quarta-feira, 19 de maio de 2010

Um mundo de talvezes. “Chega o dia em que tudo fica por conta da ilusão”



Pós-escrito de amor

Meu espírito anda (o espírito que anda...) mais confuso que data de validade em embalagens de alimento. Talvez seja por isso que uma pichação no muro da garagem da Transurb não me sai da cabeça.
Não tem qualquer relevância, não protesta, não exige melhor transporte coletivo, não condena a política do governo de privatização. Nada de interesse do “público em geral”, nada de go home, viva Cuba, João Amazonas vem aí. Nada do que era tão comum há pouco tempo.
O escrito, no entanto, ressoou no espírito obumbrado de um homem que se acha sob o signo do desdém, do desprezo tacanho.
Não trouxe luz, muito menos plantou jardim de rosas, como a frase que José Saramago leu na empena do prédio ao lado de uma ruína. Mas talvez tenha suscitado um desejo.
A frase que entrou pelos olhos do escritor português estava em maiúsculas vermelhas e era declaração ou comunicado de amor: “A Lena ama o Rui”.
Sim, poético leitor, tinha tudo para abrir na alma, feito leque, um jardim de rosas.
O que está escrito no muro da Transurb não. São pesadas letras negras que expressam despeito, ou orgulho, ou indiferença. Falsa indiferença, já que ninguém iria sujar as mãos para comunicar ausência de sentimento.
Em mim talvez tenha suscitado um desejo: “A paixão, como veio, vai embora”.
O nome da pessoa a quem se destina a mensagem está borrado, e não há nome de autor. Mas há uma Lena, sim, há um Rui colados a tinta no muro da garagem.
Só que, como é da vida e dos seres humanos, a paixão foi maculada, o amor começou a desbotar, e o Rui e a Lena já não são os mesmos. Aquilo, na parede da Transurb, é quase um pós-escrito de amor.
A Lena e o Rui de Saramago se merecem. Não há despeito, não há mágoa naquele singelo registro. No entanto, no que anuncia ou ameaça o fim de uma paixão há algo de brutal, de taxativo: “Você não me merece.”
Triste constatação, como a que fez um amigo, a encharcar-se em cerveja de R$ 1. “A mulher veio com um pretexto tão besta...”
Mas – filosofava o amigo, alteando a voz para se fazer ouvir acima da canção interpretada por Roberto Carlos – pretexto é pretexto. “Quem precisa disso para justificar o que quer, ou até o que não quer, não merece o outro.”
Às vezes acontece comigo essa de aturar bêbado apaixonado. Com uma atenção torturada, fico no castigo até não mais resistir. Então é hora de procurar pretexto para cair fora.
Talvez eu não mereça o amigo. Acredito, todavia, que todos se merecem até certo ponto. Entre merecer e não merecer, o limite é indefinido, vago, e simplesmente calha um dia de surgir, nítida, a linha que o traça.
Entre amantes, apenas um deles descobre tal desmerecimento: o que é desprezado e, tal o meu amigo, se acredita muito bom.
Naquela noite de confidências, em boteco movimentado, o amigo começou a fazer coro com a voz do alto-falante: ... você não serve pra mim.
Os bugalhos, molhados e fixos em minha direção, me assustaram. Tive a sensação de que todos no bar olhavam para mim, supondo (meus deus) que o infeliz estivesse me dedicando as palavras daquela musiquinha.
Você não serve pra mim. Com pretexto ou sem pretexto, era preciso ficar fora do alcance dos perdigotos confeitados de paixão.
Levantei, acenei como se testasse a visão do rapaz e me joguei na noite da rua. Ao dobrar a esquina, ainda ouvia a voz penosa e encharcada sobrepondo-se à que saía da caixa de som. Vou procurar outro alguém...
Pois é, leitor. A paixão veio, teve a sua história e os seus momentos. Veio branda, sem sustos e rompantes, e logo encheu o espírito de certeza e de rumo.
Chega o dia em que tudo fica por conta da ilusão. As coisas perdem o sentido, os pés adejam alguns palmos acima do chão e a mente se ocupa tão somente com por quês sem eco, sem resposta.
“A paixão vai embora como veio, você me desprezou e descobri que você não me merece.”
Se o amável leitor não entende o motivo desta crônica, a última talvez, não se torture.
Ela nasce de espírito náufrago que se agarra a palavras desenhadas num muro de garagem. Um pós-escrito de amor, uma coisa à toa, um consolo.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 105, 11/7/1999)

