quarta-feira, 27 de julho de 2011

O olhar do autor vagueia através da janela indiscreta de um ônibus...


A volta da viola

Existe em Goiânia uma Praça do Violeiro. Fica no Setor Urias Magalhães. É mesmo um belo lugar. Ninguém liga muito para aquele recanto, mas é realmente um lugar bonito. Passo por ali vez que outra, escorraçado para o trabalho.
Já andava há alguns meses sem óculos e, ao jogar o olhar pela janela do ônibus, divisava o contorno do violeiro – estátua feita por algum “primitivista” – sem me deter em detalhes que seriam, realmente, mal vistos. Sem falar que, meio que afastado da amada (e ela sem fazer questão de se aproximar de mim), estuporei de vez. Mas entrou graninha, comprei óculos, abri os olhos para melhor. E vi...
Leitor, deixe-me dar uma chegadinha para trás. (Para trás no tempo, bem entendido.)
Em 1999 escrevi, indignado: “Que miserável roubou a viola do violeiro?” É isso mesmo, ínclito leitor – alguém surrupiara a viola daquela patética figura. “O instrumento do coitado é hoje apenas o desenho de um gesto”, continuei, em texto brilhante. “Ele, no entanto, está lá, firme, há muitos anos, tocando silêncio no invisível.”
Quando redigi isso aí provavelmente estava atacado pelo espírito de algum poeta goiano vivo. Veja só: “Mas, otimista, penso que talvez o violeiro esteja melhor sem viola, sublimando a canção da eternidade.”
Foi então, com toda essa poesia na cabeça, que me lembrei de uma estátua da minha infância. Quer dizer: minha infância, propriamente dita, não tinha estátua, mesmo porque ela não era lá merecedora de homenagem.
Era estátua de mulher na praça principal de uma das cidades em que residi, “um mulherão de pedra, tamanho natural, calipígia, naquelas proporções ditadas pela boa e pródiga natureza e não por um Versolato qualquer”.
Sem assunto, solto meus devaneios: “Estátua importante para mim, nos meus tempos de menino.” E explico: “Porque – ali, na praça, sem censura e sem frescura – me deu a real noção de como era uma mulher gostosa pelada.”
Já a estátua do violeiro... Como registrei no mesmo texto, é feia, malproporcionada, cheia de bossa. E é de homem. Por isso reconheço: “O escultor da minha terra era macho retado, um artista literalmente de mão-cheia.” Criou uma deusa bem-fornida, longe daquela coisa anoréxica parecida com perereca esmagada no asfalto.
No entanto, confesso que senti pena do violeiro sem a sua viola. Até que, poucos dias atrás, eu o vi, o danado, com ar de quem estava feliz, viola presa na mão direita. Será que o larápio a devolvera, depois de se emocionar com a leitura de minha crônica? Se assim foi, vou ser pastor evangélico no Cepaigo [Centro Penitenciário Agroindustrial de Goiás, hoje com outra denominação e mesmo conteúdo].
Ou será que outro escultor, solidário com o colega, providenciou nova viola e a anexou naquela figura esquisita no centro da praça? Mas não, não. O pétreo instrumento musical seria tão vagabundo quanto o anterior. Se não o mesmo, deve ser do mesmo artista.
Apesar de tudo, fiquei contente. Ainda que a felicidade vislumbrada na figura do violeiro tenha sido dada pelos meus óculos novos.

Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, nº 40, 29/3/2007)

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Para que não se sinta logrado, o leitor deve conhecer antes a carta reproduzida logo depois do texto do Hamiltão


