quarta-feira, 19 de maio de 2010

Um mundo de talvezes. “Chega o dia em que tudo fica por conta da ilusão”



Pós-escrito de amor

Meu espírito anda (o espírito que anda...) mais confuso que data de validade em embalagens de alimento. Talvez seja por isso que uma pichação no muro da garagem da Transurb não me sai da cabeça.
Não tem qualquer relevância, não protesta, não exige melhor transporte coletivo, não condena a política do governo de privatização. Nada de interesse do “público em geral”, nada de go home, viva Cuba, João Amazonas vem aí. Nada do que era tão comum há pouco tempo.
O escrito, no entanto, ressoou no espírito obumbrado de um homem que se acha sob o signo do desdém, do desprezo tacanho.
Não trouxe luz, muito menos plantou jardim de rosas, como a frase que José Saramago leu na empena do prédio ao lado de uma ruína. Mas talvez tenha suscitado um desejo.
A frase que entrou pelos olhos do escritor português estava em maiúsculas vermelhas e era declaração ou comunicado de amor: “A Lena ama o Rui”.
Sim, poético leitor, tinha tudo para abrir na alma, feito leque, um jardim de rosas.
O que está escrito no muro da Transurb não. São pesadas letras negras que expressam despeito, ou orgulho, ou indiferença. Falsa indiferença, já que ninguém iria sujar as mãos para comunicar ausência de sentimento.
Em mim talvez tenha suscitado um desejo: “A paixão, como veio, vai embora”.
O nome da pessoa a quem se destina a mensagem está borrado, e não há nome de autor. Mas há uma Lena, sim, há um Rui colados a tinta no muro da garagem.
Só que, como é da vida e dos seres humanos, a paixão foi maculada, o amor começou a desbotar, e o Rui e a Lena já não são os mesmos. Aquilo, na parede da Transurb, é quase um pós-escrito de amor.
A Lena e o Rui de Saramago se merecem. Não há despeito, não há mágoa naquele singelo registro. No entanto, no que anuncia ou ameaça o fim de uma paixão há algo de brutal, de taxativo: “Você não me merece.”
Triste constatação, como a que fez um amigo, a encharcar-se em cerveja de R$ 1. “A mulher veio com um pretexto tão besta...”
Mas – filosofava o amigo, alteando a voz para se fazer ouvir acima da canção interpretada por Roberto Carlos – pretexto é pretexto. “Quem precisa disso para justificar o que quer, ou até o que não quer, não merece o outro.”
Às vezes acontece comigo essa de aturar bêbado apaixonado. Com uma atenção torturada, fico no castigo até não mais resistir. Então é hora de procurar pretexto para cair fora.
Talvez eu não mereça o amigo. Acredito, todavia, que todos se merecem até certo ponto. Entre merecer e não merecer, o limite é indefinido, vago, e simplesmente calha um dia de surgir, nítida, a linha que o traça.
Entre amantes, apenas um deles descobre tal desmerecimento: o que é desprezado e, tal o meu amigo, se acredita muito bom.
Naquela noite de confidências, em boteco movimentado, o amigo começou a fazer coro com a voz do alto-falante: ... você não serve pra mim.
Os bugalhos, molhados e fixos em minha direção, me assustaram. Tive a sensação de que todos no bar olhavam para mim, supondo (meus deus) que o infeliz estivesse me dedicando as palavras daquela musiquinha.
Você não serve pra mim. Com pretexto ou sem pretexto, era preciso ficar fora do alcance dos perdigotos confeitados de paixão.
Levantei, acenei como se testasse a visão do rapaz e me joguei na noite da rua. Ao dobrar a esquina, ainda ouvia a voz penosa e encharcada sobrepondo-se à que saía da caixa de som. Vou procurar outro alguém...
Pois é, leitor. A paixão veio, teve a sua história e os seus momentos. Veio branda, sem sustos e rompantes, e logo encheu o espírito de certeza e de rumo.
Chega o dia em que tudo fica por conta da ilusão. As coisas perdem o sentido, os pés adejam alguns palmos acima do chão e a mente se ocupa tão somente com por quês sem eco, sem resposta.
“A paixão vai embora como veio, você me desprezou e descobri que você não me merece.”
Se o amável leitor não entende o motivo desta crônica, a última talvez, não se torture.
Ela nasce de espírito náufrago que se agarra a palavras desenhadas num muro de garagem. Um pós-escrito de amor, uma coisa à toa, um consolo.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 105, 11/7/1999)

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