quarta-feira, 12 de maio de 2010

O autor divaga sobre divagações e como se a vidinha pregressa dele interessasse ao leitor, que semana que vem será brindado com romântico texto


O distraído

Anh? O quê? Ah, sim: sou distraído. Muito. Esqueci até o que ia escrever agora.
Sou tão aéreo que dias atrás entrei numa dessas “estações” da Transurb e saí, quer dizer, entrei por um lado e saí pelo outro, como se estivesse desembarcando. Queimei preciosa passagem.
Sou milagre de sobrevivência no trânsito feito um jegue que havia na minha terra, o Pirela, que atravessava incólume rodovia altamente movimentada.
Esta vocação estuporada para nefelibata não me deu muita sorte com professores. Até a querida dona Maria, minha professora principal na Escola Anísio Teixeira, me chamava de sonso.
Sonso aqui não vai no sentido dado pelos dicionários. Queria significar, mesmo, parvo, desligado, bocó.
Eu tinha boas notas, mas ficava sonhando durante as aulas. Quando a boa Maria me fazia uma pergunta era obrigada, sempre, a repeti-la. Mas ela gostava muito de mim, ao contrário do professor Iolando, o pulha.
Ele surgiu mais tarde em minha vida. Isso quando meus pais, sei lá por que razão, resolveram matricular-me em escola particular. Iolando, o coisa ruim, era o dono dela.
Era maníaco por algo indefinível, sem regras estabelecidas, que ele chamava de disciplina.
Certa vez, indo para a escola, distraidamente esqueci-me pelo caminho. Parava aqui, parava acolá, olhava pra baixo, pra riba, pra não sei onde. O azul do céu, a nuvem, o passarinho; a lagartixa, a flor, o cadarço dos sapatos Vulcabrás.
De repente, ouvi o barulho da serra da serraria que ficava ao lado da escola. Minhas entranhas se comprimiram. Aquele som, familiaríssimo, só era ouvido depois de a aula ter começado.
Passei pelo portão, cheguei à porta da sala e timidamente pedi: “Dá licença, professor?”
Ele bradou: “Venha cá, seu moleque.”
Caso você não saiba, leitor, o filho de seu Miro informa: na minha terra moleque não era palavra para ser vomitada contra menino de boa família. Ofensa grave.
Mas não foi isso o que me levou a dar a resposta que dei quando o infeliz do Iolando perguntou: “Por que chegou atrasado?”
Acreditei estar sendo sincero quando disse: “Porque quis.”
O homem virou fera. Pegou de palmatória enorme, cheia de furos, e me fez estender as mãos. Depois do flagelo, ordenou que eu ficasse virado contra um quadro-negro. Passei todo o período de aula ali, uma manhã inteira sem direito a merenda e recreio.
Não satisfeito, o fanático ainda me fez levar uma carta para meus pais na qual relatava o fato à maneira estúpida dele. O besta aqui, então com seus 9 ou 10 anos de idade, cumpriu direitinho a ingrata missão.
Era bom menino. Songamonga, sim, mas bem-comportado na escola (talvez mesmo por causa da sonsice). Não merecia, em minhas jornadas de estudante, encontrar novamente Iolando no meu caminho. Mas aconteceu.
O indesejado encontro deu-se anos mais tarde, numa escola pública, a melhor, chamada por todos de Escola Normal (ninguém dava bola para o nome “verdadeiro”).
Iolando andava desaparecido, diziam que estava nos Estados Unidos. Assim, quando na Escola Normal me transferi para o período noturno (por motivo que não vem ao caso) nem imaginava que ia dar de cara com o truculento professor, que passaria a dar aulas de inglês.
Havia voltado para o Brasil trazendo uma novidade: a pronúncia que ele afirmava ser a correta. Garden, portanto, era gárdini. Mas eu tinha a impressão de que o homem exagerava. O sotaque continuava baiano.
Não demorou muito para Iolando inventar moda. Anunciou que em tal dia os alunos deveriam dizer uma frase em inglês quando ele fizesse a pergunta pertinente, também em inglês.
No fatídico dia, o escolhido para começar a maratona fui eu. Fiquei espantado, surpreso. Pensei que estivesse bem escondido no fundão da sala.
Quando o professor militarmente ordenou (em inglês) que me levantasse, eu o fiz incontinenti. Fiquei quase em posição de sentido, a tremer dentro do terno marrom com que madrinha Mira me presenteara.
Mas meu olhar foi-se perdendo, passou para além da testa de Iolando e pousou no quadro-negro. O quadro-negro...
Ainda militarmente, o americanófilo (apesar da discriminação que sofrera como pipoqueiro no Harlem) exigiu: “Sentence, please.”
Eu me sentei. A sala estremeceu com a gargalhada geral. Somente o paranoico não riu. Achou que me fizera de desentendido para provocar, e proclamou a sentença: dez dias de suspensão.
Agora, sim, petulante, pedi vinte dias. Ele, pronta e magnanimamente, atendeu.
Vinte dias sem aula por causa de simples distração. Por falar nisso, é preciso concluir este palavreado. Distraidamente, ultrapassei o número de linhas preestabalecido.

[Os alunos do período noturno da Escola Normal eram dispensados do uso da farda, camisa branca e calça azul-marinho e blusinha branca e saia plissada. O famoso terno marrom, na ocasião, tinha a calça mais clara que o paletó, que era envergado somente quando fazia muito frio.]


Hamilton Carvalho
Gazeta de Goiás, nº 104, 4/7/1999)

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