quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Como se dizia nos velhos bons tempos, Hamiltão era sujeitinho “inserido no contexto”...


Golpinho de mestre

O mural dos escândalos dá conta de que gente importante andou enchendo porta-bagagem [então meias e cuecas eram impensáveis... e incompatíveis com o volume] com R$ 5 milhões em notas miúdas. Isso é que é golpe. Eu, já pelo meio-dia, ainda não fui capaz de aplicar nem conto do vigário em barrigudinho de creche.
Vítima, sim, fui muitas vezes, principalmente no Natal, quando trocava brinquedo Estrela, durinho de novo, por qualquer rodinha de cabaça enfiada num barbante. Ou por badoque cuja borracha já ameaçava romper-se.
Às vezes dava, pau a pau, figurinha rara em troca de uma mais que repetida. À porta do cinema, aos domingos, trocava revistas praticamente novas por outras se desmanchando de velhas. Pau a pau.
O pior é que eu sabia que era enganado. Só que não resistia à lábia de garoto mais pobre, escolado na dura luta pela sobrevivência. Pensando melhor, era uma forma meio babaca e dissimulada de fazer caridade.
A esta altura o leitor, sempre malicioso, já deve visualizar neguinho me passando a conversa atrás de pé de mamona no intuito de aplicar o golpe em outro tipo de troca-troca, o famigerado.
Aqui não, ó meu. Aqui não.
Mesmo porque havia a Imbu Cabeludo, vizinhazinha da direita que não me deixou viver a tal de indefinição sexual que os freudianos inventaram. Sem nem ter tamanho de gente, eu já era macho.
Quando ela batia no meu campo visual, pauzinho ficava duro à toa, à toa... Bem, à toa é modo de dizer, pois a garotinha merecia todas as honras marciais.
A Imbu Cabeludo era irmã do Boi-Bufa, menino atentado com o qual de vez em quando eu – mesmo interessado na maninha dele – trocava uns trompaços.
Na verdade, entre a molecada do meu tempo não havia frescurite. Cada um de nós era um território inviolável e violento. A gente levava as fronteiras e os limites até onde bem entendesse e sustentasse. E o pau comia.
A Imbuzinha não ia gostar de mim se me agarrasse a conceitos etéreos tais como ética, coisa que só do ponto de vista da luta de classes se pode entender.
Claro, leitor impaciente, é claro que não vamos discutir sobre a legitimidade ou não legitimidade dos saques no Nordeste nem sobre a conveniência da denúncia ou do silêncio acerca de dinheiro público supostamente desviado para financiar campanha eleitoral.
Continuemos, pois, com a minha querida Imbu, que não requer ação na Justiça nem embromação da opinião pública.
Para ela, como para todos nós, descer o cacete em amiguinho era algo sociologicamente aceitável e socialmente justo, ainda que fosse no irmão mais querido. Havia aquilo de brigar e ficar “de mal” e depois ficar ou não “de bem”.
A menina ganhou o apelido porque... Ora, não interessa, pô. Talvez – talvez – conte em próxima crônica. É só ter saco.
Pois é, eu dizia...
Esse negócio de aceitar levar desvantagem em tudo é estranho. Quem sabe faz parte do meu jeito trash de ser.
Em certo Natal, ganhei carrinho de madeira muito do seu bacana, vermelho esmaecido e azul pesadão. Fui brincar com ele na barroca do outro lado da rua, caminho de furiosas enxurradas.
Ali, na areia fininha, construí estradas e pontes, fiz ladeiras e desvios, e brinquei como se me preparasse para ser governador.
Depois passei a transportar, no bravo carrinho vermelho esmaecido e azul pesadão, mercadoria contrabandeada, como se quisesse seguir o exemplo dos amigos de meu pai.
Mas ao grito da hora do banho, já enfarado da brincadeira, corri para casa sem levar o carro, que ficou esquecido na barroca até o dia seguinte.
De manhã, depois de ter enchido o bucho de pão e aipim com manteiga, procurei o carrinho pela casa toda, até lembrar onde o deixara.
Lá estava ele, no buraco, úmido por causa do sereno da noite serrana.
O desastre. Foi só erguê-lo, o brinquedo começou a se desmanchar. A carroceria desprendeu-se do chassi e o chassi dos eixos, o capô desprendeu-se da cabine e a cabine do resto.
Lacrimosamente, fiquei um tempão a olhar para os destroços. A coisa era montada à base de cola. Durante a noite deve ter caído neblininha mais pesada para provocar desastre tão completo.
Houve tempo em que eu quis mesmo ser igual à meninada pobre que aparecia na Rua do Campo, vinda das Bateias ou do Bajurema.
Garotos apareciam no meu pedaço com carrinhos feitos de lata de óleo e madeira, feixes de mola montados com faixas de metal retiradas de caixotes a sustentar a carroceria sobre os eixos. Umas belezuras.
Foi por inveja que, em vez de ressuscitar o veículo, recompondo as suas partes, decidi fazer um. E fiz, com talento meio torto. Mas fiquei satisfeito, um tiquinho frustrado por ter tido que aproveitar as rodeiras do falecido.
Fui dar uma volta com o frankenstein, e me empolguei. Empolguei-me tanto que saí das adjacências da Rua do Campo, indo parar à porta do Cine Eldorado, local frequentado por gentinha de outras arrogâncias.
A molecada ali estacionada começou a mangar de mim depois que um gaiato, apontando para a minha puxada companhia, gritou: “Olha o presente de natal dele!”
Sob risos e vaias, carrinho debaixo do braço, voltei para o meu território. Era garoto valente, mas daí...
Bem, na verdade, nesta banda de página, eu falava de golpes.
Menino do Bajurema ou das Bateias me contou um golpe que costumava aplicar impunemente. Devia ser um precursor de... Bem, deixa pra lá.
Resolvi imitar o esperto homem do futuro.
Dobrei nota de dois não me lembro o quê faltando um pedaço, com o lado abóbora à mostra para não deixar dúvida quanto ao valor do dinheiro, e fui à venda.
Cédula faltando pedaço ninguém aceitava [era mandu]. Mas na minha, dobradinha daquele jeito (a cédula, a cédula), não dava para perceber que um 2 havia desaparecido. Pedi um pirulito, deixei a fraude no balcão e saí correndo.
Quase chegando a casa ainda ouvia a gargalhada do vendeiro e dos desocupados que faziam as vezes de fregueses. Meu pai tinha conta na bodega.
Levei muito tempo sem buscar o pão da manhã.

Hamilton Carvalho 
(Gazeta de Goiás, n.º 86, 28/2/1999)

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