quarta-feira, 25 de maio de 2011

Pra não deixar de ser chato, Hamiltão aplica mais uma aula de gramática

Revisão

É só me sentir de mal com o leitor, a mente trava o raciocínio, a memória escureja e a vontade de escrever se esvai mais rapidinho que picolé em boca de fumo.
Mas, como não escrevo por diletantismo – nunca –, e sim porque tenho de passar vivo pela vida, peço socorro, mais uma vez, a bravo jornalista, Nestor de Holanda, que já se desobrigou.
A ideia me veio com uma crônica de Luiz de Aquino para o Diário da Mamãe, quer dizer, da Manhã, na qual o escritor fala de revisão e revisores.
Eu me lembrei de que Holanda havia tratado do assunto, em publicação da década de 60. Aliás, o que aqui vai já foi citado por mim. Como corro de ser original, não tenho medo de me repetir; quero é garantir a ração dos bichos e o arrozinho das meninas (as filhas, claro; as outras são autossustentáveis).
O jornalista se mete a dar conselhos, a partir da própria experiência no “estudo da Analfabetologia”, aos que se iniciam “na batucada das teclas”. Ele se justifica citando um tal de Charles Chincholle: “Se os velhos não tivessem a experiência, que diabo teriam então?”
Segundo o mestre da Cartilha da Analfabetização sem Mestre, existe técnica especial que não é ensinada pelos cursos de jornalismo (“que vêm formando excelentes sapateiros, ótimos eletricistas, magníficos otorrinolaringologistas, esplêndidos construtores de banquinhos para elefante de circo se equilibrar no arame”).
A técnica parte de dois princípios: 1º – Substituir a palavra de cuja grafia o redator não tiver certeza; 2º – Substituir a palavra que a revisão não deva conhecer.
Há redações que não têm dicionário, para uma consultinha disfarçada, e o redator, “principalmente se for jornalista diplomado” (aqui em Goiás se chama “qualificado”), pergunta a si mesmo, já que não deve perguntar a mais ninguém:
– Ombro é sem agá, ou é “hombro”?
Holanda supõe que, se o cara não sabe, ele mesmo não vai responder. Mas é preciso informar, na seção policial, que o valente do dia levou um tiro no ombro.
A saída seria trocar a palavrinha da dúvida por “enchimento superior da manga do paletó” ou “parte mais alta do membro (esquerdo ou direito) que a obra sublime da natureza bela fez com que se articulasse ao tronco”.
O autor de A Ignorância ao Alcance de Todos diz que o segundo princípio também é simples. “O redatores que sabem escrever andam muito desacreditados”, afirma o experiente jornalista. Os revisores, portanto, “confiam desconfiando”. Então os redatores “devem evitar certas coisas certas, para que não saiam erradas”.
Exemplo: “‘Proeminente’ é coisa que se destaca; ‘preeminente’ é pessoa mais elevada, distinta”, ensina Holanda. “Mas ai daquele redator que empregar ‘preeminente’, aludindo, digamos, ao reitor Pedro Calmon, da Universidade do Brasil.”
O jornalista garante que a revisão não vai acreditar e transformará o coitado do reitor em coisa, chamando-o de proeminente.
Há, ainda, o exemplo da abreviatura de “et coetera”, que quer dizer “e outras coisas”. “Por isso”, adverte Holanda, “não deve ser usada para pessoas, pois seria injusto dizer-se que ‘fazem parte da Academia de Letras: Afrânio Coutinho, Osvaldo Orico, Maurício Medeiros e outras coisas’.”
Podemos, no entanto, considerar casos excepcionais. Atualizando o exemplo, poder-se-ia escrever: José Roberto Arruda, Eurico Miranda, Antônio Carlos Magalhães etc. “Porque, neste caso...”
Realmente, estou de mal com o leitor.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 203, 29/6/2001)

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