quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

No jornal, o texto vem com ilustração de Salvio Juliano. Está lá, num saco de pipoca: “Breakfast at Tiffany’s”


Além das aparências

Audrey Hepburn.
Agorinha, chegando ao jornal, parei em um quiosque para comprar cigarro. A mocinha que me atendeu... Audrey Hepburn.
Não, leitor velho cinéfilo, não, ela não se parece com a atriz. É que aquele queixinho, a linha da mandíbula, aquele arzinho meio levantado e não sei o que lá mais me lembraram garotinha do meu afeto.
Ela morava no Edifício Rio Negro, em Anápolis, e eu a tinha parecida com a atriz. Era mesmo. Façamos o gosto do meu coração apaixonado.
Não sou de tietar seu ninguém, mas a Hepburn tinha um tipinho assim meio que me agradava, apesar da exiguidade de carnes. Aliás, com relação a mulher não sou muito exigente no que diz respeito à aparência.
Por ser um sujeito de rigorosa formação marxista, sempre vou além das aparências.
O “rigorosa” aqui vai a propósito, pois há camaradinha que não se peja de refugar mulher por causa disso ou daquilo, embora tente ostentar toda a dialética do mundo.
É o caso de J. e C., meninos trêfegos que propagandeavam trepadas supostamente invejáveis. (O “propagandeavam” aqui vai a propósito, já que os “meninos” decaíram.)
Eles, depois que se amarraram (ou foram amarrados) em uma só mulher (cada qual e sua respectiva), vieram para o meu lado com papo estranhamente monogâmico.
“Mulher, se não for melhor que a minha, eu não como”, faziam coro lá em Brasília, a matar o tempo durante importante encontro político.
Coerente, não vou entrar no mérito do “melhor”, que não provei, nem da aparência das zinhas deles, que não sou esteta nem ligo para idade ou acabamento.
Depois da proclamação dos ex-garanhões do pedaço, esperei, e veio, o inevitável: menção do nome de determinada mulher.
“Fulana eu não como nem morto”, dizia um. “Nem eu”, ecoava o outro. É claro que o discretão aqui não se pronunciou a respeito, mas gargalhou por dentro.
Mulher boa de cama estava ali, a fulana. Na minha avaliação até aquele momento, insuperável. Na minha avaliação até aquele momento, que não sou de dormir sobre os louros. Nem sobre os morenos, diga-se de passagem. [Houve lapso de redação, e hoje o autor faz questão de frisar que com macho não tem em cima, nem embaixo, nem de ladinho.]
A Hepburn de Anápolis, eu dizia, foi um caso patológico de paixão platônica. Sim, leitor, humildemente confesso e envergonhadamente admito: paixão platônica.
Eu a via todo sábado, à entrada do cinema próximo da casa dela, no mesmo horário, para assistir à primeira sessãozinha da noite.
Como sempre fui refém de minhas paixões – e só delas –, todo sábado, à mesma hora, estava à porta do cinema, fingindo olhar cartaz.
Na verdade, com Audrey ou sem Audrey, eu ia ao cinema todo santo dia. Dinheiro não me faltava, porque meu pai, preocupado com a minha sexualidade (sem motivo, esclareço), me dava grana para torrar na zona.
Paixão platônica... Era, mesmo, uma paixão gélida, meus circuitos tesãorais não se ligavam. Era só aquilo de ficar agarrando poesia para atravessar o marasmo e descobrir o meu continente.
Agora o leitor maldoso já vai insinuar que meu pai tinha motivo de preocupação. Ora, o leitor não sabe que por esse tempo havia também Maria O., tórrida, bela, do tamanhozinho que eu calçava.
Certa vez, em passeio a cavalo, Maria O., com seus belos e fartos atributos... Não, ela não era nenhuma Hepburn.
Deixemos para falar de O. em outra ocasião, não é? Dá-se que as minhas escassas 60 linhas chegam ao fim.
Amanhã, ao vir de casa, passarei no quiosque para comprar cigarro. Minhas filhas que me perdoem: não vou deixar de fumar tão cedo.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 89, 21/3/1999)

Sem acesso ao arquivo digital do falecido jornal, Hamiltão se vê às voltas com velhos exemplares. Eis mais um recorte


