Cerco ao comprador
Enfim, de sapato novo.
Para mim, é sempre ato constrangedor entrar em sapataria, ser abordado
de cara por um vendedor e me ver seguido enquanto tento fazer a escolha.
Coisa chata, essa de vendedor colar na gente. Em livraria, então, nem se
fala. Raramente entro numa dessas bodegas sabendo que brochura vou comprar.
Meu prazer é ficar calmamente perambulando entre prateleiras, a apreciar
lombadas, a ler orelhas e a me decidir sem a presença impositiva de vendedor.
Tempos atrás fazia assim em certa livraria. Isso quando não era época de
matrícula nos colégios e de listas de material escolar. Desconfiado do freguês,
e acreditando que o movimento atrapalhava a vigilância dos balconistas, o dono
da espelunca jogava a literatura para trás dos balcões ou para os fundos da
loja.
Uma delas instalou filial “moderna”. Entrei ali apenas uma vez. Morro
sem ler mas não volto. Uma vendedora colou em mim: “Pois não?” Era um pois-não
a cada passo que eu dava.
Tentando me livrar da moça, disse: “Estou apenas dando uma olhada.” Ela:
“Pode olhar à vontade.” Mas não me largou do pé, apesar de o estabelecimento
estar quase sem movimento, o que permitia que ela me vigiasse de determinada
distância, discretamente.
Com sapato é pior ainda, porque existe outro aspecto. Sempre tive
problema com meias. Quando meus sapatos estouram, as meias já estouraram há
muito. E aí existe aquela coisa de experimentar.
Vendedores nas sapatarias colam na gente porque há acirrada disputa
entre eles. Brigam pela comissão.
Mas em livrarias e supermercados não é por causa disso, não. O infeliz
do freguês já é suspeito logo que chega.
Estou lá no supermercado, bonachão, quando ouço voz de alto-falante:
“Sorria, você está sendo filmado.” Já fico nervoso e, sem dúvida, com cara de
quem ia cometer um delito.
Em supermercado de pobre é diferente. Entrei, comecei a olhar para
aquelas coisas que pernóstico chama de gôndolas. O dono lá, seguindo-me com os
olhos.
Chego ao fim do corredor, e o dono lá, na outra ponta, de olho. Passei
de repente para outro corredor e observei: o homem, na outra ponta, deu um
salto e caiu no mesmo corredor.
Tinhoso, não me perdeu de vista um segundo sequer. Ele, pai de nobre
deputado [à época ainda vereador], devia ter suas razões para
desconfiar do mundo.
Não gosto, mesmo, de comprar sapato. Aliás, não gosto de comprar é nada.
Ainda que fosse turista de shopping center, não sentiria o impulso, a gana de
adquirir coisas. Talvez pela falta do hábito de andar com dinheiro, cheque,
cartão de crédito...
Certa vez, numa emergência, precisei comprar um par de sapatos. Estava
com meias razoavelmente novas, já que apenas uma estava furada.
Para que o dedão unhudo não espantasse o vendedor e não me derrubasse a
cara, era só experimentar um sapato. Simples, muito simples.
Procurei loja “em liquidação”. Antes de cruzar a porta, fui capturado
por um vendedor, que depois me veio com uma montanha de caixas.
Sujeitinho solícito. Solícito até demais.
Sentado diante daquela montanha, aconteceu o que não devia: bateu-me um
branco. Esqueci em que pé estava a meia sem furo.
O vendedor, solícito – solícito até demais –, não saía de perto, para
que eu pudesse dar uma arriscadinha. Fiquei paradão ali, tentando me lembrar. Ah,
o moço não se fez de rogado. Começou a desamarrar o cadarço dos meus sapatos.
Olhei para o lado, para o grupo inteiramente gostoso de garotas que
experimentavam sapatinhos.
“Não, não é preciso”, disse, em pânico. “Eu mesmo faço isso.” O que
fiquei fazendo foi unidunitê, em silêncio, com o rosto agoniado voltado para
os pés.
Com lentidão, levando as entranhas para o cérebro, fui descalçando o pé
direito. Devagar, muito devagar, fui puxando o chulezento para fora, procurando
divisar o dedão antes que ele assomasse por completo.
Ufa. Sim, queridíssimo leitor, fiquei aliviado. Com exceção daquele
cheirinho maldoso, tudo estava bem com a meia. Se tivesse a mesma sorte em
loteria, faria uma coleção de sapatos maior que a de Frank Sinatra.
Depois de provar e aprovar o calçado, estava exultante. O vendedor, no
entanto, solícito até demais, insistia para que eu provasse o outro sapato.
Teorizava: “Não existe pé igual ao outro, exatamente do mesmo tamanho.”
Eu dizia que já estava atrasado para um compromisso. Nada. O moço,
solicitíssimo e preocupado com a saúde de um dos meus pés, não desistia. “Não
há nada pior do que um sapato apertado.”
Não era machadiano. Se o fosse, saberia que o enorme e gostoso alívio
que se sente ao tirar uma botina apertada vale bem o incômodo do aperto.
Endureci e dei a disputa absurda por encerrada.
Agora, de sapato novo, não preciso mais esconder os pés debaixo da
cadeira. Tudo isso porque ganhei, de presente, dois pares de
meia. Um, naturalmente, vai ficar guardado para futura emergência.
Hamilton Carvalho
Gazeta
de Goiás, n.º 83, 7/2/1999)
Fala tiozão pândego! É o Cassiano!!!
ResponderExcluirMinha mãe me falou do achado da Daniela e quis conferir.
Estou lendo as crônicas uma a uma, sem pressa porque não há como não me identificar, meio tortamente em suas histórias.
Não estou puxando o saco não, e nem é de minha natureza que é rude (o senhor deve se lembrar) mas eu acho que é uma espécie de banzo, sei lá...
Um abraço de seu sobrinho, o malfadado Cassiano!!!