei o ar fuliginoso da avenida para o peito, que deu um forte chiado, de agradecimento ou protesto. Armei o bote. Tinha que ser uma moeda.
Vupt. Dei um pulo que nem o João do, voei pela dianteira de um carro e caí na outra faixa da pista, com a mão ávida a abafar a rodinha de metal.
O chiado agora não era do peito. Um para-choque quase tocou em meu casaco marrom (que fora de uma das irmãs). Uns três carros frearam com fúria, outros se desviaram perigosamente para evitar o engavetamento.
Eu me levantei e corri para a margem da pista de dentro. O mundo todo parecia me chamar de filho da puta, o cândido menino de dona Branca.
Quase contente, marchei rumo à Central do Brasil. Pisando nas tábuas que serviam de passeio em torno das obras do metrô, cheguei a um tabuleiro sobre que se vendiam caramelos.
Numa pilhazinha tímida, vi a cobiçada mariola. Perguntei o preço à mulher sentada em um banquinho do outro lado do tabuleiro, abri a mão e olhei para a moedinha, molhada de suor. Era aquilo. Em estado lastimável, por causa de muito pneu e asfalto. Por ela, eu estava meio envergonhado.
Com o docinho de banana no bolso, caminhei para a General Pedra, logo ali atrás da estação.
Deitei-me no chão do sótão, à fresca penumbra, e metodicamente afastei o papel transparente, expondo apenas metade da mariola. Mordi maciamente. Meu almoço. Depositei a outra metade em pequena pilha de livros. Meu jantar.
Fechei os olhos e deixei o doce dissolver-se lentamente, sugado pelo céu da boca, que doía.
Quanto custa um chiclete? Não sei. No Terminal Padre Pelágio, virei de vez a metade que me restava do refresco de tamarindo.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, n.º 67, 16/9/2001)

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Coisas do tempo em que os japoneses ainda não faziam jabá de jegue, animal a caminho da extinção


Pirela

Ah, emoções que acordam velhas emoções. É como se Maria Purcina voltasse a jogar basquete no meu coração e... Ora, romântico leitor, por que tornar a falar da garota, se ela já foi objeto de embriagadíssimo texto deste desprezado cronista?
A ressonância daqueles tempos só me faz entender uma coisa: aprendi a controlar um tantinho os impulsos provocados pela paixão, o sarcasmo dirigido ao mundo, a dor tonta que me fazia lançar palavras como se fossem dardos envenenados. Hoje, acerbo, volto o grosso da tempestade para mim, eu digno de todo o escárnio de que sou capaz.
Na época de Maria e sua indiferença, uma de minhas vítimas prediletas era o “Pirela”. Coitado do menino. Lá ia eu para a rua, em frente ao Hospital Regional, sob os eucaliptos, para o joguinho de bola. Quando via aquela patética figura com o pé engessado, à margem da brincadeira, não resistia: metia um Pirela em frase maldosa.
Ele ganhou o apelido depois que fraturou o pé e por causa de um jegue manco, que tinha um casco enorme, virado para fora. Mas, pensando bem, não era para o menino ficar tão ofendido com a alcunha, já que Pirela, o jegue, tinha uma caceta fenomenal, a preferida de todas as jegas da cidade.
Curioso, aquele membro. Comprido e torto, quase a tocar o chão, era albino, em contraste com as demais partes do corpo. Somente a ponta (o “pires”, como a meninada chamava) era preta.
O animal tinha o dom de ser visto em todo lugar. Não havia quem não o conhecesse – e admirasse. Era um garanhão, no sentido humano e sem-vergonha do termo. O nome dele adviera provavelmente de Pirelli, o pneu. Mas juro que nunca vi pneu albino.
Em período de eleições, o jegue se transformava em outdoor ambulante. Havia político que, para usufruir do prestígio de Pirela, pichava o próprio nome no dorso do animal. Feito cabo eleitoral abnegado, com aquela caceta chamativa, o jumento fazia chegar a todos os bairros a propaganda de outro – serenamente, lentamente, e a ruminar pelos terrenos baldios.
Agora voltemos ao menino.
Um dia ele estava a ver o joguinho, melancólico como sempre, desde que ficara impossibilitado de participar. De pé diante da cerca do hospital, estendeu a perna engessada para um lado, igualzinho a Pirela, o jegue, e colocou as mãos para trás, à altura da bunda.
Um dos goleiros, vendo aquela pose, não se conteve. Botou o pinto para fora, fê-lo endurecer e o pousou ternamente na palma de uma das mãos de Pirela, o garoto. (Juro que não fui eu.) Num reflexo, o coitado fechou a mão. Quando percebeu o que era, deu um repelão na rola, e devidamente filho-da-putou o indecente dono dela.
A turma parou o jogo só para farrear em torno de Pirela. Claro, eu também. Afinal, Maria Purcina, havia pouquinho, dobrara a esquina sem dar nem tchum pra mim.
Com o fim da partida, à tardinha, fui para o doce recanto do meu lar, como diz o hino da cidade. Mal entrei, um estrondo no janelão da sala. Uma pedra atingiu o caixilho, por sorte não quebrando vidro. Pareceu um tiro. Meu pai, que estava no recinto, ficou pálido (devia ter seus motivos).
Saltei para fora e avistei Pirela a correr, manquitolando, para a casa dele. Fui ao encalço do infeliz, pegando a primeira coisa que vi pelo caminho, um pedaço de adobo. Ele entrou, fechou a porta. Então mirei a janela verde daquela casinha amarela, uma acanhada janela de madeira.
Aí, tarde demais, avistei os cabelos brancos da avó do garoto. Ela abriu a janela para receber na testa o torrão, que se espatifou. Em pânico, desabalei para casa e saltei o muro, para me esconder no quintal. Fiquei sem saber se a velhinha teve problema além de um baita susto.
Emoções, antigas emoções. Apesar de tudo aquilo que as novas emoções me trazem, por que falar de Maria Purcina? Nem tchum.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, n.º 49, 26/8/2001)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Foi no tempo em que blecaute virou apagão. Para “racionalizar”, o governo estabeleceu limite no consumo de energia elétrica nas residências. Cortes aleatórios