No meio da folia
            
Antes que coleguinha sádico me venha perguntar como foi meu carnaval, vou desconcertá-lo: caí na folia. Como de paraquedas. Na verdade, não fui atrás do carnaval. Foi ele que veio até mim. Ou, digamos, nos encontramos por acaso. Eu me vi no meio do carnaval, ainda que na periferia.
Nem me lembrava dessa festa pagã. Só pensava que não deveria pensar em nada. Saí à procura de um boteco mixuruca, que não tivesse muito movimento, para lavar a caveira e dar sumiço em tenebrosas teias de aranha cerebrais.
Havia muitas mesas na calçada, mas apenas uma estava ocupada. Com três mulheres mais deprimentes que sala de espera de posto de saúde e um sujeito mais chato – se possível – que líder de excursão, daqueles que ficam cantando “Índia teus cabelos, índia teus cabelos, índia teus cabelos” a viagem inteira.
Por incrível que pareça, nessa noite eu não estava com muito espírito de caçador. Estava mesmo era blasé, enjoado, tanto que nem liguei em ficar exposto naquela cadeira à beira de avenida de subúrbio, engolindo fuligem e ouvindo ronco de moto velha, eu, que gosto de cantos escusos, meia-luz, música em surdina e, principalmente, cheiro e gosto de mulher boa.
Nem me ocorria que era antevéspera de carnaval. De repente, uma caminhonete para e o motorista começa a descarregar aparelhos de som.
Com inacreditável lerdeza de raciocínio fui-me desentorpecendo até ficar zonzo com a rapidez com que as mesas foram tomadas. Uma barulheira infernal começou e arrebatadíssimas garotas pularam para a pista improvisada. Continuei imóvel, sem vontade até mesmo de ir embora. Afinal, sou bom voyeur, e ali havia farto material para ser apreciado.
Imagine, leitor desmotivado, no meio daquela explosiva, sensual e arrebatadora alegria, esta sóbria e pálida figura, vestida de preto, barba por fazer, faltando apenas óculos escuros para que a indumentária de funeral ficasse completa...
Sentado ali, cercado de shortinhos meia-bunda, seios trepidantes, odor de mulher molhadinha, mas molhadinha mesmo, de suor, sentado ali deixei o tempo correr. Mas devia ser bem estranho aquele sujeito magro, sisudo, imóvel, bebendo Bavária e fumando Bill (marca de cigarro).
Repentinamente, o som foi interrompido. É que, lá de baixo, na avenida, vinha – acredite – uma escola de samba. Escola de samba com carro alegórico, cabrochas, tudo, até uma esfuziante imitação de Joãozinho Trinta. [O autor acha que “Joãosinho”, com esse, é muita veadagem.]
Em cima de estrado colocado numa caminhonete da década de 60 ou 70 três garotas acenavam gloriosamente para um público deslumbrado. Nesse momento me levantei. Afinal, era preciso reverenciar aqueles bumbuns que faziam sumir a roupa que vestiam.
Em seguida, mais friamente, passei a analisar os frenéticos bumbuns. Um, macérrimo, era jovem e rebolava duro. Outro, já meio para o idoso, era caidaço e rebolava mole. Mas se comportava com muito brio e, como é de preceito, frequentemente se jogava na direção do público. E todas as vezes que isso ocorria eu tinha a impressão de que enorme buldogue me olhava.
Ah, já o terceiro bumbum, este sim. Tem 25 anos de idade e sua dona fuma com moderação e bebe um pouco para o demais, e fala, fala muito, que é para explorar a voz rouquinha, sensual.
Como é que sei disso tudo? Ora, leitor intrometido, o carnaval apenas começava.
A escola se foi avenida afora e o boteco voltou a funcionar a todo o vapor. Com o sangue mais ativo nas veias e nos corpos cavernosos, fui retomando os ímpetos de caçador compulsivo. Passei a observar as cercanias.
As três feias da mesa do chato não eram do tamanho que eu calço. Sem falar que o chato, alternadamente (já que não podia ser simultaneamente), as beijava o tempo todo. E aí, meu irmão, não sou de bater soro nem em saliva.
Como nada neste mundo está perdido, comecei a ser retribuído com alguns olhares. Elas, que dizem que só gostam de “filezinhos”, na prática não sabem dispensar um maduro, porém elegante, cavalheiro solitário.
É claro que eu, que já provoquei muita discórdia entre casais e procuro me regenerar, estava com muito cuidado para não ferir os sentimentos de algum namorado incompetente. Mesmo assim, estava quase sucumbindo ao charme de uma dama acompanhada. O casal acabou brigando. Enquanto ela me lançava olhares, ele me fitava com aquela cara de ejaculação precoce.
Depois o indivíduo passou a tentar a reconciliação, mas não conseguia sequer segurar a mãozinha da amada. Foi então que apareceu, toda saracoteante, a bicha mais tresloucada do pedaço.
“Ela” me conhecia apenas de vista, mas veio com tudo para o meu lado. E me cumprimentou com tanta efusão, como se me conhecesse de intimidades que só reservo para as amadas, que me deixou desarmado. Quando se afastou, vi que o casal, à mesa próxima, bem abraçadinho, olhava para mim rindo sem nenhum pudor.
A garota, acreditando que perdia tempo com suposto enrustido, se reconciliou com o namorado, favas contadas. Disfarcei um pouco e logo me mandei dali. Para não frustrar de todo a minha noite, subi a avenida à procura da dispersão da escola de samba. Mas o que aconteceu depois é outra história, e essa eu não conto.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 48, 1º/3/1998)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Hamiltão numa de Indiana Jones... Não, não: de Davy Crockett. Ou melhor: de Daniel Boone. Ah, deixa pra lá. Um safadinho mesmo


