Desmemória
Abriu-se a porta do elevador. Sentado numa poltrona do saguão do andar, bem em frente, a conversar com cineastas, estava Stepan Nercessian, barba por fazer, jeitão de velho amigo. Ele se levantou, veio ao meu encontro. Foi aquela arreganhação.
Aperto de mão sacudido, abraço com tapas vigorosos. “Você por aqui, você por aqui”, eu dizia, expressando surpresa. E ele: “Pois é, cara, pois é... que bom te ver.”
Por mais que me esforçasse, a efusão era toda dele. É claro que, ainda no elevador, abri largo sorriso (se é que sou capaz de tal proeza) e estendi a mão.
O leitor já sabe que sou distraído, e se indaga: por que demonstrar surpresa pela presença do ator em festival nacional de cinema? Mas Stepan poderia estar com o mesmo problema meu: desmemória.
Ao voltar para me juntar ao constrangido grupo de amigos, perguntava-me, aflito: “Quem é esse filho da puta? Quem, meu deus, quem?”
Quando nos metemos pelo corredor, possível namoradinha, entortando a boca, disse algo que me deixou transido. Humilhado, talvez.
Ora, eu conhecia aquela cara da televisão e do cinema (mais da televisão, já que não sou chegado a um cinema “nacional”, culto demais para mim). O ator, com aquela barbinha incipiente de goiano do interior, me confundiu.
É que ultimamente vivo a encontrar velhos conhecidos de que não me lembro. A cobrança é certa: “Oh, cara, não tá me reconhecendo?” Aí entram detalhes de nossa “grande” amizade: “Não se lembra daquela vez no Bar do Bigode, quando você queria que eu apoiasse a chapa Aroeira?”
(Aroeira era uma tendência estudantil cuja combatividade muita gente faz questão de esquecer. Afinal...)
“Ah, sim, claro”, faço eu, besta e concessivo. O cachorro só não se lembra de que não me devolveu a rara e belíssima coletânea de poemas escritos por guerrilheiros do Araguaia. Aliás, o sujeito nem sequer se recorda da existência de tais poemas.
Esta desmemória às vezes me chateia. Há pessoas com quem tive curto relacionamento que são realmente sinceras, gostam do ínclito cronista e torcem para que ele tire o pé da lama. Mesmo que não façam nada para tal, pelo menos não atrapalham.
Por isso é que sofro ao não reconhecer de imediato um amigo desses. Para evitar a dor e para não “ficar mal” tento ganhar tempo com os cumprimentos. Ou melhor, tentava. Que se danem as convenções.
Tenho, de verdade, carinho por certos amigos deixados no passado, embora sinta enorme preguiça de reativar amizades surradas pelo tempo. Agora, existem safados dos quais sempre quis distância. Por um detalhezinho aqui e outro ali, já se sabe se o indivíduo presta ou não presta.
Ah, os detalhes... Oscar Wilde escreveu algo que diz mais ou menos assim: é pelos detalhes que se conhece o caráter. [Atualmente o autor manifesta dúvida quanto à origem desse “pensamento”; deve ser a tal desmemória.] No entanto, antes de ter contato com o pensamento do veadão irlandês, eu já selecionava amizades com base nas pequenas manifestações de caráter. A exuberância nunca me enganou.
Ih, leitor, quando estou sem assunto fico sério. Voltemos à possível namoradinha. Ela entortou a boca e disse: “Eu não sou de tietar seu ninguém.” Isto porque este arredio redator de babaquices abraçara Stepan Nercessian.
Fiquei pasmo. A dama, que me considerava o mais erótico poeta do ICHL, na UFG (embora nunca a houvesse levado para passear no Bosque da Maconha, ali ao lado), estava, de repente, me estranhando. [O Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Goiás passaria a chamar-se Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia, Facomb.] Tiete, eu?! (O espanto é tão grande que emprego o maldito sinal de exclamação.)
O ator Stepan Nercessian é muitíssimo simpático. Não tenho dúvida de que, como eu, ficou a se indagar: “Quem será esse filho da puta?”
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 188, 18/3/2001)
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