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O autor divaga sobre divagações e como se a vidinha pregressa dele interessasse ao leitor, que semana que vem será brindado com romântico texto


O distraído

Anh? O quê? Ah, sim: sou distraído. Muito. Esqueci até o que ia escrever agora.
Sou tão aéreo que dias atrás entrei numa dessas “estações” da Transurb e saí, quer dizer, entrei por um lado e saí pelo outro, como se estivesse desembarcando. Queimei preciosa passagem.
Sou milagre de sobrevivência no trânsito feito um jegue que havia na minha terra, o Pirela, que atravessava incólume rodovia altamente movimentada.
Esta vocação estuporada para nefelibata não me deu muita sorte com professores. Até a querida dona Maria, minha professora principal na Escola Anísio Teixeira, me chamava de sonso.
Sonso aqui não vai no sentido dado pelos dicionários. Queria significar, mesmo, parvo, desligado, bocó.
Eu tinha boas notas, mas ficava sonhando durante as aulas. Quando a boa Maria me fazia uma pergunta era obrigada, sempre, a repeti-la. Mas ela gostava muito de mim, ao contrário do professor Iolando, o pulha.
Ele surgiu mais tarde em minha vida. Isso quando meus pais, sei lá por que razão, resolveram matricular-me em escola particular. Iolando, o coisa ruim, era o dono dela.
Era maníaco por algo indefinível, sem regras estabelecidas, que ele chamava de disciplina.
Certa vez, indo para a escola, distraidamente esqueci-me pelo caminho. Parava aqui, parava acolá, olhava pra baixo, pra riba, pra não sei onde. O azul do céu, a nuvem, o passarinho; a lagartixa, a flor, o cadarço dos sapatos Vulcabrás.
De repente, ouvi o barulho da serra da serraria que ficava ao lado da escola. Minhas entranhas se comprimiram. Aquele som, familiaríssimo, só era ouvido depois de a aula ter começado.
Passei pelo portão, cheguei à porta da sala e timidamente pedi: “Dá licença, professor?”
Ele bradou: “Venha cá, seu moleque.”
Caso você não saiba, leitor, o filho de seu Miro informa: na minha terra moleque não era palavra para ser vomitada contra menino de boa família. Ofensa grave.
Mas não foi isso o que me levou a dar a resposta que dei quando o infeliz do Iolando perguntou: “Por que chegou atrasado?”
Acreditei estar sendo sincero quando disse: “Porque quis.”