Um nefelibata


A paixão pela menina me pegou pela planta dos pés e me levou às alturas.
O leitor que visitou este tiquinho de página na semana passada sabe de quem falo. Da vizinhazinha apelidada de Imbu Cabeludo.
Não estava fácil chegar perto dela, eu sempre cercado de irmãs hostis àquela beleza rústica, de pele pêssega, acetinada, e ela sempre ao lado de Boi-Bufa, o peidão.
O mano dela, troncudo, ganhou o apelido porque não tinha mesmo compostura. O verbo bufar, na minha terra, conjuga-se como peidar. A palavra “boi”, insinuando búfalo, era só deboche.
Quando se aproximava da turma, vinha junto com o desgraçado a fetidez de muita batata-doce já digerida mas retida nas tripas.
Por aquela época, meu esporte preferido era caçar calango. Depois que Imbuzinha se instalou com a família na casa da direita, transferi a paixão – da carnificina de réptil para ela.
A sanha era outra. Queria transformar-me em anfibiocida: matador de perereca.
Por falar em réptil, lembro-me de que foi por essa época que tive um contato direto com cobra. Ah, não, peraí...
O leitor já quer cair para o lado da malícia. Reafirmo o que disse na semana passada: mesmo toquinho de gente, eu já era macho, e convicto.
Certa noite, enquanto Imbuzinha e turma arquitetavam nova brincadeira, estirei-me preguiçosamente na lisa e morna calçada, camisa desabotoada.
Ali, à noite, sentindo as sobras do calor do sol da tarde, deixei-me modornar, como só a gente de minha terra sabe fazer.
Algo frio. Um abraço frio. Um abraço sem ninguém com ele. Sem braços. Sem pernas. Comprido, envolvendo-me o peito por dentro da camisa.
O alarme, alguém gritou. “Uma cobra, uma cobra nele.” O moleque apontava para mim.
Quando consegui associar o grito com a coisa fria em torno de mim, pulei. A coisa caiu, verde, sessenta centímetros.
Um vizinho, adulto, matou a cobra. Depois, pesaroso, sacudiu a cabeça: “Tadinha, nem venenosa era...”
Eu não tinha remorso quando chacinava calangos no matinho que ficava nas redondezas do necrotério, embora Jeroflê vivesse correndo atrás da gente.
Ah, Jeroflê... Era quem cuidava (meu deus) do necrotério. Talvez algum dia eu fale dele, hoje não.
Cacemos, pois, perereca.
Excitados depois de ouvir historinhas de terror, noitinha dessas em que há lua solta no céu e brisa cálida trazendo cheiro de mato e de pecado, fomos brincar de tonga, isto é, de esconde-esconde.
Os meninos costumavam esconder-se mais longe, no mato ou em algum soturno canto de muro. As meninas ficavam em cantinhos mais próximos da “sede” da brincadeira.
Em vez de continuar correndo e cair no mundo como os outros babacas, parei, voltei todo pontinha dos pés e dei de seguir a Imbu Cabeludo.
Ela entrou em corredor sem saída num lado da construção de Vanderval. Eu também. Ela sentiu bem a “coincidência” e me ordenou que ficasse quieto.
Aquele cheiro de cimento fresco, elazinha perto de mim, euzão rasgando o cós do calção...
Meu pai tinha uma garagem para caminhão em frente da propriedade de Vanderval. Eu estava com a chave dela, pois passara o fim de tarde a mexer em um rifle que ficava guardado ali. [Um Winchester de 15 tiros.]
Eu, sôfrego, roçava os lábios na penugem do rosto de Imbuzinha, passava os dedos na rechonchudinha lá embaixo, lanhava-me nos tijolos nus da parede...
Meu deusim do céu, a danadinha estava sem calçola.
O sedutor aqui gemia, implorava. “Me dá. Me dá, hein, me dá...” Ela parada, sem emitir nenhum som, ali, esperando, suponho – hoje, tarde demais –, ação mais efetiva, aguda, penetrante.
Mas o pidão só pedia, passando a mão: “Me dá, hein, me dá...”
O babaca que estava de tonga nos achou. Caí das nuvens e perdi a chave da garagem. E ainda levei surra, dia seguinte, quando meu pai precisou do caminhão.
Não apanhei com fleuma. Fiz escândalo. A vizinhança toda ouviu os berros que soltei debaixo da taca, feito menina histérica. (Feministas, pelo amor de deus...)
Envergonhado, passei a evitar a Imbuzinha. Se saía de casa era para me meter no mato atrás de calango.
Pois é, leitor solidário. Caí das nuvens, onde me colocara a paixão que me pegou pela planta dos pés.
Mas, como refletiria personagem de Machado de Assis, antes cair das nuvens que de um terceiro andar.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 88, 14/3/1999)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Não perde grande coisa quem não leu, antes deste, o texto que fica para trás, mas...


