quarta-feira, 30 de março de 2011

A mais recente implicância de Hamiltão é com palavra inglesa para “pejorar” o batismo de fogo. “Coisa de paladino sem causa, ideias ou o que fazer”


O exemplo

Com gesto enérgico, dona Maria fez a turma sossegar. “Eles nunca faltaram às aulas, mas – quando o sonso resolveu ser sabidinho – vejam o que aconteceu.”
Aí, a grisalha professora da Escola Anísio Teixeira aproveitou para aplicar mais uma lição. “Se os pais de muitos de vocês seguissem o exemplo do pai do sonso ninguém mais ia querer filar.”
Detesto ter que ficar a dar explicações ao obtuso leitor. Vá lá: “eles”éramos minha irmã Nereide e eu; “o sonso” só poderia ser eu, só. (Sonso, na acepção dada pela professora, quer dizer algo assim como bestalhão, parvo, bocó.)
Na verdade, não pretendia filar a aula. A culpa foi de Nereide, que, já ganhando a impaciência das mulheres, não me esperou (eu começava a caprichar no penteado).
Acontece que nós dois sempre íamos juntos à escola. Naquele dia, quando a vi sair braba, a me chamar de lerdo, quase entrei em pânico. Gritei: “Me espera, me espera.” Corri para a porta, mas a garota já dobrava a esquina.
Passei do desamparo ao amuo. Disse para minha mãe que não iria mais à escola, pronto. Fardado, deixei-me ficar a um canto. Mãe dava a impressão de não ligar a mínima – quando eu, ainda fardado, precisava apenas de um empurrãozinho.
Nereide era uma espécie de líder dos Cinco Pequenos (era assim que meus pais chamavam os mais novos dos oito filhos).
Líder assim: cortava a cana e distribuía os gomos; nos domingos de matinê no cinema, era quem levava o dinheiro e comprava os ingressos e a pipoca; arbitrava nas briguinhas dos quatro menores, sempre com o jeitinho suave que lhe valeria o apelido de Gata Mansa.
Ah, mas naquele dia a gata arranhou, não quis ser boazinha. Afinal, eu era lerdo, lerdo, lerdo.
Pai chegou para o almoço, já um pouco tarde. Ouvi mãe: “Taí num canto, com calundu, e diz que não vai.”
Meu frágil peito se apertou com a aspereza da voz paterna. “Venha cá, seu corno, venha cá.” Corri, dei-lhe um drible e me joguei na praça. Ao virar a esquina vi o velho saltando para o jipe.
Aquilo foi cinematográfico. Diante de mim, a rua estreitíssima, calçada de pedras, o solão comendo solto; atrás, o jipe apontava na esquina acelerando ruidosamente, em autêntica perseguição.
Imagine, leitor. Eu, de paletó cáqui, larga gravata preta e calça curta, também de brim cáqui, a correr desabaladamente, batendo os pesados sapatos Vulcabrás no chão escorregadio e irregular... Era num retão quase todo ladeado de muros.
Mais ou menos na metade da ruela havia um pedaço de muro caído, brecha para a fuga. Que nada. Meu pai desceu do jipe e me encontrou acocorado entre tijolos. Lá fui eu, pendurado pela gola do paletó, até o carro.
Nossa chegada à porta da sala de aula foi espetaculosa. Pai me agarrava pela gola de brim, meus chulezentos Vulcabrás mal tocavam o chão, os joelhos pontudos, Glostora a escorrer da cabeça rapada tendo apenas um montinho de cabelo no cocuruto.
“Aqui está o corno, dona Maria, aqui está o corno.” A turma, meio estuporada, ficou em silêncio. Mas logo que meu pai saiu foi aquela algazarra. Desmoralizado, caminhei direitinho para o meu lugar, no mesmo banco em que se sentava Nereide.
Dona Maria: “Vejam o exemplo.” Era a lição.
No entanto, apesar de tudo, eu me senti aliviado por não ter perdido uma aula.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 191, 8/4/2001)

Nenhum comentário:

Postar um comentário