quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Não perde grande coisa quem não leu, antes deste, o texto que fica para trás, mas...


O gosto pela fruta

Ah, aquela vidinha besta de caçar calango tinha que acabar. Badoque pendurado no pescoço, bornal a tiracolo cheio de pedrinhas, sanha assassina no coração.
Para que matar os bichinhos? Para exercitar a pontaria e tirar o couro deles com banda de gilete. Para que tirar o couro? Para nada. Se ao menos fosse para contrabandear pele para país desenvolvido...
Algo, então, me fez mudar.
A paixão, ah, a paixão pela fêmea. Ela me pegou pela planta dos pés e me elevou às alturas. O furioso marine caçador de calango de qualquer cor de repente se transformou. Largou daquele gostinho besta de estripar. Passou a só querer trepar.
Mas só querer não levava até lá. Para isso era preciso mudar de vida.
Foi quando Célia... Não, não tenho certeza se o nome dela era Célia. Logo que ela se mudou para a casa da direita, minhas irmãs a apelidaram de Imbu Cabeludo.
E é só por esse nome e pelas conotações muito especiais que ele tinha para mim que me lembro dela. É claro que minhas irmãs pejoravam. Eu sublimava.
A menina tinha o rosto bem-feito ornado com leve penugem. O pesado termo cabeludo vinha daí.
Mas o umbu, a fruta propriamente dita, o umbu com a penugenzinha, à semelhança de pêssego, era raro e era considerado o melhor. A gente comprava vários litros para, entre dezenas, aparecer apenas um.
Mais doce, mais suculento que todos os outros. Podia ser somente impressão, mas o umbu “cabeludo” era disputado lá em casa. A meninada era criativa e adorava fabricar lendas.
As manas, no entanto, pejoravam. Eu sublimava.
Imbu tinha um irmão que ganhou o apelidaço de Boi-Bufa. Você, leitor alheio a regionalismos, pode pensar que não há intenção pejorativa em chamar alguém de búfalo, animal que, apesar de vigoroso, não se deu muito bem com gente de país desenvolvido.
Acontece que bufa, na minha terra, é sinônimo de peido. [A rigor, flato silencioso.]
Sair com macho, a devassar moita atrás de réptil, deixou de ser programa para mim com a chegada da nova vizinhazinha. Passei a participar de jogos e brincadeiras que antes considerava coisas de fresco.
À noitinha, esquentando bunda no passeio que ainda retinha o calor do sol, a meninada brincava brincadeiras de anel, de volta, de adivinhação, de...
Nas brincadeiras de calçada, eu fazia o aquecimento sentimental. Jogava disfarçadamente meu charme (deus do céu), triscava na mãozinha de Imbu na hora de passar o anel, fazia-me ser visto e sentido.
Isso porque, depois das historinhas de terror, a gente ia brincar de tonga, já tardão da noite, lá pelas 8 horas. Ou então de cobra-cega (não me vá o babaca de um revisor, aureliomaníaco, corrigir para cabra-cega).
Mas brincar de tonga era o melhor e o mais adequado para as minhas intenções, por causa das moitas, dos escurinhos...
O leitor civilizado deve estar meio perdido com a minha terminologia. Brincar de tonga, pois, é brincar de esconde-esconde. Simples.
Imbuzinha, apesar de nova na Rua do Campo, era bem-integrada à turma e participava de todas as brincadeiras noturnas. Eu a curtia adoidado, embora meu primeiro grande amor viesse depois.
Foi cerca de dois anos mais tarde, em outra rua, mas ainda ali perto do Hospital Regional. Maria Purcina... Ora, que besteira: o fiel leitor já foi apresentado a Lia. [Não seria “Lia já foi apresentada ao fiel leitor”?] Voltemos à Rua do Campo.
Eu curtia a Imbu Cabeludo com este meu conhecido ímpeto. Durante o dia, o garotão trepava em um pessegueiro mirrado, galhos precários, para observá-la do outro lado do muro. A árvore, coitada, tremia todinha.
O bom da coisa, mesmo, era à noite. Numa daquelas noites, cálida, a gente brincava de tonga e...
Bem. Que o leitor não fique sem mim na próxima semana, quando poderá vir a saber por que voltei a ser caçador de calango.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 87, 7/3/1999)

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