O gosto pela fruta

Ah, aquela vidinha besta de caçar calango tinha que acabar. Badoque pendurado no pescoço, bornal a tiracolo cheio de pedrinhas, sanha assassina no coração.
Para que matar os bichinhos? Para exercitar a pontaria e tirar o couro deles com banda de gilete. Para que tirar o couro? Para nada. Se ao menos fosse para contrabandear pele para país desenvolvido...
Algo, então, me fez mudar.
A paixão, ah, a paixão pela fêmea. Ela me pegou pela planta dos pés e me elevou às alturas. O furioso marine caçador de calango de qualquer cor de repente se transformou. Largou daquele gostinho besta de estripar. Passou a só querer trepar.
Mas só querer não levava até lá. Para isso era preciso mudar de vida.
Foi quando Célia... Não, não tenho certeza se o nome dela era Célia. Logo que ela se mudou para a casa da direita, minhas irmãs a apelidaram de Imbu Cabeludo.
E é só por esse nome e pelas conotações muito especiais que ele tinha para mim que me lembro dela. É claro que minhas irmãs pejoravam. Eu sublimava.
A menina tinha o rosto bem-feito ornado com leve penugem. O pesado termo cabeludo vinha daí.
Mas o umbu, a fruta propriamente dita, o umbu com a penugenzinha, à semelhança de pêssego, era raro e era considerado o melhor. A gente comprava vários litros para, entre dezenas, aparecer apenas um.
Mais doce, mais suculento que todos os outros. Podia ser somente impressão, mas o umbu “cabeludo” era disputado lá em casa. A meninada era criativa e adorava fabricar lendas.
As manas, no entanto, pejoravam. Eu sublimava.
Imbu tinha um irmão que ganhou o apelidaço de Boi-Bufa. Você, leitor alheio a regionalismos, pode pensar que não há intenção pejorativa em chamar alguém de búfalo, animal que, apesar de vigoroso, não se deu muito bem com gente de país desenvolvido.
Acontece que bufa, na minha terra, é sinônimo de peido. [A rigor, flato silencioso.]
Sair com macho, a devassar moita atrás de réptil, deixou de ser programa para mim com a chegada da nova vizinhazinha. Passei a participar de jogos e brincadeiras que antes considerava coisas de fresco.
À noitinha, esquentando bunda no passeio que ainda retinha o calor do sol, a meninada brincava brincadeiras de anel, de volta, de adivinhação, de...
Nas brincadeiras de calçada, eu fazia o aquecimento sentimental. Jogava disfarçadamente meu charme (deus do céu), triscava na mãozinha de Imbu na hora de passar o anel, fazia-me ser visto e sentido.
Isso porque, depois das historinhas de terror, a gente ia brincar de tonga, já tardão da noite, lá pelas 8 horas. Ou então de cobra-cega (não me vá o babaca de um revisor, aureliomaníaco, corrigir para cabra-cega).
Mas brincar de tonga era o melhor e o mais adequado para as minhas intenções, por causa das moitas, dos escurinhos...
O leitor civilizado deve estar meio perdido com a minha terminologia. Brincar de tonga, pois, é brincar de esconde-esconde. Simples.
Imbuzinha, apesar de nova na Rua do Campo, era bem-integrada à turma e participava de todas as brincadeiras noturnas. Eu a curtia adoidado, embora meu primeiro grande amor viesse depois.
Foi cerca de dois anos mais tarde, em outra rua, mas ainda ali perto do Hospital Regional. Maria Purcina... Ora, que besteira: o fiel leitor já foi apresentado a Lia. [Não seria “Lia já foi apresentada ao fiel leitor”?] Voltemos à Rua do Campo.
Eu curtia a Imbu Cabeludo com este meu conhecido ímpeto. Durante o dia, o garotão trepava em um pessegueiro mirrado, galhos precários, para observá-la do outro lado do muro. A árvore, coitada, tremia todinha.
O bom da coisa, mesmo, era à noite. Numa daquelas noites, cálida, a gente brincava de tonga e...
Bem. Que o leitor não fique sem mim na próxima semana, quando poderá vir a saber por que voltei a ser caçador de calango.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 87, 7/3/1999)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Como se dizia nos velhos bons tempos, Hamiltão era sujeitinho “inserido no contexto”...


