A volta da viola
Existe em Goiânia uma Praça do Violeiro. Fica no Setor Urias Magalhães. É mesmo um belo lugar. Ninguém liga muito para aquele recanto, mas é realmente um lugar bonito. Passo por ali vez que outra, escorraçado para o trabalho.
Já andava há alguns meses sem óculos e, ao jogar o olhar pela janela do ônibus, divisava o contorno do violeiro – estátua feita por algum “primitivista” – sem me deter em detalhes que seriam, realmente, mal vistos. Sem falar que, meio que afastado da amada (e ela sem fazer questão de se aproximar de mim), estuporei de vez. Mas entrou graninha, comprei óculos, abri os olhos para melhor. E vi...
Leitor, deixe-me dar uma chegadinha para trás. (Para trás no tempo, bem entendido.)
Em 1999 escrevi, indignado: “Que miserável roubou a viola do violeiro?” É isso mesmo, ínclito leitor – alguém surrupiara a viola daquela patética figura. “O instrumento do coitado é hoje apenas o desenho de um gesto”, continuei, em texto brilhante. “Ele, no entanto, está lá, firme, há muitos anos, tocando silêncio no invisível.”
Quando redigi isso aí provavelmente estava atacado pelo espírito de algum poeta goiano vivo. Veja só: “Mas, otimista, penso que talvez o violeiro esteja melhor sem viola, sublimando a canção da eternidade.”
Foi então, com toda essa poesia na cabeça, que me lembrei de uma estátua da minha infância. Quer dizer: minha infância, propriamente dita, não tinha estátua, mesmo porque ela não era lá merecedora de homenagem.
Era estátua de mulher na praça principal de uma das cidades em que residi, “um mulherão de pedra, tamanho natural, calipígia, naquelas proporções ditadas pela boa e pródiga natureza e não por um Versolato qualquer”.
Sem assunto, solto meus devaneios: “Estátua importante para mim, nos meus tempos de menino.” E explico: “Porque – ali, na praça, sem censura e sem frescura – me deu a real noção de como era uma mulher gostosa pelada.”
Já a estátua do violeiro... Como registrei no mesmo texto, é feia, malproporcionada, cheia de bossa. E é de homem. Por isso reconheço: “O escultor da minha terra era macho retado, um artista literalmente de mão-cheia.” Criou uma deusa bem-fornida, longe daquela coisa anoréxica parecida com perereca esmagada no asfalto.
No entanto, confesso que senti pena do violeiro sem a sua viola. Até que, poucos dias atrás, eu o vi, o danado, com ar de quem estava feliz, viola presa na mão direita. Será que o larápio a devolvera, depois de se emocionar com a leitura de minha crônica? Se assim foi, vou ser pastor evangélico no Cepaigo [Centro Penitenciário Agroindustrial de Goiás, hoje com outra denominação e mesmo conteúdo].
Ou será que outro escultor, solidário com o colega, providenciou nova viola e a anexou naquela figura esquisita no centro da praça? Mas não, não. O pétreo instrumento musical seria tão vagabundo quanto o anterior. Se não o mesmo, deve ser do mesmo artista.
Apesar de tudo, fiquei contente. Ainda que a felicidade vislumbrada na figura do violeiro tenha sido dada pelos meus óculos novos.
Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, nº 40, 29/3/2007)
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