O homem virou fera. Pegou de palmatória enorme, cheia de furos, e me fez estender as mãos. Depois do flagelo, ordenou que eu ficasse virado contra um quadro-negro. Passei todo o período de aula ali, uma manhã inteira sem direito a merenda e recreio.
Não satisfeito, o fanático ainda me fez levar uma carta para meus pais na qual relatava o fato à maneira estúpida dele. O besta aqui, então com seus 9 ou 10 anos de idade, cumpriu direitinho a ingrata missão.
Era bom menino. Songamonga, sim, mas bem-comportado na escola (talvez mesmo por causa da sonsice). Não merecia, em minhas jornadas de estudante, encontrar novamente Iolando no meu caminho. Mas aconteceu.
O indesejado encontro deu-se anos mais tarde, numa escola pública, a melhor, chamada por todos de Escola Normal (ninguém dava bola para o nome “verdadeiro”).
Iolando andava desaparecido, diziam que estava nos Estados Unidos. Assim, quando na Escola Normal me transferi para o período noturno (por motivo que não vem ao caso) nem imaginava que ia dar de cara com o truculento professor, que passaria a dar aulas de inglês.
Havia voltado para o Brasil trazendo uma novidade: a pronúncia que ele afirmava ser a correta. Garden, portanto, era gárdini. Mas eu tinha a impressão de que o homem exagerava. O sotaque continuava baiano.
Não demorou muito para Iolando inventar moda. Anunciou que em tal dia os alunos deveriam dizer uma frase em inglês quando ele fizesse a pergunta pertinente, também em inglês.
No fatídico dia, o escolhido para começar a maratona fui eu. Fiquei espantado, surpreso. Pensei que estivesse bem escondido no fundão da sala.
Quando o professor militarmente ordenou (em inglês) que me levantasse, eu o fiz incontinenti. Fiquei quase em posição de sentido, a tremer dentro do terno marrom com que madrinha Mira me presenteara.
Mas meu olhar foi-se perdendo, passou para além da testa de Iolando e pousou no quadro-negro. O quadro-negro...
Ainda militarmente, o americanófilo (apesar da discriminação que sofrera como pipoqueiro no Harlem) exigiu: “Sentence, please.”
Eu me sentei. A sala estremeceu com a gargalhada geral. Somente o paranoico não riu. Achou que me fizera de desentendido para provocar, e proclamou a sentença: dez dias de suspensão.
Agora, sim, petulante, pedi vinte dias. Ele, pronta e magnanimamente, atendeu.
Vinte dias sem aula por causa de simples distração. Por falar nisso, é preciso concluir este palavreado. Distraidamente, ultrapassei o número de linhas preestabalecido.