O banho

Aviso de corte de energia elétrica chegou à morada deste cronista de alma cambota. Hoje Liginha, a caçula, cronometrou o meu banho e – como se o ato fosse um atentado à liberdade – pediu desculpa. Mas não me poupou: “É preciso diminuir mais.”
Minhas filhas são assim, cidadãzinhas exemplares, embora tenham aprendido a não ser legalistas. Afinal, foram concebidas no breve descanso do guerreiro.
Já que a qualquer momento as trevas cairão sobre o humilde abrigo de pai e filhas que, não há muito, voltaram a viver juntos, não sei como chegar e dizer às meninas: “Olha... hum... quer dizer...” Umas tossidelas, esfregadas da palma das mãos suadas nas pernas da calça...
Não sei como chegar às meninas e dizer: “Voltem para a casa da mamãe.” É claro que elas iriam adorar, e a mãe também. Mas ficariam frustradas, porque acreditam ter uma missão a cumprir ao lado do velho guerreiro.
Encaro qualquer merda. Minhas meninas, no entanto, não merecem Fernando Henrique Cardoso e aqueles que se manietam em acordos que, apesar de se desmancharem no ar, deixarão manchas no fundo da cueca moral.
Bem, essa coisa de racionamento pode até ser bom para mim. Ando reclamando muito da rotina. É duro acordar, tomar banho, escovar os dentes e ter o dilema musical de sempre: “Com que roupa eu vou?”
Quem vê assim pensa. Domingo declarei, bocão cheio como quem realiza grande e feminista feito: “Vou lavar roupa.” Marchei para o quarto para recolher as peças e parei, estatelado: “Que roupa, meu deus?”
A rotina, eu dizia, está me matando. Poderia, então, vezinha que outra, saltar um banho. As meninas, por exemplo, já reduziram a lavagem do cabelo. Eu, que não consigo namorada nem implorando (dia destes intentei tal experiência), não tenho por que não tolerar um grudinho numa dobra aqui e noutra acolá do corpo, ou um esmegmazinho na desusada.
Houve tempo em que meu amigo Raimundo, lá em Manaus, dizia que banho demais gasta. Naquele calorão, o namorador Raimundo costumava passar uns três dias seguidos sem molhar os pentelhos. É claro que abusava do bastão de desodorante Rastro ou Avon, não me lembro.
O moço exalava uma estranha composição química, fortalecida com o sarro do Hollywood. As manauaras, contudo, penduravam-se nos beiços dele. Vai ver que é nisso que residia o feitiço do rapaz.
Pelo meu lado, apesar de toda a assepsia... Se contar do primeiro dia em Manaus até a primeira carimbada, era para ter existido um bebê de pelo menos uma semana a me complicar a vida.
O amigo Raimundo fazia o maior sucesso. Sem falar que ele era sempre remunerado, ou em espécie ou em mantimentos. Assim mesmo o desgraçado se dissera “um puto barato” quando Processo, uma de suas namoradas, lhe deixou dinheirinho no fundo da rede e saiu para faturar mais.
O apelido da dama era outra ruindade do Raimundo. Certo dia, em mesa de bar, o desgraçado afirmou que a mulher que ele comia era “mais feia que processo”. O barba-azul devia ter lá suas razões para fazer a comparação.
Obviamente, nós, na presença dela, não a chamávamos de “Processo”. Só que uma vez, ainda em mesa de bar, eu a exortei, distraidão: “Processo, vamos descer outra?” A moça ficou sem entender, mas Raimundo, impávido, explicou: “Ele quis dizer que, neste processo do passar das horas, ainda dá para a gente tomar outra cerveja.”
Não era à toa que ela nos achava brilhantes.
Pois é, a Lígia me anda marcando por causa do apagão. Ao mesmo tempo – tadinha dela – quer que eu me mantenha sempre limpo. Quando lhe falei de minha proposta para economizar energia, ela fez “Credo, pai”.
Aí, quase autoritária: “Nunca, nunca vou permitir que você fique sem tomar banho.” Para amaciar um pouco, maliciou-me com um olhar e disse, muito lentamente: “Ela não tem cara de quem gosta de homem porco.”
Pô. É como diria o cartunista Almir, do Diário da Manhã: a gente não pode nem colaborar.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, nº 43, 19/8/2001)