quarta-feira, 8 de junho de 2011

O texto é bom. Embora comece com grunhidos


Um almoço

Um amigo deste aflito redator é daqueles sujeitos irritadiços que costumam se manifestar aos berros ante a menor contrariedade. Na realidade, é um indivíduo grosseiro. E faço tal afirmação sem medo de levar trompázios, pois sou das poucas pessoas que o brutamontes respeita.
Tanto me respeita que, vezinha que outra, lê croniqueta saída deste sofrido teclado. Sei disso porque, recentemente, fez comentários com referência a texto sobre alimento e engasgo. O nome da crônica é “A comida”.
“Hoje estive num restaurante que parece ser o mesmo da sua crônica”, disse-me o detestável sujeito há mais ou menos quinze dias. Já que ele não esboça pinta de tiete de cronista provinciano, não me ocorreu que o homem tenha ido àquela casa de pasto apenas para apreciar um cenário que, sem dúvida, entrará para a história, como se fora um lugarzinho da Liverpool dos Beatles.
Aliás, minha filha mais velha esteve comigo no restaurante e fez questão de conferir detalhe anotado no texto. Mas, no caso de minhas filhas, o respeito que têm pelo que faço não há que ver com esquisitices de macho.
Estranhável mesmo era certa mania de outro amigo deste amigo de poucos. Era só daminha dos melhores apetites corrupiar no pião mágico cá do degas e ele se engraçar por ela. Engraçar é o apelido; caía de sinceridade em cima da menina. Eu, que nunca arredondei promessa nos beiços, discretamente limpava a área e procurava outro terreno baldio para me amoitar.
O próprio sujeito admite, com sorrisão descarado, que nessa coisa de querer pegar xota dessorada por mim há algo de bestamente freudiano. Mas, calcado na vida sem sonhos, eu diria que ele toca um tanto para a veadagem, se é que há veadagem platônica.
Já estou livre disso. Cansado de atirar charme para mocinhas complicadas do jornalismo, passei a bater minhas bolas em gramados mais confortáveis e menos iluminados – e sem as vaias da torcida. Com isso o colega, perdido no mesmo mundinho besta de Academus, não pode exercer o seu, digamos assim, reboquismo sexual. Pelo menos à custa de minhas conquistas.
Mas eu falava era do amigo troglodita. Ele disse que chegou ao restaurante em hora em que o panorama já estava meio desbastado, pouca gente pelas mesas. Selfserviu-se, dirigiu-se a uma mesa de canto (“talvez onde você gostaria de ter sentado aquela vez”) e solenemente depositou a enorme pratada.
Faminto, começou logo, com método e presteza, a jogar forro nas vísceras. Depois, sofreado, vagueou o olhar pelo cenário. Foi então que avistou robusto adolescente que acabara de entrar. Quase dois metros de altura. “Esse aí deve torar pelo menos dois quilos”, avaliou o amigo.
O garotão se aproximou de um lado da mesa, inclinou-se e, olhando por cima dos óculos, disse ao brutal, bem baixinho: “Perdi o dinheiro do almoço; será que o senhor poderia...?”
O amigo, nadando no tempo, mirou aquela cara arredondada, pensou no dinheiro do bolso e na balança do restaurante e – assim como que dengoso – anuiu. Disse, meio que sussurrando, contaminado pela suavidade do rapaz: “Pode se servir.” O outro, baixinho: “Obrigado
O moço voltou com um pratinho sem-vergonha, alguns graminhas de 1 real e pouco. Dois pedacicos de carne, colherzinha de arroz, dois talinhos de couve-flor – e só. Ereto diante da mesa, murmurou: “Posso me sentar com o senhor?” O amigo: “À vontade.”
De novo, a soprar as palavras, doce como a oferenda: “Aceita um refrigerante?” O vasto adolescente, sumidamente: “Só água.” A água veio e o meninão segurou um gole à meia-garganta quando o sujeito da mesa ao lado soltou tremendo arroto. Mas engoliu o líquido e continuou a comer.
Comiam em silêncio, com maciez, sem bater talher. O sujeito da mesa ao lado, esquecido da estranha dupla que almoçava ali pertinho, fez trovejar dois arrotos de lascar. Ah, mas agora, com cenho levemente franzido, como em suave reprimenda, o garoto fitou o resfolegante animal, que, intimidado, pediu: “Desculpe.”
Fim de almoço. Cada qual com o olhar vago no prato vazio. Dez segundos. Meu amigo perguntou as horas num murmúrio e o garoto murmurou “Duas horas”. “Estou atrasado”, ronronou o amigo, levantando-se. O garoto também se levantou, e ficou respeitosamente ereto.
O amigo, em veludoso chiado: “Tchau.” O garoto: “Tchau. Obrigado.
Ouvi essa “história” no Ceará, boteco da Rua 8, centro de Goiânia. Foi estranho demais ver aquele rude sujeito fazer, cheio de blandícia, todo o arremedo da cena no restaurante. Ele, no entanto, pareceu acordar quando perguntei: “Só isso?”
Ergueu-se – a catadura a expressar toda a irritação que sentia –, deu um soco na mesa e intimou, com voz alta e áspera: “Queria o quê, seu porra?” E, abrindo a braguilha, caminhou na direção do mictório.

Hamilton Carvalho
(Gazeta Popular, nº 19, 22/7/2001)

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