A mariola
Estava eu a tomar, tranquilamente, o habitual refresco de tamarindo, em pé, ali no Terminal Padre Pelágio, quando um menino me pediu 30 centavos para comprar chiclete. Negrinho roliço, com a aparência de quem esbanja saúde, despertou neste cavaleiro de triste figura a maior inveja.
Além da infinita precisão de ser amado (por ela), tenho outras, muitas outras, tantas que posso incluir até chiclete entre as minhas necessidades. Ah, as necessidades de cada um...
O garoto não tinha cara de quem estivesse com fome, e sei disso porque esse tipo de cara espelhou muito em minha vida. Ele tinha lá sua vontadezinha de mascar, o que não deixa de ser necessidade.
Não propriamente como a que tive certa vez, quando arrastava a minha asma pelas ruas do Rio.
Morava num sótão na antiga Rua General Pedra, n.º 10, que pertencia a um agiota português. Repousava a cabeça romântica em edição dominical do Jornal do Brasil, estirando a carcaça em folhas impressas espalhadas pelo assoalho.
Mas não, não vou me estender neste papo miserável. Sem falar que pode surgir alguém para dizer que plagio o norueguês Knut Hamsun, que escreveu um livro chamado Fome. (Quando, anos mais tarde, li a tradução de Carlos Drummond de Andrade, feita sobre texto em francês, me senti roubado.)
Bem. Vou falar um pouquinho da mariola.
Era hora do almoço e me dirigia para a mansarda. Para almoçar? Não, para me deitar e economizar energia para a jornada da tarde, olhos fechados, dor de ouvido e saudade, puta saudade de casa.
Mas eis que, da calçada da Avenida Presidente Vargas, vi o pequeno brilho no meio da pista. Fixei os olhos naquele ponto, e os carros que passavam eram apenas vultos velozes. Fiquei parado, tenso, e comecei a procurar brecha naquele trânsito nervoso. O brilho poderia ser uma moeda.
O sol tinia em minha testa suada, no nariz queimado, no ouvido a supurar. Puxei o ar fuliginoso da avenida para o peito, que deu um forte chiado, de agradecimento ou protesto. Armei o bote. Tinha que ser uma moeda.
Vupt. Dei um pulo que nem o João do, voei pela dianteira de um carro e caí na outra faixa da pista, com a mão ávida a abafar a rodinha de metal.
O chiado agora não era do peito. Um para-choque quase tocou em meu casaco marrom (que fora de uma das irmãs). Uns três carros frearam com fúria, outros se desviaram perigosamente para evitar o engavetamento.
Eu me levantei e corri para a margem da pista de dentro. O mundo todo parecia me chamar de filho da puta, o cândido menino de dona Branca.
Quase contente, marchei rumo à Central do Brasil. Pisando nas tábuas que serviam de passeio em torno das obras do metrô, cheguei a um tabuleiro sobre que se vendiam caramelos.
Numa pilhazinha tímida, vi a cobiçada mariola. Perguntei o preço à mulher sentada em um banquinho do outro lado do tabuleiro, abri a mão e olhei para a moedinha, molhada de suor. Era aquilo. Em estado lastimável, por causa de muito pneu e asfalto. Por ela, eu estava meio envergonhado.
Com o docinho de banana no bolso, caminhei para a General Pedra, logo ali atrás da estação.
Deitei-me no chão do sótão, à fresca penumbra, e metodicamente afastei o papel transparente, expondo apenas metade da mariola. Mordi maciamente. Meu almoço. Depositei a outra metade em pequena pilha de livros. Meu jantar.
Fechei os olhos e deixei o doce dissolver-se lentamente, sugado pelo céu da boca, que doía.
Quanto custa um chiclete? Não sei. No Terminal Padre Pelágio, virei de vez a metade que me restava do refresco de tamarindo.
Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, n.º 67, 16/9/2001)
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