[Os alunos do período noturno da Escola Normal eram dispensados do uso da farda, camisa branca e calça azul-marinho e blusinha branca e saia plissada. O famoso terno marrom, na ocasião, tinha a calça mais clara que o paletó, que era envergado somente quando fazia muito frio.]


Hamilton Carvalho
Gazeta de Goiás, nº 104, 4/7/1999)

quarta-feira, 5 de maio de 2010

O leitor pode até ficar com água na boca, mas Hamiltão não tem a receita... ou não quer dar


O comedor de gato

Estava eu sentadão à porta da cozinha, canelas estendidas para a carícia do sol matinal. De repente senti outro tipo de carícia. Um dos três gatos me roçava as pernas.
Sim, três gatos. Lígia, a caçula, chegou a casa, na véspera, trazendo o último dos mosqueteiros devidamente embalado em caixa de papelão. Só espero que não me apareça com nenhum D’Artagnan...
Agora, babá de gatos, desdobro-me em lavar vasilhas e dar de beber e de comer para eles, em vez de curtir um far-niente íntegro, ao sol da manhã.
Como ando em terrível crise de mau humor, cruelmente fiquei a pensar em tio Jeso. Ele adorava gato escaldado, ou melhor, escaldado de gato.
Tia Ziu separou os petrechos com que o marido exercitava sua arte culinária. No caso, ela não confiava de jeito nenhum em água e sabão.
O homem ficava indignado porque ninguém da família queria degustar o nobre cozido, e ainda por cima havia aquele injustificado nojo da panela. “Preconceito besta.”
Tio Jeso era uma figura. Por mais longe que minha família morasse, de vez em quando ele aparecia de surpresa em nossa casa, exalando o indefectível cheirinho de pinga.
Foi assim que nos visitou em Ribeirão Preto. Uma festa para Maurício Guimbeiro. Não que o menino se importasse propriamente com ele. É que as guimbas do tio eram, digamos assim, generosas.
Maurício era coleguinha de folguedos. (Meu deus, com expressões que tais, ainda vou acabar clássico da literatura brasileira.)
Na verdade, o fumador de baganas era uma espécie de rival. Contestava a minha liderança na rua.
Eu tinha uma maneira esquisita de liderar. Certa vez – só para dar pequeno exemplo – arranquei, com um soco, um dente do irmãozinho de Maurício.
Num jogo de futebol, cismei que o garoto estava desobedecendo ao esquema tático elaborado pelo técnico do time, que era, para variar, eu, o dono da bola.
Lembro-me claramente. O menino, coitado, coberto de lama feita de suor e terra vermelha, arregalou os olhos quando me viu marchar no rumo dele com os punhos armados.
Um soco e tanto. O sangue desceu pelo queixo para engrossar a lama que o pequeno craque ganhara no corpo, no esforço de acatar as determinações do Yustrich do São-Paulinho.
Para usar linguagem adequada a ato tão nefando, evadi-me do local. Fui parar à beira de um córrego, e, sentado entre troncos de árvore cortados que alguém ali depositara, passei muitas horas em meditação forçada.
À medida que o tempo escurecia e esfriava, a fome e o remorso tomavam de mim. Se fosse só pelo remorso, teria ficado por lá, ao relento. Mas, não mais resistindo à fome, voltei devagarinho para o aconchego do lar.
Sorrateiramente, acerquei-me dos fundos da casa e saltei o muro. Com muito jeito, empurrei a porta da cozinha e, na ponta dos pés, entrei.
Ali estava meu pai, a segurar com ambas as mãos um corrião dobrado. “Venha cá, seu corno.” O corno foi.
Pois é, Maurício gostava de uma boa guimba. E as do tio eram as melhores, já que os cigarros eram fumados somente até a metade.
Quando o parente jogava fora uma ponta, eu, disfarçando que era uma beleza, ia lá e a catava. Levava para Maurício, apesar de ele contestar minha suposta liderança.
Aliás, para resolver a questão de quem mandava no pedaço, a turma organizou um torneio de arco e flecha. Tiro ao alvo. O vencedor seria o “chefe”. Uma coisa assim meio que democrática.
Adivinhou, leitor entediado, quem foi o ganhador da competição? Maurício Guimbeiro. Só que não levou. Eu, garbosamente, cingi-me com o simbólico cocar. Na marra, é claro.
O menino ficou de mal de mim. Aos poucos, porém, voltamos a circular pelo bairro à cata de guimbas.
Sentadão à porta da cozinha, preguiçosamente com as pernas estendidas para o sol, fiquei a meditar.
Tio Jeso era realmente uma grande figura. Tinha, no entanto, aquela mania de comer gato, animal praticamente extinto nas redondezas de onde ele morava.
Relutando em me levantar para trocar a água dos gatos e abastecê-los de ração, enviesei um olhar para a fêmea quando ela, a miar irritantemente, passou por mim. A danada até que estava bem gordinha...

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 102, 20/6/1999)

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Hamiltão, atualmente, anda às voltas com um casal de gatos... Não, não é o mesmo casal deste escatológico registro