O nariz da Cameron Diaz

Se me perguntarem por que sou tão fã de Cameron Diaz, a resposta é óbvia, isto é, está na cara: o nariz dela. À parte outras partes, aquele aparelho olfativo (pelo menos o que se vê dele) me fascina.
Quando o rosto da moça aparece na tela do cinema ou em foto de revista (porque é só assim que o deus justiceiro me permite vê-lo), sinto como se houvesse algum problema de foco na imagem que se agasalha – este é o termo – em minha retina. É a sensação de um poema que, de imediato, nos convida para uma releitura.
Narizes, ah narizes de minha vida. Eu me lembro de que, mal chegado a Goiás, fiz rapidamente uma relação entre o nariz e a bunda de determinadas mulheres. A carroceria das narigudas goianas sempre me deslumbrou. É a perfeição que a minha alma tem engendrado desde a puberdade, ou bem antes dela, sei lá.
Na verdade, na verdade, nariz de mulher sempre me comove, mesmo que o danadinho esteja congestionado pelos mucos de uma gripe titânica. De todos os formatos, tamanhos e cores, são os narizes femininos que apontam o meu destino e a estrada do motel. Nesse terreno não permito que nenhum Boris Casoy venha fuçar.
No entanto, refletindo bem (porque este é assunto para profundas reflexões), chego à conclusão de que foi uma professora de matemática que me dotou com a percepção que se adaptaria tão bem à calipigidade das goianas.
A professora tinha um instrumento de fungar bem respeitável. Era enorme, e só não me metia medo quando a docente (meu deus) se sacudia a escrever no quadro-negro, com as fossas a aspirar o pó da lousa. Quando de repente ela ficava meio de banda e mirava a turma, encontrava sempre meu olhar mortiço absorto abaixo da linha da cintura dela, longe das equações. Aquela mise-en-scène de quase todo dia me transformou em péssimo aluno de matemática pelo resto da vida.
É claro que a protuberância nasal enfeitando o rostinho de uma dama pode ser feia, larga, estreita, comprida, adunca, brúxica, arrebitadinha... Aliás, em nariz arrebitado de mulher há também relação nadegal. Vê lá se ela não empina o traseirinho ao desfilar na passarela lúbrica de nossa retina, vê lá, ô marmanjo.
Ah, que suspiro profundo quando me recordo de unzinho narizinho. É tão íngreme que mais parece uma pista de skate. Lindo, lindo. De qualquer ângulo, mesmo daquele em que se divisam o septo e os buraquinhos róseos, sem nenhuma mácula de meleca.
Como dizia, não importa como seja nariz de mulher. Há, claro, gente besta que acha de botar em tudo uma questão de estética. No entanto, se o malandro for muito enjoado quanto a isso, pode tacar o travesseiro em cima, apagar a luz e virar a cara pro lado.
Não, não duvido de que a Cameron Diaz tenha talento. Mas não é culpa minha se aquele maravilhoso nariz não me deixa percebê-lo.

Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, n.º 31, 25/1/2007)


[Carta de leitor – “Há alguns dias, enquanto descansava após o almoço, me caiu nas mãos o exemplar número 31 do jornal Notícias de Goiás datado de 25 a 31 de janeiro de 2007. Há nesse jornal uma crônica que merece ser comentada. O comentário não é sobre o nariz da Cameron Diaz, que realmente é muito bonito, mas sobre a linguagem chula, feia, grosseira e nada respeitosa que o autor, Hamilton Carvalho, usou em seu texto ambíguo. Na verdade o texto deixa dúvidas sobre o que realmente ele quis dizer. Se pretendia fazer uma apologia ao nariz feminino, os termos disseram o contrário. Vamos aos termos – ‘relacionar nariz com bunda, se deslumbrar com carroceria das narigudas goianas, nariz congestionado pelos mucos de uma gripe titânica, Boris Casoy venha fuçar, (seria ele um porco?), calipigidade das goianas, a professora que usava as fossas para aspirar o pó do quadro-negro, protuberância nasal pode ser feia, larga, estreita, comprida, adunca, brúxica, relação nadegal que o nariz arrebitado possui, nariz que parece uma pista de skate, sem nenhuma mácula de meleca, gente besta. E finalmente o pior: se o malandro for enjoado pode tacar o travesseiro em cima, apagar a luz e virar a cara pro lado.’ Francamente é um desrespeito, nunca vi tanto mau gosto em um só texto. A finalidade da crônica é entreter, deve ser uma leitura leve, quase um passatempo, não uma agressão. Ao final, não se sabe se o texto é sobre o nariz da Cameron Diaz, ou se é uma crítica maldosa sobre o nariz feminino, ou, ainda, se é para criticar a bunda das mulheres goianas. Um jornal precisa escolher melhor o que publicar. O respeito ao leitor deve ser uma preocupação constante. As pessoas gostam de uma boa leitura, elas procuram o jornal porque acreditam tratar-se de leitura confiável, não um festival de bobagens como esse. Em Goiás há profissionais que pensam diferente, que entendem melhor a alma humana e escrevem muito bem. Não é aconselhável preencher o espaço da página com qualquer matéria. Minha intenção é simplesmente dar um feedback e dizer que se um jornal quer ser respeitado deve veicular matérias de melhor nível e qualidade.” José Maria Bastos (Notícias de Goiás, n.º 33, p. 2, 8/2/2007)]

