quarta-feira, 1 de junho de 2011

O autor complica até as coisas mais simples e corriqueiras. É um inadaptado

A comida


Ela e eu vínhamos mais desencontrados que irisistas (partidários do senador Maquito Vilela, chamados pela imprensa local de “iristas”). Aí me deu aquela de ser vítima da humanidade, e tomei brava decisão: parar de comer (comida de prato, já que a dona não estava me dando mesmo...).
Houve tempo em que alimentara certa vocação para faquir, e a nova fase seria uma mão na roda. Seria, pois logo no dia seguinte, ao rebolar diante de um restaurante self-service, o cheiro de churrasco me pegou pelo rodapé do estômago.
Solão de começo de tarde, ali na Avenida Tocantins. Passei pelo restaurante e, pouquinha coisa lá na frente, me agarrei em palavras que me haviam dito no dia anterior: “Ela não merece você.”
Voltei pisando duro, cheio de razão, e entrei na famigerada casa de pasto. Meditei um tantinho sobre o prato e resolvi comer pouco. Mas o diabo de self-service dá nessas coisas. Quando – depois de desfilar por três corredores em morosa fila – coloquei o pirex na balança, a infiel do Inmetro me registrou 975 gramas.
Em uma das salas daquela soturna casa procurei mesa de canto. Tímido, fico aflito ao ter de empurrar pela boca em lugares públicos; então tento estar o menos visível. No entanto, só encontrei mesa sem ninguém bem no centro do recinto.
Pousei o fumegante everest diante de mim e pedi uma Coca-Cola, fazendo força para controlar a voracidade. Não deu. Fiquei cego e me entreguei com fúria à árdua terraplenagem.
Foi então que...
Em gorduroso pedaço de carne havia uma pelanca, baita duma. Mastiguei, mastiguei, mas... A danada permanecia resistente, sem ceder à forte mordedura do esfaimado carnívoro.
Levei uma garfadinha de arroz à boca, para ver se ajudava. Nada. De raiva, tão só de raiva, intentei brava engolida. Foi que foi. A borrachona estalou dolorosamente na goela, e desceu. E voltou.
Uma ponta da desgraçada me ficara presa entre dois dentes. Chilept, chicotada no céu da boca. Recomecei a interminável mastigação.
Mandibularmente cansado, entrei em processo de desesperação. Olhei em torno. Parecia que ninguém me observava, todo mundo ocupadíssimo com a própria escavação, a barulhar feito máquina na subida da ribanceira.
Com aquele enorme elástico a me encher a cavidade bucal, armei polegar e indicador. Vai que vai, levanto os olhos para me concentrar na extirpação da coisa. E dou com o cartaz: “Sorria, você está sendo filmado.”
Em estado de choque, lentamente volto a mascar. Nhec... nhec... Meus olhos tristes se encontram com a garrafa de Coca-Cola. Aí me lembro do poder desentupidor de pia do líquido, poder reconhecido internacionalmente pela comunidade científica.
Tomo um denso gole de Coca, gole apertado, dou uma bochechadinha discreta e deixo o xarope esquentar na abóboda palatina. Quem sabe?
A pelanca não se dissolveu, mas senti a gastura passar quando, bom tempo depois, a mais-que-babada se desprendeu dos dentes e buscou o caminho do estômago. Flop.
Com a valentia de meus avós, ataquei novamente o prato, que não mais fumegava. A essa altura, não estava lá com muita vontade de comer, mas detesto o desperdício. Outra vez apelei para a Coca-Cola, notório empurrante.
Ao terminar, mirei com olhos assassinos o que parecia ser a minicâmara e deixei o estabelecimento com mais de um quilo acima do meu peso de faquir. (Não esqueçamos os 300 mililitros do refrigerante.)
O solão comia na Tocantins. De repente, descobri que estava ainda desencontrado, apaixonado talvez. Mas de barriga cheia. Satisfeito, arrotei suavemente.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, nº 1, 1º/7/2001)

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