Fidel e Letícia


Enquanto não me chega mensagem por e-mail da felina Letícia Spiller, vou bordejar por assunto desinteressante, como sempre. É claro que o leitor não precisa embarcar nessa. Este é um aviso honesto.
Certos cronistas pensam que cérebro de leitor não funciona, e assim, quando estão sem assunto, caem na embromação.
Por exemplo, há os que recorrem a citações. Existe livrinho de Stanislaw Ponte Preta sob medida.
Mario Prata já apelou para isso. Fez um nariz de cera babaca para informar aos ignorantes que o Stan da Tia Zulmira era Sérgio Porto, e mandou ver trechos de escritos do intimorato jornalista carioca. Faturou o seu à custa da imaginação alheia.
Já o degas aqui recorre a ideias das filhas.
Aliás, elas vivem a me cobrar um “romance” chamado O Gato Careca, cuja péssima inspiração me ocorreu há alguns anos. Fiz a besteira de prometer que o escreveria.
As meninas gostam muito de gato. Gostam muito de animais em geral. (Talvez por isso é que têm tanto carinho por mim.)
Só que às vezes exageram. E sobra para o bestalhão do pai.
Dias atrás me apareceram em casa com um casal de gatos “adolescentes” (elas têm cada uma...). É que onde elas moram não há como manter dois “adolescentes” cagões.
Agora os danados empestam a minha casa. Na “fase” em que eles estão, não se preocupam em dar uma chegadinha ao quintal, onde o chão de terra é mais propício que o azulejado.
A gata não sai de dentro da casa de jeito nenhum. O que ela faz é só comer, dormir e...
Já Fidel, o gato, passa a maior parte do tempo no matagal do meu “jardim”, a trepar em árvores e a correr atrás dos frangos da vizinha da esquerda (o que, aliás, é uma incoerência ideológica).
Vai ver que Fidel, que anda tão ocupado, não tem nenhuma responsabilidade pelo bosteiral que invade o meu lar. É na copa, é no quarto, é no banheiro...
 Manhã destas estava eu lá, feito flor, acomodadinho no vaso, meditabundo, quando senti um horrendo fedor.
 “Meu deus”, assustei-me, “será que cheguei a tal estado de putrefação?” Foi quando, aliviado (entenda como quiser, leitor), vi um monte de cocô exatamente onde piso ao tomar banho.
O monte era de tamanho exagerado, coisa típica de adolescente. Até no cheiro.
Recordo-me da viagem de mudança que fiz com a família, de São Paulo para a Bahia, numa Kombi. Com o motorista, eram onze pessoas e bagagem comprimindo-se no pouco espaço do veículo. E um gato.
Quando chovia, e chovia pra valer, éramos obrigados a fechar as janelas. A cada parada, tínhamos que limpar bosta preta de gato. Ô tarefa ingrata.
Ficamos de tal forma impregnados com a fedentina que passamos a não mais senti-la. No destino, depois que retiramos os cacarecos da mudança, um dos filhos do dono do carro – na casa de quem ficaríamos hospedados – foi fazer a limpeza.
A imagem de Moreninho naquele instante está vívida em minha memória. Ele recuou, soprando furiosamente pelas narinas. Repetia: “Fum-fum, fedor de macaco... fum-fum, fedor de macaco...”
Fidel e... Ah, sim, leitor, a gata ainda não tem nome. As meninas recusaram várias sugestões. Eu, timidamente, dei o meu palpite: “Por que não Fidelina?”
Fui acusado de ter pouca imaginação.
Já que penso tanto em La Spiller, poderia conseguir a aprovação do nome de Letícia para a gata. Mas não sei. Não sei se seria uma homenagem ou uma sacanagem.
A longilínea atriz me dá a impressão de não ser tão cagona. Seria até uma brutalidade dizer que ela caga.
Ih, não tenho e-mail.
Sabe, leitor, eu quis dar uma de sofisticado, só de inveja de coleguinhas que anotam o e-mail ao pé do texto (quando às vezes o dito cujo não tem nem cabeça).
Mas se ela, a Spiller, me mandasse pelo menos uma boa e velha carta... Fico no aguardo.


Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 100, 6/6/1999)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Ao receber por fax recorte deste texto, enviado por uma “amiga”, a tal “pessoinha” (uma mulher, claro) ficou levemente chateada com o “garanhão”