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Na verdade, trata-se de artigo tapa-buraco em fechamento de edição de jornal. A sua inclusão aqui se deve apenas à expressão “mente cambaia”...


Sexo literário

Edição de semanas atrás da revista Veja (que está cada vez mais difícil de ler) traz texto com sugestivo título: “Escritores ruins de cama”. Não que o autor – um tal de Jerônimo Teixeira – tenha feito (acredito) algum teste no estilo alquímico de Paulo Coelho. Os escritores não seriam propriamente ruins de cama, como se fica sabendo ao entrar no corpo da matéria. Alguns, citados pelo repórter, seriam ruins para descrever cenas de sexo, apenas isso.
Toda essa besteira vem (e que o leitor de Notícias de Goiás me perdoe) a propósito de prêmio instituído na Inglaterra por gente de cérebro com um hemisfério só. Bad Sex chama-se a coisa da Literary Review.
Penso, com toda a minha proverbial (e, em certo sentido, autoprejudicial) sinceridade, que sujeitinho que é mesmo bom de cama (tópico, aliás, que não me interessa) não teria como ser bom narrador de atos sexuais de que participa, ou criador de cenas com base neles, já que em momentos assim – ou em qualquer outro – a gente não fica fazendo roteiro de sensações. Elas é que nos arrastam.
“No erotismo, os riscos de um fiasco literário são enormes”, avalia o repórter. “Um tom acima ou abaixo pode resultar em grosseria ou em puritanismo, em humor sem graça ou em solenidade risível.” Falar em grosseria em uma descrição de coito humano (mais uma vez, leitor, perdão) já é puritanismo.
Mas o que me tocou nas avaliações de Teixeira foram o “humor sem graça” e a “solenidade risível”. Com esta minha mente um tanto cambaia, fico a imaginar cena de sexo com humor engraçado: o casal gargalhando à beira do clímax. Ou então a solenidade: “Se me permite, madame, posso chegar lá?”
O moço da Veja é culto. Nem que seja de cultura google. Cita, para humilhar os ingleses, gente como a safada Safo, o pervertido Ovídio e o velho fauno Henry Miller.
Aliás, esse último aí de cima gostava de contar o que fazia na cama com suas mulheres e amantes (que, por sinal, eram também mulheres). Uma delas, a francesa Anaïs Nin, tida como boa narradora de histórias eróticas, devia ser boa só de cama. Apesar de minha imensa preguiça de ler cenas de sexo alheio, senti a barra ao encarar a tradução de Little Birds (Pequenos Pássaros, L&PM Pocket).
Com cento e quarenta e poucas páginas, o livrinho de bolso me tomou mais tempo do que Ulysses, de Joyce. Não o consegui ler de um fôlego, nem de dois, nem de três, nem de sete. Chata, com sua “delicadeza e musicalidade” de estilo (como é dito na quarta capa do opúsculo), a “precursora do feminismo” rateia principalmente na descrição das sensações dos machos humanos durante a reciprocidade carnal do amor (agora você gostou, hein, leitor?). Não entendo por que ela se foi meter nessa.

Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, nº 28, p. 2, 4/1/2007)

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Texto fraco. Ainda bem que é curto

Passageiro na agonia

A gente que anda de ônibus sofre. Mas comigo as coisas parecem mais graves do que para outras pessoas que reclamam da longa espera nos pontos, das sacudidelas das idosas carrocerias, do mau humor dos motoristas (que aumentou com a obrigação que agora eles têm de conferir a identidade dos velhinhos – que lotam irritantemente a minúscula parte dianteira do interior do veículo – e liberar a catraca eletrônica, “automática”, enquanto dirigem), do preço injustificado da passagem, dos variados odores e de outros, e tantos, incômodos.
Minhas filhas concordam quando afirmo que o homem que perdeu a capacidade de se indignar merece uma pá de cal. Mas ressalvam: “Pai, você se indigna demais.”
Outro dia, lá estava eu a navegar em um ônibus relativamente novo, com vigoroso e dinâmico motorista e, ao lado do motorista, um loquaz fiscal da empresa. Lembrei-me de antiga frase: “Fale com o motorista só o indispensável.” E o pior: o motorista era daquelas pessoas que gostam de olhar nos olhos do interlocutor; e nem é necessário mencionar a atitude puxativa para com a “autoridade” fiscalizadora.
O ônibus, apinhadíssimo, parou para receber mais pessoas. Coisa inacreditável que tantos corpos ocupassem o mesmo espaço.
Uma mulher apoiando-se em muletas tentou entrar pela parte traseira, mas foi impedida pelo zeloso fiscal, que mandou o motorista fechar as portas. Correndo desajeitadamente, com pernas atrofiadas e muletas, ela foi até a porta dianteira e pediu que lhe permitissem o acesso àquele veículo de concessão pública. Nem o motorista nem o bate-pau demonstraram qualquer boa vontade para atender ao pedido da cidadã, apesar do coro de sofredores dentro do ônibus: “Deixa, deixa, deixa...”
“Se ela quiser entrar”, sentenciou o altivo fiscal, “vai ter que ser pela porta da frente, para se identificar e mostrar a carteirinha de deficiente físico.” Foi aí que a mulher pediu que ele se identificasse. Ele nem tchum, porque autoridades brasileiras não se dignam mostrar credencial para pé-de-chinelo. Ela argumentou que precisava entrar por uma das portas de trás, pois conseguiria lugar para se sentar. Se entrasse pela frente teria de passar pela catraca, e ela estava sem carteirinha.
Ah, aí é que não iria entrar mesmo, altissonou o fura-greve profissional. “Eles” – a mulher tentou mais uma vez argumentar – “tomaram minha carteirinha porque pessoas em cadeira de rodas ou usando muleta não precisam mais se identificar como deficientes.”
Apoiou-se em uma das barras que ladeiam a porta e tentou abrir a bolsa para mostrar o que chamou de lei. Então o fiscal, de pé à porta feito um cérbero, mandou que o motorista “arrancasse”. Nem precisava, pois o homem já acelerava raivosamente. Deu uma arrancada digna de pole position. A mulher foi arrastada, mas soltou-se a tempo e evitou a queda, graças a longa experiência com muletas e pernas atrofiadas.
Até o fim do percurso tive de ouvir a voz antipática do fiscal, que não cansava de repetir: “Ô povo ignorante.”
Sofro de doer.

Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, nº 27, 28/12/2006)

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Aconselha-se aos office-boys em geral a não se arriscarem no trânsito, por mais valiosa que seja a entrega