Golpinho de mestre

O mural dos escândalos dá conta de que gente importante andou enchendo porta-bagagem [então meias e cuecas eram impensáveis... e incompatíveis com o volume] com R$ 5 milhões em notas miúdas. Isso é que é golpe. Eu, já pelo meio-dia, ainda não fui capaz de aplicar nem conto do vigário em barrigudinho de creche.
Vítima, sim, fui muitas vezes, principalmente no Natal, quando trocava brinquedo Estrela, durinho de novo, por qualquer rodinha de cabaça enfiada num barbante. Ou por badoque cuja borracha já ameaçava romper-se.
Às vezes dava, pau a pau, figurinha rara em troca de uma mais que repetida. À porta do cinema, aos domingos, trocava revistas praticamente novas por outras se desmanchando de velhas. Pau a pau.
O pior é que eu sabia que era enganado. Só que não resistia à lábia de garoto mais pobre, escolado na dura luta pela sobrevivência. Pensando melhor, era uma forma meio babaca e dissimulada de fazer caridade.
A esta altura o leitor, sempre malicioso, já deve visualizar neguinho me passando a conversa atrás de pé de mamona no intuito de aplicar o golpe em outro tipo de troca-troca, o famigerado.
Aqui não, ó meu. Aqui não.
Mesmo porque havia a Imbu Cabeludo, vizinhazinha da direita que não me deixou viver a tal de indefinição sexual que os freudianos inventaram. Sem nem ter tamanho de gente, eu já era macho.
Quando ela batia no meu campo visual, pauzinho ficava duro à toa, à toa... Bem, à toa é modo de dizer, pois a garotinha merecia todas as honras marciais.
A Imbu Cabeludo era irmã do Boi-Bufa, menino atentado com o qual de vez em quando eu – mesmo interessado na maninha dele – trocava uns trompaços.
Na verdade, entre a molecada do meu tempo não havia frescurite. Cada um de nós era um território inviolável e violento. A gente levava as fronteiras e os limites até onde bem entendesse e sustentasse. E o pau comia.
A Imbuzinha não ia gostar de mim se me agarrasse a conceitos etéreos tais como ética, coisa que só do ponto de vista da luta de classes se pode entender.
Claro, leitor impaciente, é claro que não vamos discutir sobre a legitimidade ou não legitimidade dos saques no Nordeste nem sobre a conveniência da denúncia ou do silêncio acerca de dinheiro público supostamente desviado para financiar campanha eleitoral.
Continuemos, pois, com a minha querida Imbu, que não requer ação na Justiça nem embromação da opinião pública.
Para ela, como para todos nós, descer o cacete em amiguinho era algo sociologicamente aceitável e socialmente justo, ainda que fosse no irmão mais querido. Havia aquilo de brigar e ficar “de mal” e depois ficar ou não “de bem”.
A menina ganhou o apelido porque... Ora, não interessa, pô. Talvez – talvez – conte em próxima crônica. É só ter saco.
Pois é, eu dizia...
Esse negócio de aceitar levar desvantagem em tudo é estranho. Quem sabe faz parte do meu jeito trash de ser.
