Pós-escrito de amor
Meu espírito anda (o espírito que anda...) mais confuso que data de validade em embalagens de alimento. Talvez seja por isso que uma pichação no muro da garagem da Transurb não me sai da cabeça.
Não tem qualquer
relevância, não protesta, não exige melhor transporte coletivo, não condena a
política do governo de privatização. Nada de interesse do “público em geral”,
nada de go home, viva Cuba, João
Amazonas vem aí. Nada do que era tão comum há pouco tempo.
O escrito, no
entanto, ressoou no espírito obumbrado de um homem que se acha sob o signo do
desdém, do desprezo tacanho.
Não trouxe luz, muito
menos plantou jardim de rosas, como a frase que José Saramago leu na empena do
prédio ao lado de uma ruína. Mas talvez tenha suscitado um desejo.
A frase que entrou
pelos olhos do escritor português estava em maiúsculas vermelhas e era
declaração ou comunicado de amor: “A Lena ama o Rui”.
Sim, poético leitor,
tinha tudo para abrir na alma, feito leque, um jardim de rosas.
O que está escrito no
muro da Transurb não. São pesadas letras negras que expressam despeito, ou
orgulho, ou indiferença. Falsa indiferença, já que ninguém iria sujar as mãos
para comunicar ausência de sentimento.
Em mim talvez tenha
suscitado um desejo: “A paixão, como veio, vai embora”.
O nome da pessoa a
quem se destina a mensagem está borrado, e não há nome de autor. Mas há uma
Lena, sim, há um Rui colados a tinta no muro da garagem.
Só que, como é da
vida e dos seres humanos, a paixão foi maculada, o amor começou a desbotar, e o
Rui e a Lena já não são os mesmos. Aquilo, na parede da Transurb, é quase um
pós-escrito de amor.
A Lena e o Rui de
Saramago se merecem. Não há despeito, não há mágoa naquele singelo registro. No
entanto, no que anuncia ou ameaça o fim de uma paixão há algo de brutal, de
taxativo: “Você não me merece.”
Triste constatação,
como a que fez um amigo, a encharcar-se em cerveja de R$ 1. “A mulher veio com
um pretexto tão besta...”
Mas – filosofava o
amigo, alteando a voz para se fazer ouvir acima da canção interpretada por
Roberto Carlos – pretexto é pretexto. “Quem precisa disso para justificar o que
quer, ou até o que não quer, não merece o outro.”
Às vezes acontece
comigo essa de aturar bêbado apaixonado. Com uma atenção torturada, fico no
castigo até não mais resistir. Então é hora de procurar pretexto para cair
fora.
Talvez eu não mereça
o amigo. Acredito, todavia, que todos se merecem até certo ponto. Entre merecer
e não merecer, o limite é indefinido, vago, e simplesmente calha um dia de
surgir, nítida, a linha que o traça.
Entre amantes, apenas
um deles descobre tal desmerecimento: o que é desprezado e, tal o meu amigo, se
acredita muito bom.
Naquela noite de
confidências, em boteco movimentado, o amigo começou a fazer coro com a voz do
alto-falante: ... você não serve pra mim.
Os bugalhos, molhados
e fixos em minha direção, me assustaram. Tive a sensação de que todos no bar
olhavam para mim, supondo (meus deus) que o infeliz estivesse me dedicando as
palavras daquela musiquinha.
Você não serve pra
mim. Com pretexto ou sem pretexto, era preciso ficar fora do alcance dos
perdigotos confeitados de paixão.
Levantei, acenei
como se testasse a visão do rapaz e me joguei na noite da rua. Ao dobrar a
esquina, ainda ouvia a voz penosa e encharcada sobrepondo-se à que saía da
caixa de som. Vou procurar outro alguém...
Pois é, leitor. A
paixão veio, teve a sua história e os seus momentos. Veio branda, sem sustos e
rompantes, e logo encheu o espírito de certeza e de rumo.
Chega o dia em que
tudo fica por conta da ilusão. As coisas perdem o sentido, os pés adejam alguns
palmos acima do chão e a mente se ocupa tão somente com por quês sem eco, sem
resposta.
“A paixão vai embora
como veio, você me desprezou e descobri que você não me merece.”
Se o amável leitor
não entende o motivo desta crônica, a última talvez, não se torture.
Ela nasce de espírito
náufrago que se agarra a palavras desenhadas num muro de garagem. Um
pós-escrito de amor, uma coisa à toa, um consolo.
Hamilton Carvalho
Acho que vou tomar umas...
ResponderExcluirKKKKKKKKKKK!
ResponderExcluirPodes crer, Cassiano: tomei as minhas...