A mariola

Estava eu a tomar, tranquilamente, o habitual refresco de tamarindo, em pé, ali no Terminal Padre Pelágio, quando um menino me pediu 30 centavos para comprar chiclete. Negrinho roliço, com a aparência de quem esbanja saúde, despertou neste cavaleiro de triste figura a maior inveja.
Além da infinita precisão de ser amado (por ela), tenho outras, muitas outras, tantas que posso incluir até chiclete entre as minhas necessidades. Ah, as necessidades de cada um...
O garoto não tinha cara de quem estivesse com fome, e sei disso porque esse tipo de cara espelhou muito em minha vida. Ele tinha lá sua vontadezinha de mascar, o que não deixa de ser necessidade.
Não propriamente como a que tive certa vez, quando arrastava a minha asma pelas ruas do Rio.
Morava num sótão na antiga Rua General Pedra, n.º 10, que pertencia a um agiota português. Repousava a cabeça romântica em edição dominical do Jornal do Brasil, estirando a carcaça em folhas impressas espalhadas pelo assoalho.
Mas não, não vou me estender neste papo miserável. Sem falar que pode surgir alguém para dizer que plagio o norueguês Knut Hamsun, que escreveu um livro chamado Fome. (Quando, anos mais tarde, li a tradução de Carlos Drummond de Andrade, feita sobre texto em francês, me senti roubado.)
Bem. Vou falar um pouquinho da mariola.
Era hora do almoço e me dirigia para a mansarda. Para almoçar? Não, para me deitar e economizar energia para a jornada da tarde, olhos fechados, dor de ouvido e saudade, puta saudade de casa.
Mas eis que, da calçada da Avenida Presidente Vargas, vi o pequeno brilho no meio da pista. Fixei os olhos naquele ponto, e os carros que passavam eram apenas vultos velozes. Fiquei parado, tenso, e comecei a procurar brecha naquele trânsito nervoso. O brilho poderia ser uma moeda.
O sol tinia em minha testa suada, no nariz queimado, no ouvido a supurar. Puxei o ar fuliginoso da avenida para o peito, que deu um forte chiado, de agradecimento ou protesto. Armei o bote. Tinha que ser uma moeda.
Vupt. Dei um pulo que nem o João do, voei pela dianteira de um carro e caí na outra faixa da pista, com a mão ávida a abafar a rodinha de metal.
O chiado agora não era do peito. Um para-choque quase tocou em meu casaco marrom (que fora de uma das irmãs). Uns três carros frearam com fúria, outros se desviaram perigosamente para evitar o engavetamento.
Eu me levantei e corri para a margem da pista de dentro. O mundo todo parecia me chamar de filho da puta, o cândido menino de dona Branca.
Quase contente, marchei rumo à Central do Brasil. Pisando nas tábuas que serviam de passeio em torno das obras do metrô, cheguei a um tabuleiro sobre que se vendiam caramelos.
Numa pilhazinha tímida, vi a cobiçada mariola. Perguntei o preço à mulher sentada em um banquinho do outro lado do tabuleiro, abri a mão e olhei para a moedinha, molhada de suor. Era aquilo. Em estado lastimável, por causa de muito pneu e asfalto. Por ela, eu estava meio envergonhado.
Com o docinho de banana no bolso, caminhei para a General Pedra, logo ali atrás da estação.
Deitei-me no chão do sótão, à fresca penumbra, e metodicamente afastei o papel transparente, expondo apenas metade da mariola. Mordi maciamente. Meu almoço. Depositei a outra metade em pequena pilha de livros. Meu jantar.
Fechei os olhos e deixei o doce dissolver-se lentamente, sugado pelo céu da boca, que doía.
Quanto custa um chiclete? Não sei. No Terminal Padre Pelágio, virei de vez a metade que me restava do refresco de tamarindo.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, n.º 67, 16/9/2001)

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Coisas do tempo em que os japoneses ainda não faziam jabá de jegue, animal a caminho da extinção


