quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Sem acesso ao arquivo digital do falecido jornal, Hamiltão se vê às voltas com velhos exemplares. Eis mais um recorte


No meio da folia
            
Antes que coleguinha sádico me venha perguntar como foi meu carnaval, vou desconcertá-lo: caí na folia. Como de paraquedas. Na verdade, não fui atrás do carnaval. Foi ele que veio até mim. Ou, digamos, nos encontramos por acaso. Eu me vi no meio do carnaval, ainda que na periferia.
Nem me lembrava dessa festa pagã. Só pensava que não deveria pensar em nada. Saí à procura de um boteco mixuruca, que não tivesse muito movimento, para lavar a caveira e dar sumiço em tenebrosas teias de aranha cerebrais.
Havia muitas mesas na calçada, mas apenas uma estava ocupada. Com três mulheres mais deprimentes que sala de espera de posto de saúde e um sujeito mais chato – se possível – que líder de excursão, daqueles que ficam cantando “Índia teus cabelos, índia teus cabelos, índia teus cabelos” a viagem inteira.
Por incrível que pareça, nessa noite eu não estava com muito espírito de caçador. Estava mesmo era blasé, enjoado, tanto que nem liguei em ficar exposto naquela cadeira à beira de avenida de subúrbio, engolindo fuligem e ouvindo ronco de moto velha, eu, que gosto de cantos escusos, meia-luz, música em surdina e, principalmente, cheiro e gosto de mulher boa.
Nem me ocorria que era antevéspera de carnaval. De repente, uma caminhonete para e o motorista começa a descarregar aparelhos de som.
Com inacreditável lerdeza de raciocínio fui-me desentorpecendo até ficar zonzo com a rapidez com que as mesas foram tomadas. Uma barulheira infernal começou e arrebatadíssimas garotas pularam para a pista improvisada. Continuei imóvel, sem vontade até mesmo de ir embora. Afinal, sou bom voyeur, e ali havia farto material para ser apreciado.
Imagine, leitor desmotivado, no meio daquela explosiva, sensual e arrebatadora alegria, esta sóbria e pálida figura, vestida de preto, barba por fazer, faltando apenas óculos escuros para que a indumentária de funeral ficasse completa...
Sentado ali, cercado de shortinhos meia-bunda, seios trepidantes, odor de mulher molhadinha, mas molhadinha mesmo, de suor, sentado ali deixei o tempo correr. Mas devia ser bem estranho aquele sujeito magro, sisudo, imóvel, bebendo Bavária e fumando Bill (marca de cigarro).
Repentinamente, o som foi interrompido. É que, lá de baixo, na avenida, vinha – acredite – uma escola de samba. Escola de samba com carro alegórico, cabrochas, tudo, até uma esfuziante imitação de Joãozinho Trinta. [O autor acha que “Joãosinho”, com esse, é muita veadagem.]
Em cima de estrado colocado numa caminhonete da década de 60 ou 70 três garotas acenavam gloriosamente para um público deslumbrado. Nesse momento me levantei. Afinal, era preciso reverenciar aqueles bumbuns que faziam sumir a roupa que vestiam.
Em seguida, mais friamente, passei a analisar os frenéticos bumbuns. Um, macérrimo, era jovem e rebolava duro. Outro, já meio para o idoso, era caidaço e rebolava mole. Mas se comportava com muito brio e, como é de preceito, frequentemente se jogava na direção do público. E todas as vezes que isso ocorria eu tinha a impressão de que enorme buldogue me olhava.
Ah, já o terceiro bumbum, este sim. Tem 25 anos de idade e sua dona fuma com moderação e bebe um pouco para o demais, e fala, fala muito, que é para explorar a voz rouquinha, sensual.
Como é que sei disso tudo? Ora, leitor intrometido, o carnaval apenas começava.
A escola se foi avenida afora e o boteco voltou a funcionar a todo o vapor. Com o sangue mais ativo nas veias e nos corpos cavernosos, fui retomando os ímpetos de caçador compulsivo. Passei a observar as cercanias.
As três feias da mesa do chato não eram do tamanho que eu calço. Sem falar que o chato, alternadamente (já que não podia ser simultaneamente), as beijava o tempo todo. E aí, meu irmão, não sou de bater soro nem em saliva.
Como nada neste mundo está perdido, comecei a ser retribuído com alguns olhares. Elas, que dizem que só gostam de “filezinhos”, na prática não sabem dispensar um maduro, porém elegante, cavalheiro solitário.
É claro que eu, que já provoquei muita discórdia entre casais e procuro me regenerar, estava com muito cuidado para não ferir os sentimentos de algum namorado incompetente. Mesmo assim, estava quase sucumbindo ao charme de uma dama acompanhada. O casal acabou brigando. Enquanto ela me lançava olhares, ele me fitava com aquela cara de ejaculação precoce.
Depois o indivíduo passou a tentar a reconciliação, mas não conseguia sequer segurar a mãozinha da amada. Foi então que apareceu, toda saracoteante, a bicha mais tresloucada do pedaço.
“Ela” me conhecia apenas de vista, mas veio com tudo para o meu lado. E me cumprimentou com tanta efusão, como se me conhecesse de intimidades que só reservo para as amadas, que me deixou desarmado. Quando se afastou, vi que o casal, à mesa próxima, bem abraçadinho, olhava para mim rindo sem nenhum pudor.
A garota, acreditando que perdia tempo com suposto enrustido, se reconciliou com o namorado, favas contadas. Disfarcei um pouco e logo me mandei dali. Para não frustrar de todo a minha noite, subi a avenida à procura da dispersão da escola de samba. Mas o que aconteceu depois é outra história, e essa eu não conto.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 48, 1º/3/1998)

2 comentários:

  1. Fala tio pândego! É o Cassiano!!!
    Minha mãe me falou do achado da Daniela e quis conferir.
    Estou lendo as crônicas uma a uma, sem pressa porque não há como não me identificar, meio tortamente em suas histórias.
    Não estou puxando o saco não, e nem é de minha natureza que é rude (o senhor deve se lembrar) mas eu acho que é uma espécie de banzo, sei lá...
    Um abraço de seu sobrinho, o malfadado Cassiano!!!

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  2. Um abraço, terrível sobrinho. Obrigado por prestiar seu pândego tio.

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