A vendedora de sorvete
Ao abrigo do vento curvilíneo que gelava o Terminal Padre Pelágio, a
vendedora de sorvete tinha diante dos olhos O Guarani, de Zé de
Alencar.
Lembrei-me de lembrar: ao chegar à
Redação, telefonar para a primogênita. A amorável filha deste fecundo cronista
prepara-se para o vestibular, e era preciso saber a quantas andam as leituras
delazinha.
“Pai, você devia me trazer mais
livros”, reivindicou Elza, depois que lhe fizera a recomendação de ler, ao
mesmo tempo, mais de um, para poder vencer a chatice de certos textos impostos
para o concurso.
Se uma “profundidade” começa a
aborrecer, deve-se passar para outra “profundidade”. O tédio de uma anula – ou
pelo menos arrefece – o tédio de outra.
Minhas filhas são frequentadoras
assíduas destas minhas leviandades (embora há quem diga que tal tipo de leitura
não é recomendável para adolescentes) e não compreendem por que motivo comissão
de vestibular tem tendência para o chato.
No entanto, elas não sabem, por causa
da falta de preparo e da bitola imposta pelos cursos, que não se podem comparar
coisas menores, como as que registro aqui, com a boa literatura, e boa
literatura não é necessariamente coisa chata, ou não devia ser chata de jeito
nenhum.
É torturante, para o jovem carente de
informações que as escolas não fornecem, ter de encarar, na marra, uma montanha
de livros escritos em épocas tão distantes do mundo em que se vive.
Ou então ser forçado a ler calhamaços
cheios de digressões sobre coisas de que os garotões já estão cansados de
saber.
Filosofias, conceitos, preconceitos,
canapés e canapês. A molecada “fica” nos cantinhos escuros (ou mesmo claros),
enquanto a senhora de Alencar inadvertidamente deixa aparecer a pontinha do
pé... calçado. O máximo de tesão.
João Ubaldo Ribeiro acaba de lançar
livro capaz de fazer a alcova de Lucíola, a prostituta, ficar mais entediante
que as praças do Projeto Cura, em Goiânia.
Soube de gente que tomou horror de
Camões exatamente porque havia imposição para exame de admissão ou vestibular. [O
aterrorizante exame de admissão era uma espécie de vestibular para passagem do
primário ao ginasial; tudo isso teria mudado...] Não se deu ou não se
dá a base necessária para que o estudante pudesse ou possa “fruir” o texto do
portuga.
Em vez de abrir caminho para o jovem
chegar ao grande poeta, o “mestre” faz é fechá-lo, traumatizando um moleque que
não consegue botar na ordem direta um verso de Os Lusíadas.
Mas Camões vale sempre. Seria bom se as
escolas colocassem a meninada em contato com a lírica do Caolho. Depois com Os
Lusíadas, juntamente com informações históricas e gramaticais. (Era
preciso, no entanto, que professores vencessem, antes, o próprio
analfabetismo.)
Agora, O Uraguai... Não sei
o que deu nos responsáveis pelo vestibular da Universidade Católica de Goiás
para indicar essa porcaria de Basílio da Gama que não serve nem como “documento
histórico”.
Já a Universidade Federal, depois de
sucessivas besteiras – como a de “indicar” brochura broxante do solecista
contumaz Edival Lourenço –, acerta em cheio, embora atrasadamente, com o livro
de poemas de Manuel Bueno Brito Candeia de Canto, belíssimo,
redondo a partir do título.
Minha bela Elza chegou a pensar em
fazer jornalismo. Não digo nada. Não procuro influenciar. Afinal, currículos
por aqui são todos mal-ajambrados.
Para você sair sabendo do curso de
jornalismo da UFG, por exemplo, tem de entrar sabendo. Ou se dedicar para
aprender, na prática, os rudimentos do ofício.
O curso, ocupado com filosofices, não
dá importância sequer à redação – ao ato de redigir, à produção do texto. (São
de matar aqueles “trabalhos em grupo”, feitos, geralmente, por um só.) Por
isso, o que mais se vê é gente com minhocas filosóficas na cabeça escrevendo troncha
e porcamente. Uma meleca só.
(Ad
hoc. Quando trabalhava em outro jornal, li coisas assim: “O governador
visitou in loco o local onde se localiza a favela.” Deixei o repórter – que já
tinha alguns quilômetros em jornal, e devidamente diplomado – na maior
indignação quando corrigi: “O governador visitou a favela.” Disse que eu mexera
no “estilo” dele.)
Meu deus, que logorreia. Tudo isso por
culpa da vendedora de sorvete, a matar o tempo lendo O Guarani, ao
abrigo do vento gelado que levava para longe habituais fregueses.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 97,
16/5/1999)Hamilton Carvalho
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