O distraído
Anh? O quê? Ah, sim: sou distraído. Muito. Esqueci até o que ia escrever
agora.
Sou tão aéreo que dias atrás entrei
numa dessas “estações” da Transurb e saí, quer dizer, entrei por um lado e saí
pelo outro, como se estivesse desembarcando. Queimei preciosa passagem.
Sou milagre de sobrevivência no
trânsito feito um jegue que havia na minha terra, o Pirela, que atravessava
incólume rodovia altamente movimentada.
Esta vocação estuporada para nefelibata
não me deu muita sorte com professores. Até a querida dona Maria, minha
professora principal na Escola Anísio Teixeira, me chamava de sonso.
Sonso aqui não vai no sentido dado
pelos dicionários. Queria significar, mesmo, parvo, desligado, bocó.
Eu tinha boas notas, mas ficava
sonhando durante as aulas. Quando a boa Maria me fazia uma pergunta era
obrigada, sempre, a repeti-la. Mas ela gostava muito de mim, ao contrário do
professor Iolando, o pulha.
Ele surgiu mais tarde em minha vida.
Isso quando meus pais, sei lá por que razão, resolveram matricular-me em escola
particular. Iolando, o coisa ruim, era o dono dela.
Era maníaco por algo indefinível, sem
regras estabelecidas, que ele chamava de disciplina.
Certa vez, indo para a escola,
distraidamente esqueci-me pelo caminho. Parava aqui, parava acolá, olhava pra
baixo, pra riba, pra não sei onde. O azul do céu, a nuvem, o passarinho; a
lagartixa, a flor, o cadarço dos sapatos Vulcabrás.
De repente, ouvi o barulho da serra da
serraria que ficava ao lado da escola. Minhas entranhas se comprimiram. Aquele
som, familiaríssimo, só era ouvido depois de a aula ter começado.
Passei pelo portão, cheguei à porta da
sala e timidamente pedi: “Dá licença, professor?”
Ele bradou: “Venha cá, seu moleque.”
Caso você não saiba, leitor, o filho de seu Miro
informa: na minha terra moleque não era palavra para ser vomitada contra menino
de boa família. Ofensa grave.
Mas não foi isso o que me levou a dar a
resposta que dei quando o infeliz do Iolando perguntou: “Por que chegou
atrasado?”
Acreditei estar sendo sincero quando
disse: “Porque quis.”
O homem virou fera. Pegou de palmatória
enorme, cheia de furos, e me fez estender as mãos. Depois do flagelo, ordenou
que eu ficasse virado contra um quadro-negro. Passei todo o período de aula
ali, uma manhã inteira sem direito a merenda e recreio.
Não satisfeito, o fanático ainda me fez
levar uma carta para meus pais na qual relatava o fato à maneira estúpida dele.
O besta aqui, então com seus 9 ou 10 anos de idade, cumpriu direitinho a
ingrata missão.
Era bom menino. Songamonga, sim, mas
bem-comportado na escola (talvez mesmo por causa da sonsice). Não merecia, em
minhas jornadas de estudante, encontrar novamente Iolando no meu caminho. Mas
aconteceu.
O indesejado encontro deu-se anos mais
tarde, numa escola pública, a melhor, chamada por todos de Escola Normal
(ninguém dava bola para o nome “verdadeiro”).
Iolando andava desaparecido, diziam que
estava nos Estados Unidos. Assim, quando na Escola Normal me transferi para o
período noturno (por motivo que não vem ao caso) nem imaginava que ia dar de
cara com o truculento professor, que passaria a dar aulas de inglês.
Havia voltado para o Brasil trazendo
uma novidade: a pronúncia que ele afirmava ser a correta. Garden,
portanto, era gárdini. Mas eu tinha a impressão de que o homem
exagerava. O sotaque continuava baiano.
Não demorou muito para Iolando inventar
moda. Anunciou que em tal dia os alunos deveriam dizer uma frase em inglês
quando ele fizesse a pergunta pertinente, também em inglês.
No fatídico dia, o escolhido para
começar a maratona fui eu. Fiquei espantado, surpreso. Pensei que estivesse bem
escondido no fundão da sala.
Quando o professor militarmente ordenou
(em inglês) que me levantasse, eu o fiz incontinenti. Fiquei quase em posição
de sentido, a tremer dentro do terno marrom com que madrinha Mira me
presenteara.
Mas meu olhar foi-se perdendo, passou
para além da testa de Iolando e pousou no quadro-negro. O quadro-negro...
Ainda militarmente, o americanófilo
(apesar da discriminação que sofrera como pipoqueiro no Harlem) exigiu: “Sentence,
please.”
Eu me sentei. A sala estremeceu com a
gargalhada geral. Somente o paranoico não riu. Achou que me fizera de
desentendido para provocar, e proclamou a sentença: dez dias de suspensão.
Agora, sim, petulante, pedi vinte dias.
Ele, pronta e magnanimamente, atendeu.
Vinte dias sem aula por causa de
simples distração. Por falar nisso, é preciso concluir este palavreado.
Distraidamente, ultrapassei o número de linhas preestabalecido.
[Os alunos do período noturno da Escola Normal eram dispensados do uso
da farda, camisa branca e calça azul-marinho e blusinha branca e saia plissada.
O famoso terno marrom, na ocasião, tinha a calça mais clara que o paletó, que
era envergado somente quando fazia muito frio.]
Hamilton Carvalho
Gazeta de Goiás, nº 104,
4/7/1999)
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