quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

No jornal, o texto vem com ilustração de Salvio Juliano. Está lá, num saco de pipoca: “Breakfast at Tiffany’s”


Além das aparências

Audrey Hepburn.
Agorinha, chegando ao jornal, parei em um quiosque para comprar cigarro. A mocinha que me atendeu... Audrey Hepburn.
Não, leitor velho cinéfilo, não, ela não se parece com a atriz. É que aquele queixinho, a linha da mandíbula, aquele arzinho meio levantado e não sei o que lá mais me lembraram garotinha do meu afeto.
Ela morava no Edifício Rio Negro, em Anápolis, e eu a tinha parecida com a atriz. Era mesmo. Façamos o gosto do meu coração apaixonado.
Não sou de tietar seu ninguém, mas a Hepburn tinha um tipinho assim meio que me agradava, apesar da exiguidade de carnes. Aliás, com relação a mulher não sou muito exigente no que diz respeito à aparência.
Por ser um sujeito de rigorosa formação marxista, sempre vou além das aparências.
O “rigorosa” aqui vai a propósito, pois há camaradinha que não se peja de refugar mulher por causa disso ou daquilo, embora tente ostentar toda a dialética do mundo.
É o caso de J. e C., meninos trêfegos que propagandeavam trepadas supostamente invejáveis. (O “propagandeavam” aqui vai a propósito, já que os “meninos” decaíram.)
Eles, depois que se amarraram (ou foram amarrados) em uma só mulher (cada qual e sua respectiva), vieram para o meu lado com papo estranhamente monogâmico.
“Mulher, se não for melhor que a minha, eu não como”, faziam coro lá em Brasília, a matar o tempo durante importante encontro político.
Coerente, não vou entrar no mérito do “melhor”, que não provei, nem da aparência das zinhas deles, que não sou esteta nem ligo para idade ou acabamento.
Depois da proclamação dos ex-garanhões do pedaço, esperei, e veio, o inevitável: menção do nome de determinada mulher.
“Fulana eu não como nem morto”, dizia um. “Nem eu”, ecoava o outro. É claro que o discretão aqui não se pronunciou a respeito, mas gargalhou por dentro.
Mulher boa de cama estava ali, a fulana. Na minha avaliação até aquele momento, insuperável. Na minha avaliação até aquele momento, que não sou de dormir sobre os louros. Nem sobre os morenos, diga-se de passagem. [Houve lapso de redação, e hoje o autor faz questão de frisar que com macho não tem em cima, nem embaixo, nem de ladinho.]
A Hepburn de Anápolis, eu dizia, foi um caso patológico de paixão platônica. Sim, leitor, humildemente confesso e envergonhadamente admito: paixão platônica.
Eu a via todo sábado, à entrada do cinema próximo da casa dela, no mesmo horário, para assistir à primeira sessãozinha da noite.
Como sempre fui refém de minhas paixões – e só delas –, todo sábado, à mesma hora, estava à porta do cinema, fingindo olhar cartaz.
Na verdade, com Audrey ou sem Audrey, eu ia ao cinema todo santo dia. Dinheiro não me faltava, porque meu pai, preocupado com a minha sexualidade (sem motivo, esclareço), me dava grana para torrar na zona.
Paixão platônica... Era, mesmo, uma paixão gélida, meus circuitos tesãorais não se ligavam. Era só aquilo de ficar agarrando poesia para atravessar o marasmo e descobrir o meu continente.
Agora o leitor maldoso já vai insinuar que meu pai tinha motivo de preocupação. Ora, o leitor não sabe que por esse tempo havia também Maria O., tórrida, bela, do tamanhozinho que eu calçava.
Certa vez, em passeio a cavalo, Maria O., com seus belos e fartos atributos... Não, ela não era nenhuma Hepburn.
Deixemos para falar de O. em outra ocasião, não é? Dá-se que as minhas escassas 60 linhas chegam ao fim.
Amanhã, ao vir de casa, passarei no quiosque para comprar cigarro. Minhas filhas que me perdoem: não vou deixar de fumar tão cedo.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 89, 21/3/1999)

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