Alô? Bati o carro

Pessoinha de minhas relações bateu o carro. Coisa chata. Sempre que recebo tal tipo de notícia, lembro-me da vez em que, com o carro da firma em que trabalhava, abalroei a traseira de um caminhão três-quartos.
A caminhonete C-14 ficava à minha disposição para executar qualquer serviço no centro de Imperatriz, MA. Isso durante o dia, porque à noite... Bem, à noite a história era outra.
Não costumava estacionar muito, por exemplo, na Farra Veia [pron.: “véia”], o puteiro mais antigo da cidade. Mas marcava bela presença na boate da garotada gente-fina, para exercitar meu poder de sedução.
Dava certo, e só não dava mais certo por causa desta minha invencível timidez.
Há ocasiões em que não acredito em mim. Ali, na boate, namorei por uma noite linda garota de olhos verdes. De madrugadinha, depois dos amassos de regra, levei a jovem para a casa dela.
Era tão tímido que queria faturar a menina naquela mesma noite, dentro do carro, pertinho de onde ela morava, só para não ter que visitá-la e encarar parente, como se fosse o coitado de um namorado comum.
Ela queria mais e, por isso, deu pouco. Deu nada.
Só houve o vapt, não houve o vupt. Naquele tempo, depois da linda Lucimar de Manaus, eu não queria mais arredondar ovo com ninguém. Perdi, talvez, um grande amor.
Na época, meu calo, mesmo, eram as quatro telefonistas da cidade. Por causa delas, não resultou em nada meu flerte telefônico com a filha do dono de uma torrefação de café.
Não, estou sendo injusto. Embora elas monitorassem meus telefonemas, a culpa toda foi da minha parva timidez. Conversava com a garota apenas por telefone.
Quando passava de carro pela rua em que ela morava, respondia aos acenos mas não parava para bater um papinho com a lindura. Até mesmo cheguei a encontrá-la em um clube, mas ficamos somente na troca de olhares.
É bem verdade que eu estava de namoradinha, o que sem dúvida atrapalhou. (O leitor, se vem comigo lá de trás, deve lembrar-se da maranhense que perdeu a dentadura na piscina.)
As telefonistas eram muitinho sapecas. Toda vez que eu pedia uma ligação, a que atendia puxava conversa, fazia elogios, ou seja, agravava minha timidez.
Todas me cantavam, mas, como diz a canção infantil, não comi ninguém. Havia, digamos assim, um engarrafamento no meu pedaço. Uma danadinha atrapalhava a outra, e o bestão aqui ficava na mão.
Na boate, então, a disputa era coisa de louco. Só conseguia ficar um pouco mais íntimo de uma quando outra ia fazer mijadinha. Como diria o comentarista tatibitate Casagrande, não finalizava.
Ah, sim, exigente leitor. Eu falava de batidas.
Belo dia me levantei com estupenda ressaca e fui cumprir meus deveres. Em estreitíssimo beco do centro da cidade [beco onde funcionava a citada boate], tive de parar atrás do três-quartos, cujo motorista levava o maior papo com alguém que estava a uma janela.
O sujeitinho ficou um tempão ali, observando-me pelo retrovisor, porém não buzinei – o que deve tê-lo irritado.
Aí resolveu me castigar, por não me comportar como ele no trânsito. Saiu devagarinho e virou a esquina. Eu atrás.
Logo depois da esquina havia um grupinho assanhado de garotas. O bonitão aqui não se fez de rogado e ficou jogando charme. De súbito, o carro que ia à frente freou no meio da rua. Foi o bastante.
Sensação terrível. A caminhonete meteu o capô debaixo da carroceria do três-quartos. O estrago foi grande.
Atordoado, apanhei os óculos, que caíram perto da embreagem, e, com muita dificuldade, abri a porta e saí. Ali mesmo, sem dar ouvidos ao motorista do caminhão, peguei um táxi.
É que não tinha carteira de habilitação. Meu pai, gerente da firma, foi buscar o carro, que teve de ser guinchado.
O interessante é que o velho mulherengo não brigou comigo. A batida, para ele, teve causa justa. Além disso, fui macho suficiente para fugir do flagrante.
Neguei que estivesse paquerando no momento do acidente, mas ele era esperto. “Sei que você não freou, pois não vi nenhuma marca de pneu no asfalto, e você é bom motorista.” Era esperto.
É horrível a sensação que se tem numa batida de carro. Sei bem o que sentiu a pessoinha de minhas relações. Logo ela, que dirige tão bem...

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 99, 30/5/1999)

Às vezes o autor exorbita em suas opiniões. No caso, aqui, quando se refere a Basílio da Gama


