quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Hamiltão vai à sapataria e implica com a solicitude do vendedor. É que ele não conseguia se alhear da presença “gostosa” de um grupo de garotas


Cerco ao comprador

Enfim, de sapato novo.
Para mim, é sempre ato constrangedor entrar em sapataria, ser abordado de cara por um vendedor e me ver seguido enquanto tento fazer a escolha.
Coisa chata, essa de vendedor colar na gente. Em livraria, então, nem se fala. Raramente entro numa dessas bodegas sabendo que brochura vou comprar.
Meu prazer é ficar calmamente perambulando entre prateleiras, a apreciar lombadas, a ler orelhas e a me decidir sem a presença impositiva de vendedor.
Tempos atrás fazia assim em certa livraria. Isso quando não era época de matrícula nos colégios e de listas de material escolar. Desconfiado do freguês, e acreditando que o movimento atrapalhava a vigilância dos balconistas, o dono da espelunca jogava a literatura para trás dos balcões ou para os fundos da loja.
Uma delas instalou filial “moderna”. Entrei ali apenas uma vez. Morro sem ler mas não volto. Uma vendedora colou em mim: “Pois não?” Era um pois-não a cada passo que eu dava.
Tentando me livrar da moça, disse: “Estou apenas dando uma olhada.” Ela: “Pode olhar à vontade.” Mas não me largou do pé, apesar de o estabelecimento estar quase sem movimento, o que permitia que ela me vigiasse de determinada distância, discretamente.
Com sapato é pior ainda, porque existe outro aspecto. Sempre tive problema com meias. Quando meus sapatos estouram, as meias já estouraram há muito. E aí existe aquela coisa de experimentar.
Vendedores nas sapatarias colam na gente porque há acirrada disputa entre eles. Brigam pela comissão.
Mas em livrarias e supermercados não é por causa disso, não. O infeliz do freguês já é suspeito logo que chega.
Estou lá no supermercado, bonachão, quando ouço voz de alto-falante: “Sorria, você está sendo filmado.” Já fico nervoso e, sem dúvida, com cara de quem ia cometer um delito.
Em supermercado de pobre é diferente. Entrei, comecei a olhar para aquelas coisas que pernóstico chama de gôndolas. O dono lá, seguindo-me com os olhos.
Chego ao fim do corredor, e o dono lá, na outra ponta, de olho. Passei de repente para outro corredor e observei: o homem, na outra ponta, deu um salto e caiu no mesmo corredor.
Tinhoso, não me perdeu de vista um segundo sequer. Ele, pai de nobre deputado [à época ainda vereador], devia ter suas razões para desconfiar do mundo.
Não gosto, mesmo, de comprar sapato. Aliás, não gosto de comprar é nada. Ainda que fosse turista de shopping center, não sentiria o impulso, a gana de adquirir coisas. Talvez pela falta do hábito de andar com dinheiro, cheque, cartão de crédito...
Certa vez, numa emergência, precisei comprar um par de sapatos. Estava com meias razoavelmente novas, já que apenas uma estava furada.
Para que o dedão unhudo não espantasse o vendedor e não me derrubasse a cara, era só experimentar um sapato. Simples, muito simples.
Procurei loja “em liquidação”. Antes de cruzar a porta, fui capturado por um vendedor, que depois me veio com uma montanha de caixas.
Sujeitinho solícito. Solícito até demais.
Sentado diante daquela montanha, aconteceu o que não devia: bateu-me um branco. Esqueci em que pé estava a meia sem furo.
O vendedor, solícito – solícito até demais –, não saía de perto, para que eu pudesse dar uma arriscadinha. Fiquei paradão ali, tentando me lembrar. Ah, o moço não se fez de rogado. Começou a desamarrar o cadarço dos meus sapatos.
Olhei para o lado, para o grupo inteiramente gostoso de garotas que experimentavam sapatinhos.
“Não, não é preciso”, disse, em pânico. “Eu mesmo faço isso.” O que fiquei fazendo foi unidunitê, em silêncio, com o rosto agoniado voltado para os pés.
Com lentidão, levando as entranhas para o cérebro, fui descalçando o pé direito. Devagar, muito devagar, fui puxando o chulezento para fora, procurando divisar o dedão antes que ele assomasse por completo.
Ufa. Sim, queridíssimo leitor, fiquei aliviado. Com exceção daquele cheirinho maldoso, tudo estava bem com a meia. Se tivesse a mesma sorte em loteria, faria uma coleção de sapatos maior que a de Frank Sinatra.
Depois de provar e aprovar o calçado, estava exultante. O vendedor, no entanto, solícito até demais, insistia para que eu provasse o outro sapato. Teorizava: “Não existe pé igual ao outro, exatamente do mesmo tamanho.”
Eu dizia que já estava atrasado para um compromisso. Nada. O moço, solicitíssimo e preocupado com a saúde de um dos meus pés, não desistia. “Não há nada pior do que um sapato apertado.”
Não era machadiano. Se o fosse, saberia que o enorme e gostoso alívio que se sente ao tirar uma botina apertada vale bem o incômodo do aperto.
Endureci e dei a disputa absurda por encerrada.
Agora, de sapato novo, não preciso mais esconder os pés debaixo da cadeira. Tudo isso porque ganhei, de presente, dois pares de meia. Um, naturalmente, vai ficar guardado para futura emergência.

Hamilton Carvalho
Gazeta de Goiás, n.º 83, 7/2/1999)

Um comentário:

  1. Fala tiozão pândego! É o Cassiano!!!
    Minha mãe me falou do achado da Daniela e quis conferir.
    Estou lendo as crônicas uma a uma, sem pressa porque não há como não me identificar, meio tortamente em suas histórias.
    Não estou puxando o saco não, e nem é de minha natureza que é rude (o senhor deve se lembrar) mas eu acho que é uma espécie de banzo, sei lá...
    Um abraço de seu sobrinho, o malfadado Cassiano!!!

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