quinta-feira, 16 de junho de 2011

Foi no tempo em que blecaute virou apagão. Para “racionalizar”, o governo estabeleceu limite no consumo de energia elétrica nas residências. Cortes aleatórios


O banho

Aviso de corte de energia elétrica chegou à morada deste cronista de alma cambota. Hoje Liginha, a caçula, cronometrou o meu banho e – como se o ato fosse um atentado à liberdade – pediu desculpa. Mas não me poupou: “É preciso diminuir mais.”
Minhas filhas são assim, cidadãzinhas exemplares, embora tenham aprendido a não ser legalistas. Afinal, foram concebidas no breve descanso do guerreiro.
Já que a qualquer momento as trevas cairão sobre o humilde abrigo de pai e filhas que, não há muito, voltaram a viver juntos, não sei como chegar e dizer às meninas: “Olha... hum... quer dizer...” Umas tossidelas, esfregadas da palma das mãos suadas nas pernas da calça...
Não sei como chegar às meninas e dizer: “Voltem para a casa da mamãe.” É claro que elas iriam adorar, e a mãe também. Mas ficariam frustradas, porque acreditam ter uma missão a cumprir ao lado do velho guerreiro.
Encaro qualquer merda. Minhas meninas, no entanto, não merecem Fernando Henrique Cardoso e aqueles que se manietam em acordos que, apesar de se desmancharem no ar, deixarão manchas no fundo da cueca moral.
Bem, essa coisa de racionamento pode até ser bom para mim. Ando reclamando muito da rotina. É duro acordar, tomar banho, escovar os dentes e ter o dilema musical de sempre: “Com que roupa eu vou?”
Quem vê assim pensa. Domingo declarei, bocão cheio como quem realiza grande e feminista feito: “Vou lavar roupa.” Marchei para o quarto para recolher as peças e parei, estatelado: “Que roupa, meu deus?”
A rotina, eu dizia, está me matando. Poderia, então, vezinha que outra, saltar um banho. As meninas, por exemplo, já reduziram a lavagem do cabelo. Eu, que não consigo namorada nem implorando (dia destes intentei tal experiência), não tenho por que não tolerar um grudinho numa dobra aqui e noutra acolá do corpo, ou um esmegmazinho na desusada.
Houve tempo em que meu amigo Raimundo, lá em Manaus, dizia que banho demais gasta. Naquele calorão, o namorador Raimundo costumava passar uns três dias seguidos sem molhar os pentelhos. É claro que abusava do bastão de desodorante Rastro ou Avon, não me lembro.
O moço exalava uma estranha composição química, fortalecida com o sarro do Hollywood. As manauaras, contudo, penduravam-se nos beiços dele. Vai ver que é nisso que residia o feitiço do rapaz.
Pelo meu lado, apesar de toda a assepsia... Se contar do primeiro dia em Manaus até a primeira carimbada, era para ter existido um bebê de pelo menos uma semana a me complicar a vida.
O amigo Raimundo fazia o maior sucesso. Sem falar que ele era sempre remunerado, ou em espécie ou em mantimentos. Assim mesmo o desgraçado se dissera “um puto barato” quando Processo, uma de suas namoradas, lhe deixou dinheirinho no fundo da rede e saiu para faturar mais.
O apelido da dama era outra ruindade do Raimundo. Certo dia, em mesa de bar, o desgraçado afirmou que a mulher que ele comia era “mais feia que processo”. O barba-azul devia ter lá suas razões para fazer a comparação.
Obviamente, nós, na presença dela, não a chamávamos de “Processo”. Só que uma vez, ainda em mesa de bar, eu a exortei, distraidão: “Processo, vamos descer outra?” A moça ficou sem entender, mas Raimundo, impávido, explicou: “Ele quis dizer que, neste processo do passar das horas, ainda dá para a gente tomar outra cerveja.”
Não era à toa que ela nos achava brilhantes.
Pois é, a Lígia me anda marcando por causa do apagão. Ao mesmo tempo – tadinha dela – quer que eu me mantenha sempre limpo. Quando lhe falei de minha proposta para economizar energia, ela fez “Credo, pai”.
Aí, quase autoritária: “Nunca, nunca vou permitir que você fique sem tomar banho.” Para amaciar um pouco, maliciou-me com um olhar e disse, muito lentamente: “Ela não tem cara de quem gosta de homem porco.”
Pô. É como diria o cartunista Almir, do Diário da Manhã: a gente não pode nem colaborar.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, nº 43, 19/8/2001)

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