O comedor de gato
Estava eu sentadão à porta da cozinha, canelas estendidas para a carícia do sol matinal. De repente senti outro tipo de carícia. Um dos três gatos me roçava as pernas.
Sim, três gatos. Lígia, a caçula,
chegou a casa, na véspera, trazendo o último dos mosqueteiros devidamente
embalado em caixa de papelão. Só espero que não me apareça com nenhum
D’Artagnan...
Agora, babá de gatos, desdobro-me em
lavar vasilhas e dar de beber e de comer para eles, em vez de curtir um
far-niente íntegro, ao sol da manhã.
Como ando em terrível crise de mau
humor, cruelmente fiquei a pensar em tio Jeso. Ele adorava gato
escaldado, ou melhor, escaldado de gato.
Tia Ziu separou os petrechos com que o
marido exercitava sua arte culinária. No caso, ela não confiava de jeito nenhum
em água e sabão.
O homem ficava indignado porque ninguém
da família queria degustar o nobre cozido, e ainda por cima havia aquele
injustificado nojo da panela. “Preconceito besta.”
Tio Jeso era uma figura. Por mais longe
que minha família morasse, de vez em quando ele aparecia de surpresa em nossa
casa, exalando o indefectível cheirinho de pinga.
Foi assim que nos visitou em
Ribeirão Preto. Uma festa para Maurício Guimbeiro. Não que o menino
se importasse propriamente com ele. É que as guimbas do tio eram, digamos
assim, generosas.
Maurício era coleguinha de folguedos.
(Meu deus, com expressões que tais, ainda vou acabar clássico da literatura
brasileira.)
Na verdade, o fumador de baganas era
uma espécie de rival. Contestava a minha liderança na rua.
Eu tinha uma maneira esquisita de
liderar. Certa vez – só para dar pequeno exemplo – arranquei, com um soco, um
dente do irmãozinho de Maurício.
Num jogo de futebol, cismei que o
garoto estava desobedecendo ao esquema tático elaborado pelo técnico do time,
que era, para variar, eu, o dono da bola.
Lembro-me claramente. O menino,
coitado, coberto de lama feita de suor e terra vermelha, arregalou os olhos
quando me viu marchar no rumo dele com os punhos armados.
Um soco e tanto. O sangue desceu pelo
queixo para engrossar a lama que o pequeno craque ganhara no corpo, no esforço
de acatar as determinações do Yustrich do São-Paulinho.
Para usar linguagem adequada a ato tão
nefando, evadi-me do local. Fui parar à beira de um córrego, e, sentado entre
troncos de árvore cortados que alguém ali depositara, passei muitas horas em
meditação forçada.
À medida que o tempo escurecia e
esfriava, a fome e o remorso tomavam de mim. Se fosse só pelo remorso, teria
ficado por lá, ao relento. Mas, não mais resistindo à fome, voltei devagarinho
para o aconchego do lar.
Sorrateiramente, acerquei-me dos fundos
da casa e saltei o muro. Com muito jeito, empurrei a porta da cozinha e, na
ponta dos pés, entrei.
Ali estava meu pai, a segurar com ambas
as mãos um corrião dobrado. “Venha cá, seu corno.” O corno foi.
Pois é, Maurício gostava de uma boa
guimba. E as do tio eram as melhores, já que os cigarros eram fumados somente
até a metade.
Quando o parente jogava fora uma ponta,
eu, disfarçando que era uma beleza, ia lá e a catava. Levava para Maurício,
apesar de ele contestar minha suposta liderança.
Aliás, para resolver a questão de quem
mandava no pedaço, a turma organizou um torneio de arco e flecha. Tiro ao alvo.
O vencedor seria o “chefe”. Uma coisa assim meio que democrática.
Adivinhou, leitor entediado, quem foi o
ganhador da competição? Maurício Guimbeiro. Só que não levou. Eu, garbosamente,
cingi-me com o simbólico cocar. Na marra, é claro.
O menino ficou de mal de mim. Aos
poucos, porém, voltamos a circular pelo bairro à cata de guimbas.
Sentadão à porta da cozinha,
preguiçosamente com as pernas estendidas para o sol, fiquei a meditar.
Tio Jeso era realmente uma grande
figura. Tinha, no entanto, aquela mania de comer gato, animal praticamente
extinto nas redondezas de onde ele morava.
Relutando em me levantar para trocar a
água dos gatos e abastecê-los de ração, enviesei um olhar para a fêmea quando
ela, a miar irritantemente, passou por mim. A danada até que estava bem
gordinha...
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 102,
20/6/1999)
Minha mãe e minha vó perpetua sempre me contaram diversas vezes sobre essas histórias do meu avô comer gato, mas sempre preferi acreditar que isso fosse somente uma lenda da família. Não dá pra acreditar...
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirO curioso é que na família muitos criam gatos... Bem, mesmo criando gatos, eu ainda não experimentei da iguaria. Também me custa imaginar isso... Credo!
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