A vendedora de sorvete

Ao abrigo do vento curvilíneo que gelava o Terminal Padre Pelágio, a vendedora de sorvete tinha diante dos olhos O Guarani, de Zé de Alencar.
Lembrei-me de lembrar: ao chegar à Redação, telefonar para a primogênita. A amorável filha deste fecundo cronista prepara-se para o vestibular, e era preciso saber a quantas andam as leituras delazinha.
“Pai, você devia me trazer mais livros”, reivindicou Elza, depois que lhe fizera a recomendação de ler, ao mesmo tempo, mais de um, para poder vencer a chatice de certos textos impostos para o concurso.
Se uma “profundidade” começa a aborrecer, deve-se passar para outra “profundidade”. O tédio de uma anula – ou pelo menos arrefece – o tédio de outra.
Minhas filhas são frequentadoras assíduas destas minhas leviandades (embora há quem diga que tal tipo de leitura não é recomendável para adolescentes) e não compreendem por que motivo comissão de vestibular tem tendência para o chato.
No entanto, elas não sabem, por causa da falta de preparo e da bitola imposta pelos cursos, que não se podem comparar coisas menores, como as que registro aqui, com a boa literatura, e boa literatura não é necessariamente coisa chata, ou não devia ser chata de jeito nenhum.
É torturante, para o jovem carente de informações que as escolas não fornecem, ter de encarar, na marra, uma montanha de livros escritos em épocas tão distantes do mundo em que se vive.
Ou então ser forçado a ler calhamaços cheios de digressões sobre coisas de que os garotões já estão cansados de saber.
Filosofias, conceitos, preconceitos, canapés e canapês. A molecada “fica” nos cantinhos escuros (ou mesmo claros), enquanto a senhora de Alencar inadvertidamente deixa aparecer a pontinha do pé... calçado. O máximo de tesão.
João Ubaldo Ribeiro acaba de lançar livro capaz de fazer a alcova de Lucíola, a prostituta, ficar mais entediante que as praças do Projeto Cura, em Goiânia.
Soube de gente que tomou horror de Camões exatamente porque havia imposição para exame de admissão ou vestibular. [O aterrorizante exame de admissão era uma espécie de vestibular para passagem do primário ao ginasial; tudo isso teria mudado...] Não se deu ou não se dá a base necessária para que o estudante pudesse ou possa “fruir” o texto do portuga.
Em vez de abrir caminho para o jovem chegar ao grande poeta, o “mestre” faz é fechá-lo, traumatizando um moleque que não consegue botar na ordem direta um verso de Os Lusíadas.
Mas Camões vale sempre. Seria bom se as escolas colocassem a meninada em contato com a lírica do Caolho. Depois com Os Lusíadas, juntamente com informações históricas e gramaticais. (Era preciso, no entanto, que professores vencessem, antes, o próprio analfabetismo.)
Agora, O Uraguai... Não sei o que deu nos responsáveis pelo vestibular da Universidade Católica de Goiás para indicar essa porcaria de Basílio da Gama que não serve nem como “documento histórico”.
Já a Universidade Federal, depois de sucessivas besteiras – como a de “indicar” brochura broxante do solecista contumaz Edival Lourenço –, acerta em cheio, embora atrasadamente, com o livro de poemas de Manuel Bueno Brito Candeia de Canto, belíssimo, redondo a partir do título.
Minha bela Elza chegou a pensar em fazer jornalismo. Não digo nada. Não procuro influenciar. Afinal, currículos por aqui são todos mal-ajambrados.
Para você sair sabendo do curso de jornalismo da UFG, por exemplo, tem de entrar sabendo. Ou se dedicar para aprender, na prática, os rudimentos do ofício.
O curso, ocupado com filosofices, não dá importância sequer à redação – ao ato de redigir, à produção do texto. (São de matar aqueles “trabalhos em grupo”, feitos, geralmente, por um só.) Por isso, o que mais se vê é gente com minhocas filosóficas na cabeça escrevendo troncha e porcamente. Uma meleca só.
(Ad hoc. Quando trabalhava em outro jornal, li coisas assim: “O governador visitou in loco o local onde se localiza a favela.” Deixei o repórter – que já tinha alguns quilômetros em jornal, e devidamente diplomado – na maior indignação quando corrigi: “O governador visitou a favela.” Disse que eu mexera no “estilo” dele.)
Meu deus, que logorreia. Tudo isso por culpa da vendedora de sorvete, a matar o tempo lendo O Guarani, ao abrigo do vento gelado que levava para longe habituais fregueses.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 97, 16/5/1999)

Que diabo é isto? Texto quântico, degenerescência literária ou fruto da falta do que dizer?


