O bueiro da Ana Maria Braga
Tudo aquilo era falso, leitor. Mas, como sou muito crédulo, pensei testemunhar o Bairro de Ipanema depois de desastre nuclear: completamente deserto – exceto pela presença de intrépida repórter que, calçando mitenes pretas, empunhava um microfone. Na verdade era a apresentadora de TV Ana Maria Braga, e a Ipanema seria “cidade cenográfica” das Organizações Globo.
Chego à conclusão de que desemprego imbeciliza. Que é que eu tinha que ficar a ver programa matinal de televisão? Num lampejo de lucidez, passei a odiar a apresentadora ao me descobrir tapeado. Tudo bem, tudo bem: confesso ter notado que caíra no logro somente depois que ela mesma, magnanimamente, admitiu que aquela reportagem sobre bueiros explosivos se tratava de brincadeirinha.
Era simulação que contava com deslumbrado pesquisador da Universidade Federal do Rio. Entro no assunto com atraso, da mesma forma que a Ana Maria (esse “da mesma forma que” é para não usar o “como”, que poderia ser confundido com o verbo comer), e o leitor não precisa ser informado de que me refiro à onda de explosões de bueiro da Light, a companhia de energia elétrica.
Por sinal, trabalhei na empresa que fazia os buracos da Light. Os escritórios dela ficavam num oitavo andar da Rua 7 de Setembro, ali pertinho da Avenida Rio Branco. Naquelas redondezas, hoje, saltam tampas de bueiro mais pesadas que a do bueiro da Ana Maria Braga. (O Pasquim vivia a debochar dos buracos da Light, como se seus colaboradores soubessem que se armavam bombas de efeito retardado em algumas décadas, ainda que, também ali pertinho, haja explodido bomba de verdade na agência da LAN Chile, Línea Aérea Nacional de Chile à época dos bigodes de Pinochet.)
A minha vida é um bueiro de ressentimentos. Desta ausência de luz é que sai o meu humor, se é que dela sai alguma coisa além dos miasmas de sonhos decompostos. Mas eu poderia abrir, se não um túnel, uma nesga de tolerância para deixar entrar o ar do espírito esportivo da Ana Maria Braga – por mais suspeito que ele seja, desde que a produção do programa passou a inventar “reportagens especiais” na disputa por audiência.
Ah, leitor, sou forçado a admitir que, no início, fiquei encantado com a enriquecedora linguagem da anti-José Luiz Datena da televisão brasileira. Enquadrada pela câmera ela, molemente, sem nenhum toque de sensacionalismo, anunciou: “Estou aqui de permeio a um bueiro.” De imediato, a voz sobressaltada do Louro José esganiçou: “Sai daí, sua doida.” (Informo a quem não gosta de perder tempo que Louro José é um papagaio de borracha que se mexe em cima de um balcão, embora a voz dele provenha de um coitado que se esconde sob o citado balcão.)
Quando a imagem enfocada se distancia, percebo que é o bueiro que está “de permeio” entre a apresentadora e a câmera. Mas não importa. O que importa é o empenho da dama no enriquecimento da linguagem deste exuberante país. Ela, nitidamente, não quer rastejar no campo minado do linguajar comum.
Sim, leitor, é de propósito que uso esse “campo minado”, para arrastar você, quase militarmente, não para a guerra, mas para o bairro da Crimeia. Na realidade, existem dois bairros Crimeia em Goiânia, o Leste e o Oeste. Também como fruto de fertilíssima imaginação, há aqui as vizinhas Vila Nova e Nova Vila e outros “residenciais” e “setores”: Goiânia 2, Goiânia Viva, Universitário, Leste Universitário... É por isso que não me perco na vida: tenho Goiânia para me perder. Mesmo que não venha ao caso – se é que há algum caso –, acrescento, ainda, que morei em outro Crimeia, desta vez em Anápolis (mais conhecida como “cidade de Anápolis”).
É de propósito que aqui chego, e me mantenho no assunto.
Foi, pois, no Crimeia Leste que estive mais “de permeio” a um bueiro do que a Ana Maria Braga. Tratando-se de algo verdadeiro, com sólida tampa de ferro, alguém quis faturar uma graninha, provavelmente (agora não há nada de provável) em um ferro-velho, como hoje se faz à custa da fiação elétrica dos postes. Levaram a tampa e deixaram para mim o buraco aberto bem no meio da rua. Nele caí verticalmente, já que não poderia cair na horizontal. De emprego novinho, corria para pegar o ônibus, cara torta para o lado de onde ele deveria surgir.
Enfiei-me direitinho naquela cava hiante, como se diria em bom linguajar. Simplesmente sumi, ficando invisível para quem estivesse de fora, e dentro, claro, não cabia nada além de mim e dos óculos embaçados pelo vapor da corrida.
Pensando bem, era bueiro tão falso quanto o da apresentadora da Globo. Não me lembro de ter visto fios, nem dutos, nem túnel. Era só aquele sarcófago, que me envolvia feito uma luva.
Ah, por falar em luva. Talvez tenham sido aquelas negras e dramáticas mitenes da Ana Maria Braga que me induziram a acreditar na veracidade da explosão provocada pelo dedo do deslumbrado pesquisador da UFRJ. Isso porque, num ineditismo de sensibilidade artística, a dama do Mais Você abdicara das brancas, alvíssimas mitenes de sempre. Somente por aquela vez, espero.
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