Passageiro na agonia
A gente que anda de ônibus sofre. Mas comigo as coisas parecem mais graves do que para outras pessoas que reclamam da longa espera nos pontos, das sacudidelas das idosas carrocerias, do mau humor dos motoristas (que aumentou com a obrigação que agora eles têm de conferir a identidade dos velhinhos – que lotam irritantemente a minúscula parte dianteira do interior do veículo – e liberar a catraca eletrônica, “automática”, enquanto dirigem), do preço injustificado da passagem, dos variados odores e de outros, e tantos, incômodos.
Minhas filhas concordam quando afirmo que o homem que perdeu a capacidade de se indignar merece uma pá de cal. Mas ressalvam: “Pai, você se indigna demais.”
Outro dia, lá estava eu a navegar em um ônibus relativamente novo, com vigoroso e dinâmico motorista e, ao lado do motorista, um loquaz fiscal da empresa. Lembrei-me de antiga frase: “Fale com o motorista só o indispensável.” E o pior: o motorista era daquelas pessoas que gostam de olhar nos olhos do interlocutor; e nem é necessário mencionar a atitude puxativa para com a “autoridade” fiscalizadora.
O ônibus, apinhadíssimo, parou para receber mais pessoas. Coisa inacreditável que tantos corpos ocupassem o mesmo espaço.
Uma mulher apoiando-se em muletas tentou entrar pela parte traseira, mas foi impedida pelo zeloso fiscal, que mandou o motorista fechar as portas. Correndo desajeitadamente, com pernas atrofiadas e muletas, ela foi até a porta dianteira e pediu que lhe permitissem o acesso àquele veículo de concessão pública. Nem o motorista nem o bate-pau demonstraram qualquer boa vontade para atender ao pedido da cidadã, apesar do coro de sofredores dentro do ônibus: “Deixa, deixa, deixa...”
“Se ela quiser entrar”, sentenciou o altivo fiscal, “vai ter que ser pela porta da frente, para se identificar e mostrar a carteirinha de deficiente físico.” Foi aí que a mulher pediu que ele se identificasse. Ele nem tchum, porque autoridades brasileiras não se dignam mostrar credencial para pé-de-chinelo. Ela argumentou que precisava entrar por uma das portas de trás, pois conseguiria lugar para se sentar. Se entrasse pela frente teria de passar pela catraca, e ela estava sem carteirinha.
Ah, aí é que não iria entrar mesmo, altissonou o fura-greve profissional. “Eles” – a mulher tentou mais uma vez argumentar – “tomaram minha carteirinha porque pessoas em cadeira de rodas ou usando muleta não precisam mais se identificar como deficientes.”
Apoiou-se em uma das barras que ladeiam a porta e tentou abrir a bolsa para mostrar o que chamou de lei. Então o fiscal, de pé à porta feito um cérbero, mandou que o motorista “arrancasse”. Nem precisava, pois o homem já acelerava raivosamente. Deu uma arrancada digna de pole position. A mulher foi arrastada, mas soltou-se a tempo e evitou a queda, graças a longa experiência com muletas e pernas atrofiadas.
Até o fim do percurso tive de ouvir a voz antipática do fiscal, que não cansava de repetir: “Ô povo ignorante.”
Sofro de doer.
Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, nº 27, 28/12/2006)
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