A mais bela crônica

Felizão da vida, lá fui eu a uma agência da Caixa Econômica para arrepanhar meus 40 paus de PIS. Na Banca Parthenon Center, ali pertinho, vi cartaz anunciando: “Compramos e vendemos revistas Playboy usadas”.
PIS. Programa de Integração Social, acho. Já há largo tempinho que sou pisado (no bom sentido, ou pelo menos não no sentido de esmagado), mas até hoje não entendo que diabo de integração é essa.
Desde os tempos da Aliança para o Progresso, quando me via obrigado a tragar – depois de fingir cantar o Hino Nacional – aquele leite de gosto miserável que era servido na Escola de Menores, sinto-me um desintegrado social.
Deve ser resultado das memoráveis caganeiras provocadas pelo espumante leite dos gringos, que vinha estragado e, segundo me disseram, acabou virando ração para animal mais resistente.
Talvez seja por isso que tenho este jeitão trash de ser, e anúncios como aquele prendem minha atenção.
Mas, leitor, convenhamos: que sujeitinho mais sem-vergonha é aquele que adquire um lambrecado produto, produto usado às esconsas por sabe-se lá quem e quantos?
Por falar nisso, que usos se podem fazer com revistas de mulher pelada?
Em parede de borracharia, as coloridas páginas servem para distrair o freguês enquanto o borracheiro levanta a alavanca (para retirar a câmara de ar do pneu furado).
É claro que o borracheiro só exibe ao público suas mulheres de papel depois de muito tê-las usado. Onde?
No banheiro. Aqui é que o cândido leitor me pergunta que uso se pode fazer de uma revista na casa de banho (não apenas de banho, pois o recinto é utilizado também para a extração de líquidos, sólidos e gasosos, além de colocar sua acústica a serviço de apaixonados cantores).
Bem. O marmanjo, com seus banhos demorados, estrangula a revista aberta contra a parede, e manda ver.
Se o leitor fizer pesquisa nas ensebadas publicações que se vendem em sebos, por certo saberá, pela impressão dos dedos, se o usuário era destro ou sinistro.
O canhoto, por exemplo, empunha a revista com a mão direita.
O leitor é esperto, não vai fazer tal pesquisa. Só o trabalho de descolar as páginas...
Pensando bem, o termo descolar não é lá muito adequado, já que não entra cola na fixação. Desporrar bate em cima.
Que outro emprego se poderia dar à revista no banheiro?
Dada a lisura das páginas, a limpeza do esfíncter não é recomendada. E neguinho esperto vai é revender as amadas de celulose (não confundir com celulite, pois isso as câmeras se recusam a registrar), e não enfeitá-las de bosta.
Laboratórios de análises clínicas também se utilizam dos préstimos de publicações como Playboy.
Em cubículo cheio de lâminas, espátulas e copos de Erlenmeyer, o paciente (haja paciência – dos outros), depois de selecionar a musa provisória, empunha a publicação à altura dos olhos, e manda ver. Nesse caso, o nubente se vale, digamos assim, de um auxílio-punheta.
Informaram-me que o sêmen de touro de raça é retirado de maneira moderna, com a aplicação de choque elétrico no ânus do coitado. Prefiro a mão à moda antiga.
Se você, solitário leitor, precisar de revistinha para não forçar a memória e não quiser gastar 10% do seu PIS, poderá alugar uma em determinada banca de jornal.
O último aluguel de que tenho notícia foi de R$ 0,50. Mas também é na base do vapt-vupt. Ideal para quem tem ejaculação precoce.
Só que Playboy não sei não... Registrei reclamação de adolescente que adquiriu a edição que traz a Tiazinha: “As fotos são muito artísticas.” Safado.
Recomendei ao pequeno pervertido que experimentasse a Hustler, que mostra, em suas edições, lindas poses ginecológicas. (Que o maldoso leitor não pense que faço permuta com mister Larry Flynt, “founder and publisher”.)
É, realmente, talvez eu tenha sido estragado pelo leite da Aliança para o Progresso, e a merreca do PIS não me vai redimir. Só tenho olhos para as coisas pequenas e sórdidas, como um anúncio perdido entre revistas e jornais, e não posso premiar o romântico leitor com a mais bela crônica da vida.
Não, não posso.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 95, 2/5/1999)