Pirela

Ah, emoções que acordam velhas emoções. É como se Maria Purcina voltasse a jogar basquete no meu coração e... Ora, romântico leitor, por que tornar a falar da garota, se ela já foi objeto de embriagadíssimo texto deste desprezado cronista?
A ressonância daqueles tempos só me faz entender uma coisa: aprendi a controlar um tantinho os impulsos provocados pela paixão, o sarcasmo dirigido ao mundo, a dor tonta que me fazia lançar palavras como se fossem dardos envenenados. Hoje, acerbo, volto o grosso da tempestade para mim, eu digno de todo o escárnio de que sou capaz.
Na época de Maria e sua indiferença, uma de minhas vítimas prediletas era o “Pirela”. Coitado do menino. Lá ia eu para a rua, em frente ao Hospital Regional, sob os eucaliptos, para o joguinho de bola. Quando via aquela patética figura com o pé engessado, à margem da brincadeira, não resistia: metia um Pirela em frase maldosa.
Ele ganhou o apelido depois que fraturou o pé e por causa de um jegue manco, que tinha um casco enorme, virado para fora. Mas, pensando bem, não era para o menino ficar tão ofendido com a alcunha, já que Pirela, o jegue, tinha uma caceta fenomenal, a preferida de todas as jegas da cidade.
Curioso, aquele membro. Comprido e torto, quase a tocar o chão, era albino, em contraste com as demais partes do corpo. Somente a ponta (o “pires”, como a meninada chamava) era preta.
O animal tinha o dom de ser visto em todo lugar. Não havia quem não o conhecesse – e admirasse. Era um garanhão, no sentido humano e sem-vergonha do termo. O nome dele adviera provavelmente de Pirelli, o pneu. Mas juro que nunca vi pneu albino.
Em período de eleições, o jegue se transformava em outdoor ambulante. Havia político que, para usufruir do prestígio de Pirela, pichava o próprio nome no dorso do animal. Feito cabo eleitoral abnegado, com aquela caceta chamativa, o jumento fazia chegar a todos os bairros a propaganda de outro – serenamente, lentamente, e a ruminar pelos terrenos baldios.
Agora voltemos ao menino.
Um dia ele estava a ver o joguinho, melancólico como sempre, desde que ficara impossibilitado de participar. De pé diante da cerca do hospital, estendeu a perna engessada para um lado, igualzinho a Pirela, o jegue, e colocou as mãos para trás, à altura da bunda.
Um dos goleiros, vendo aquela pose, não se conteve. Botou o pinto para fora, fê-lo endurecer e o pousou ternamente na palma de uma das mãos de Pirela, o garoto. (Juro que não fui eu.) Num reflexo, o coitado fechou a mão. Quando percebeu o que era, deu um repelão na rola, e devidamente filho-da-putou o indecente dono dela.
A turma parou o jogo só para farrear em torno de Pirela. Claro, eu também. Afinal, Maria Purcina, havia pouquinho, dobrara a esquina sem dar nem tchum pra mim.
Com o fim da partida, à tardinha, fui para o doce recanto do meu lar, como diz o hino da cidade. Mal entrei, um estrondo no janelão da sala. Uma pedra atingiu o caixilho, por sorte não quebrando vidro. Pareceu um tiro. Meu pai, que estava no recinto, ficou pálido (devia ter seus motivos).
Saltei para fora e avistei Pirela a correr, manquitolando, para a casa dele. Fui ao encalço do infeliz, pegando a primeira coisa que vi pelo caminho, um pedaço de adobo. Ele entrou, fechou a porta. Então mirei a janela verde daquela casinha amarela, uma acanhada janela de madeira.
Aí, tarde demais, avistei os cabelos brancos da avó do garoto. Ela abriu a janela para receber na testa o torrão, que se espatifou. Em pânico, desabalei para casa e saltei o muro, para me esconder no quintal. Fiquei sem saber se a velhinha teve problema além de um baita susto.
Emoções, antigas emoções. Apesar de tudo aquilo que as novas emoções me trazem, por que falar de Maria Purcina? Nem tchum.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, n.º 49, 26/8/2001)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Foi no tempo em que blecaute virou apagão. Para “racionalizar”, o governo estabeleceu limite no consumo de energia elétrica nas residências. Cortes aleatórios