Em certo Natal, ganhei carrinho de madeira muito do seu bacana, vermelho esmaecido e azul pesadão. Fui brincar com ele na barroca do outro lado da rua, caminho de furiosas enxurradas.
Ali, na areia fininha, construí estradas e pontes, fiz ladeiras e desvios, e brinquei como se me preparasse para ser governador.
Depois passei a transportar, no bravo carrinho vermelho esmaecido e azul pesadão, mercadoria contrabandeada, como se quisesse seguir o exemplo dos amigos de meu pai.
Mas ao grito da hora do banho, já enfarado da brincadeira, corri para casa sem levar o carro, que ficou esquecido na barroca até o dia seguinte.
De manhã, depois de ter enchido o bucho de pão e aipim com manteiga, procurei o carrinho pela casa toda, até lembrar onde o deixara.
Lá estava ele, no buraco, úmido por causa do sereno da noite serrana.
O desastre. Foi só erguê-lo, o brinquedo começou a se desmanchar. A carroceria desprendeu-se do chassi e o chassi dos eixos, o capô desprendeu-se da cabine e a cabine do resto.
Lacrimosamente, fiquei um tempão a olhar para os destroços. A coisa era montada à base de cola. Durante a noite deve ter caído neblininha mais pesada para provocar desastre tão completo.
Houve tempo em que eu quis mesmo ser igual à meninada pobre que aparecia na Rua do Campo, vinda das Bateias ou do Bajurema.
Garotos apareciam no meu pedaço com carrinhos feitos de lata de óleo e madeira, feixes de mola montados com faixas de metal retiradas de caixotes a sustentar a carroceria sobre os eixos. Umas belezuras.
Foi por inveja que, em vez de ressuscitar o veículo, recompondo as suas partes, decidi fazer um. E fiz, com talento meio torto. Mas fiquei satisfeito, um tiquinho frustrado por ter tido que aproveitar as rodeiras do falecido.
Fui dar uma volta com o frankenstein, e me empolguei. Empolguei-me tanto que saí das adjacências da Rua do Campo, indo parar à porta do Cine Eldorado, local frequentado por gentinha de outras arrogâncias.
A molecada ali estacionada começou a mangar de mim depois que um gaiato, apontando para a minha puxada companhia, gritou: “Olha o presente de natal dele!”
Sob risos e vaias, carrinho debaixo do braço, voltei para o meu território. Era garoto valente, mas daí...
Bem, na verdade, nesta banda de página, eu falava de golpes.
Menino do Bajurema ou das Bateias me contou um golpe que costumava aplicar impunemente. Devia ser um precursor de... Bem, deixa pra lá.
Resolvi imitar o esperto homem do futuro.
Dobrei nota de dois não me lembro o quê faltando um pedaço, com o lado abóbora à mostra para não deixar dúvida quanto ao valor do dinheiro, e fui à venda.
Cédula faltando pedaço ninguém aceitava [era mandu]. Mas na minha, dobradinha daquele jeito (a cédula, a cédula), não dava para perceber que um 2 havia desaparecido. Pedi um pirulito, deixei a fraude no balcão e saí correndo.
Quase chegando a casa ainda ouvia a gargalhada do vendeiro e dos desocupados que faziam as vezes de fregueses. Meu pai tinha conta na bodega.
Levei muito tempo sem buscar o pão da manhã.

