quarta-feira, 22 de junho de 2011

Coisas do tempo em que os japoneses ainda não faziam jabá de jegue, animal a caminho da extinção


Pirela

Ah, emoções que acordam velhas emoções. É como se Maria Purcina voltasse a jogar basquete no meu coração e... Ora, romântico leitor, por que tornar a falar da garota, se ela já foi objeto de embriagadíssimo texto deste desprezado cronista?
A ressonância daqueles tempos só me faz entender uma coisa: aprendi a controlar um tantinho os impulsos provocados pela paixão, o sarcasmo dirigido ao mundo, a dor tonta que me fazia lançar palavras como se fossem dardos envenenados. Hoje, acerbo, volto o grosso da tempestade para mim, eu digno de todo o escárnio de que sou capaz.
Na época de Maria e sua indiferença, uma de minhas vítimas prediletas era o “Pirela”. Coitado do menino. Lá ia eu para a rua, em frente ao Hospital Regional, sob os eucaliptos, para o joguinho de bola. Quando via aquela patética figura com o pé engessado, à margem da brincadeira, não resistia: metia um Pirela em frase maldosa.
Ele ganhou o apelido depois que fraturou o pé e por causa de um jegue manco, que tinha um casco enorme, virado para fora. Mas, pensando bem, não era para o menino ficar tão ofendido com a alcunha, já que Pirela, o jegue, tinha uma caceta fenomenal, a preferida de todas as jegas da cidade.
Curioso, aquele membro. Comprido e torto, quase a tocar o chão, era albino, em contraste com as demais partes do corpo. Somente a ponta (o “pires”, como a meninada chamava) era preta.
O animal tinha o dom de ser visto em todo lugar. Não havia quem não o conhecesse – e admirasse. Era um garanhão, no sentido humano e sem-vergonha do termo. O nome dele adviera provavelmente de Pirelli, o pneu. Mas juro que nunca vi pneu albino.
Em período de eleições, o jegue se transformava em outdoor ambulante. Havia político que, para usufruir do prestígio de Pirela, pichava o próprio nome no dorso do animal. Feito cabo eleitoral abnegado, com aquela caceta chamativa, o jumento fazia chegar a todos os bairros a propaganda de outro – serenamente, lentamente, e a ruminar pelos terrenos baldios.
Agora voltemos ao menino.
Um dia ele estava a ver o joguinho, melancólico como sempre, desde que ficara impossibilitado de participar. De pé diante da cerca do hospital, estendeu a perna engessada para um lado, igualzinho a Pirela, o jegue, e colocou as mãos para trás, à altura da bunda.
Um dos goleiros, vendo aquela pose, não se conteve. Botou o pinto para fora, fê-lo endurecer e o pousou ternamente na palma de uma das mãos de Pirela, o garoto. (Juro que não fui eu.) Num reflexo, o coitado fechou a mão. Quando percebeu o que era, deu um repelão na rola, e devidamente filho-da-putou o indecente dono dela.
A turma parou o jogo só para farrear em torno de Pirela. Claro, eu também. Afinal, Maria Purcina, havia pouquinho, dobrara a esquina sem dar nem tchum pra mim.
Com o fim da partida, à tardinha, fui para o doce recanto do meu lar, como diz o hino da cidade. Mal entrei, um estrondo no janelão da sala. Uma pedra atingiu o caixilho, por sorte não quebrando vidro. Pareceu um tiro. Meu pai, que estava no recinto, ficou pálido (devia ter seus motivos).
Saltei para fora e avistei Pirela a correr, manquitolando, para a casa dele. Fui ao encalço do infeliz, pegando a primeira coisa que vi pelo caminho, um pedaço de adobo. Ele entrou, fechou a porta. Então mirei a janela verde daquela casinha amarela, uma acanhada janela de madeira.
Aí, tarde demais, avistei os cabelos brancos da avó do garoto. Ela abriu a janela para receber na testa o torrão, que se espatifou. Em pânico, desabalei para casa e saltei o muro, para me esconder no quintal. Fiquei sem saber se a velhinha teve problema além de um baita susto.
Emoções, antigas emoções. Apesar de tudo aquilo que as novas emoções me trazem, por que falar de Maria Purcina? Nem tchum.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, n.º 49, 26/8/2001)

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