O banho

Aviso de corte de energia elétrica chegou à morada deste cronista de alma cambota. Hoje Liginha, a caçula, cronometrou o meu banho e – como se o ato fosse um atentado à liberdade – pediu desculpa. Mas não me poupou: “É preciso diminuir mais.”
Minhas filhas são assim, cidadãzinhas exemplares, embora tenham aprendido a não ser legalistas. Afinal, foram concebidas no breve descanso do guerreiro.
Já que a qualquer momento as trevas cairão sobre o humilde abrigo de pai e filhas que, não há muito, voltaram a viver juntos, não sei como chegar e dizer às meninas: “Olha... hum... quer dizer...” Umas tossidelas, esfregadas da palma das mãos suadas nas pernas da calça...
Não sei como chegar às meninas e dizer: “Voltem para a casa da mamãe.” É claro que elas iriam adorar, e a mãe também. Mas ficariam frustradas, porque acreditam ter uma missão a cumprir ao lado do velho guerreiro.
Encaro qualquer merda. Minhas meninas, no entanto, não merecem Fernando Henrique Cardoso e aqueles que se manietam em acordos que, apesar de se desmancharem no ar, deixarão manchas no fundo da cueca moral.
Bem, essa coisa de racionamento pode até ser bom para mim. Ando reclamando muito da rotina. É duro acordar, tomar banho, escovar os dentes e ter o dilema musical de sempre: “Com que roupa eu vou?”
Quem vê assim pensa. Domingo declarei, bocão cheio como quem realiza grande e feminista feito: “Vou lavar roupa.” Marchei para o quarto para recolher as peças e parei, estatelado: “Que roupa, meu deus?”
A rotina, eu dizia, está me matando. Poderia, então, vezinha que outra, saltar um banho. As meninas, por exemplo, já reduziram a lavagem do cabelo. Eu, que não consigo namorada nem implorando (dia destes intentei tal experiência), não tenho por que não tolerar um grudinho numa dobra aqui e noutra acolá do corpo, ou um esmegmazinho na desusada.
Houve tempo em que meu amigo Raimundo, lá em Manaus, dizia que banho demais gasta. Naquele calorão, o namorador Raimundo costumava passar uns três dias seguidos sem molhar os pentelhos. É claro que abusava do bastão de desodorante Rastro ou Avon, não me lembro.
O moço exalava uma estranha composição química, fortalecida com o sarro do Hollywood. As manauaras, contudo, penduravam-se nos beiços dele. Vai ver que é nisso que residia o feitiço do rapaz.
Pelo meu lado, apesar de toda a assepsia... Se contar do primeiro dia em Manaus até a primeira carimbada, era para ter existido um bebê de pelo menos uma semana a me complicar a vida.
O amigo Raimundo fazia o maior sucesso. Sem falar que ele era sempre remunerado, ou em espécie ou em mantimentos. Assim mesmo o desgraçado se dissera “um puto barato” quando Processo, uma de suas namoradas, lhe deixou dinheirinho no fundo da rede e saiu para faturar mais.
O apelido da dama era outra ruindade do Raimundo. Certo dia, em mesa de bar, o desgraçado afirmou que a mulher que ele comia era “mais feia que processo”. O barba-azul devia ter lá suas razões para fazer a comparação.
Obviamente, nós, na presença dela, não a chamávamos de “Processo”. Só que uma vez, ainda em mesa de bar, eu a exortei, distraidão: “Processo, vamos descer outra?” A moça ficou sem entender, mas Raimundo, impávido, explicou: “Ele quis dizer que, neste processo do passar das horas, ainda dá para a gente tomar outra cerveja.”
Não era à toa que ela nos achava brilhantes.
Pois é, a Lígia me anda marcando por causa do apagão. Ao mesmo tempo – tadinha dela – quer que eu me mantenha sempre limpo. Quando lhe falei de minha proposta para economizar energia, ela fez “Credo, pai”.
Aí, quase autoritária: “Nunca, nunca vou permitir que você fique sem tomar banho.” Para amaciar um pouco, maliciou-me com um olhar e disse, muito lentamente: “Ela não tem cara de quem gosta de homem porco.”
Pô. É como diria o cartunista Almir, do Diário da Manhã: a gente não pode nem colaborar.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, nº 43, 19/8/2001)