Hamilton Carvalho 
(Gazeta de Goiás, n.º 86, 28/2/1999)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Xérox amarelada entre papéis destinados ao lixo. O acaso premia o leitor


Risos, lágrimas e palafitas

Meu amigo Resende não ficou de bubuia. A “estância” em que alugava quarto era alta, apoiada em compridas estacas de palafita.
Da janela, cuspíamos na superfície próxima e barrenta do igarapé crescido pela enchente do Solimões e do Negro.
Resende era um sujeito atarracado, de cabelos lisos e meio claros, de olhos grandes e verdes e de sorriso cheio de alvos dentões, que contrastavam com o bronzeado do rosto.
Fazia enorme sucesso com as mulheres. Ele por perto, não sobrava para ninguém.
Ria fácil, espontâneo. Ganhava todo mundo. Ao contrário de nós outros, amigos que se conheceram sobre o Rio Amazonas, em cargueiro, no percurso de Belém a Manaus, não passou dificuldades.
Era de Castanhal, Pará, e estava ali “fugido”, pois engravidara mocinha “assanhada”.
Nos primeiros tempos amazonenses, ocupou o mesmo quarto que eu. Comíamos quase sempre quitute e almôndegas em conserva, com arroz preparado numa espiriteira. Despesas – lá vai também aluguel – por conta do palerma aqui.
Nos momentos mais difíceis para mim, Resende não se apertava. Era sempre convidado para partilhar refeição com alguém, quase sempre com uma família inteira.
Quem mais o convidava para almoçar era o vizinho da casa da direita, um senhor com jeitão de próspero, que tinha um “motor” (barco a motor) e, oficialmente, transportava peixe. De que era o transporte não oficial? Não interessa, pô.
O próspero não escondia a antipatia que nutria a meu respeito, eu indivíduo calado na presença de estranhos, cara de fome e de pouca vontade, sempre jogadão na rede que trouxera na viagem. (Na terceira classe não há camarote, muito menos beliche.)
O próspero chegava à porta do quarto e convidava Resende para almoçar. Mal olhava para mim, mas fazia questão de descrever o cardápio (tracajá etc.).
O amigo também não abria espaço para que o convite fosse extensivo. O leitor, vivido, sabe de gente assim. Se eu, antipático, não existisse, não existiria o simpaticíssimo Resende. A coisa funciona por contraste, e o paraense intuía e explorava o fato.
Ele foi trabalhar no motor do próspero e se mudou para estância melhor. Depois, alistou-se no Exército. Não ficou de bubuia quando a enchente chegou.
Fui visitá-lo, pelo menos para tirar a bunda do molhado.
Raimundo, outro amigo de navio, maranhense, estava lá e contava a história do rompimento de seu noivado. Diante da noiva e chorando (chorava fácil), jogou a aliança ao fundo de um copo de cerveja e entornou o áureo líquido goela abaixo.
Ah, escatológico leitor, não me venha perguntar se posteriormente ele resgatou a joia. É provável, já que o anelzinho (o de noivado) foi depois protagonista de outra história com o mesmo enredo.
O maranhense voltou a ficar noivo da mesma moça, depois de tudo o que aprontara, e, em outra de suas fantásticas encenações, acabou de novo com o noivado.
Dessa vez, num rompante de indignação (meu deus), arrancou a aliança e a atirou no meio da sala, diante da moça e dos pais dela.
A rodelinha quicou no assoalho de tábuas mal-ajustadas e saiu rolando, rolando e – puft! – desapareceu.
Os quatro – Raimundo, a moça e os pais –, momentaneamente unidos pelo desastre, empunhando varinha, garfo, peixeira e agulha de tricô, vasculharam todos os regos do chão da sala.
Após muito tempo, tempo a escurecer, o furor foi tomando conta do grupo. Foi tomando e tomou completamente. Aí – crac! crac! craaac! – alguém arrancou a primeira tábua. Apareceram martelo, enxada, marreta e foice – e deu-se o mutirão da destruição.
A aliança deve ter sido encontrada, já que Raimundo ficou noivo de novo e, pelo que me consta, não tinha dinheiro para comprar outra.
Mas isso aí aconteceu depois da ingestão do ouro.
Ali, no quarto de Resende, o drama sentimental do rapaz nos fez rir a valer. O próprio Raimundo, embora moderadamente, também riu.
Mas o interessante mesmo era ver Resende rir. Ria com gosto, olhos brilhando, os dentões brancos à mostra.
Ainda ria ao abrir a porta para o carteiro.
Sério de repente, rasgou o envelope do telegrama. Com as pupilas fixas nas maiúsculas, começou a rir, os olhos brilhando, brilhando, até que as lágrimas despencaram de vez.
Continuava a rir e a chorar quando lhe tomei o papel e li: TEU PAI CORRE RISCO DE VIDA PT. Assim mesmo. Exíguo, barato, impiedoso o telegrama.
E Resende ria. E chorava. Nem falo de mim, porque até o cínico do Raimundo, que só ousava chorar quando envolvido em seus golpes de paixão, abriu o aparelho lacrimal.
O igarapé, sob a janela e para além das palafitas, descia pesado com a água barrenta da enchente.
A estância em que Resende morava era boa. Ele não ficou de bubuia.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 84, 14/2/1999)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Hamiltão vai à sapataria e implica com a solicitude do vendedor. É que ele não conseguia se alhear da presença “gostosa” de um grupo de garotas


Cerco ao comprador

Enfim, de sapato novo.
Para mim, é sempre ato constrangedor entrar em sapataria, ser abordado de cara por um vendedor e me ver seguido enquanto tento fazer a escolha.
Coisa chata, essa de vendedor colar na gente. Em livraria, então, nem se fala. Raramente entro numa dessas bodegas sabendo que brochura vou comprar.
Meu prazer é ficar calmamente perambulando entre prateleiras, a apreciar lombadas, a ler orelhas e a me decidir sem a presença impositiva de vendedor.
Tempos atrás fazia assim em certa livraria. Isso quando não era época de matrícula nos colégios e de listas de material escolar. Desconfiado do freguês, e acreditando que o movimento atrapalhava a vigilância dos balconistas, o dono da espelunca jogava a literatura para trás dos balcões ou para os fundos da loja.
Uma delas instalou filial “moderna”. Entrei ali apenas uma vez. Morro sem ler mas não volto. Uma vendedora colou em mim: “Pois não?” Era um pois-não a cada passo que eu dava.
Tentando me livrar da moça, disse: “Estou apenas dando uma olhada.” Ela: “Pode olhar à vontade.” Mas não me largou do pé, apesar de o estabelecimento estar quase sem movimento, o que permitia que ela me vigiasse de determinada distância, discretamente.
Com sapato é pior ainda, porque existe outro aspecto. Sempre tive problema com meias. Quando meus sapatos estouram, as meias já estouraram há muito. E aí existe aquela coisa de experimentar.
Vendedores nas sapatarias colam na gente porque há acirrada disputa entre eles. Brigam pela comissão.
Mas em livrarias e supermercados não é por causa disso, não. O infeliz do freguês já é suspeito logo que chega.
Estou lá no supermercado, bonachão, quando ouço voz de alto-falante: “Sorria, você está sendo filmado.” Já fico nervoso e, sem dúvida, com cara de quem ia cometer um delito.
Em supermercado de pobre é diferente. Entrei, comecei a olhar para aquelas coisas que pernóstico chama de gôndolas. O dono lá, seguindo-me com os olhos.
Chego ao fim do corredor, e o dono lá, na outra ponta, de olho. Passei de repente para outro corredor e observei: o homem, na outra ponta, deu um salto e caiu no mesmo corredor.
Tinhoso, não me perdeu de vista um segundo sequer. Ele, pai de nobre deputado [à época ainda vereador], devia ter suas razões para desconfiar do mundo.
Não gosto, mesmo, de comprar sapato. Aliás, não gosto de comprar é nada. Ainda que fosse turista de shopping center, não sentiria o impulso, a gana de adquirir coisas. Talvez pela falta do hábito de andar com dinheiro, cheque, cartão de crédito...
Certa vez, numa emergência, precisei comprar um par de sapatos. Estava com meias razoavelmente novas, já que apenas uma estava furada.
Para que o dedão unhudo não espantasse o vendedor e não me derrubasse a cara, era só experimentar um sapato. Simples, muito simples.
Procurei loja “em liquidação”. Antes de cruzar a porta, fui capturado por um vendedor, que depois me veio com uma montanha de caixas.
Sujeitinho solícito. Solícito até demais.
Sentado diante daquela montanha, aconteceu o que não devia: bateu-me um branco. Esqueci em que pé estava a meia sem furo.
O vendedor, solícito – solícito até demais –, não saía de perto, para que eu pudesse dar uma arriscadinha. Fiquei paradão ali, tentando me lembrar. Ah, o moço não se fez de rogado. Começou a desamarrar o cadarço dos meus sapatos.
Olhei para o lado, para o grupo inteiramente gostoso de garotas que experimentavam sapatinhos.
“Não, não é preciso”, disse, em pânico. “Eu mesmo faço isso.” O que fiquei fazendo foi unidunitê, em silêncio, com o rosto agoniado voltado para os pés.
Com lentidão, levando as entranhas para o cérebro, fui descalçando o pé direito. Devagar, muito devagar, fui puxando o chulezento para fora, procurando divisar o dedão antes que ele assomasse por completo.
Ufa. Sim, queridíssimo leitor, fiquei aliviado. Com exceção daquele cheirinho maldoso, tudo estava bem com a meia. Se tivesse a mesma sorte em loteria, faria uma coleção de sapatos maior que a de Frank Sinatra.
Depois de provar e aprovar o calçado, estava exultante. O vendedor, no entanto, solícito até demais, insistia para que eu provasse o outro sapato. Teorizava: “Não existe pé igual ao outro, exatamente do mesmo tamanho.”
Eu dizia que já estava atrasado para um compromisso. Nada. O moço, solicitíssimo e preocupado com a saúde de um dos meus pés, não desistia. “Não há nada pior do que um sapato apertado.”
Não era machadiano. Se o fosse, saberia que o enorme e gostoso alívio que se sente ao tirar uma botina apertada vale bem o incômodo do aperto.
Endureci e dei a disputa absurda por encerrada.
Agora, de sapato novo, não preciso mais esconder os pés debaixo da cadeira. Tudo isso porque ganhei, de presente, dois pares de meia. Um, naturalmente, vai ficar guardado para futura emergência.

Hamilton Carvalho
Gazeta de Goiás, n.º 83, 7/2/1999)