quarta-feira, 9 de março de 2011

Cândida história que se passa longe do “monumental desfile das escolas de samba”.



Garoto de aluguel

Sem ressaca, de alma limpa (mais ou menos), entro no início de curta semana meio de cintura dura. É que escrevo esta bendita na quarta-feira depois do Carnaval, e ainda tenho que dar conta de outros recadinhos.
Estivesse de ressaca, tudo seria mais fácil. Sentiria as vibrações da folia – animadíssimo, portanto, para o cumprimento do dever.
O leitor de memória grata a este cronista de subúrbio sabe que o meu carnaval do ano passado não foi de todo mau. Quebrei umas, entortei outras, apreciei até desfile de escola de samba.
Este ano, zerei-me no catre, livro em punho (livro), e joguei-me em reflexões.
Ora, esse negócio de reflexões é pura frescura. Fiquei mesmo foi pensando em (não é o lugar-comum) outros carnavais. Não tive muitos, o que quer dizer que não pensei muito. Aliás, pensar é hábito besta de quem tem preguiça de produzir.
Lembrei-me, por exemplo, de certo entardecer de carnaval. Sentadão em boteco virado para o poente, pálido e sem perspectiva, arriava-me na melancolia. Além de mim, nada de freguês.
O dono do bar sintonizou uma FM, que naquele tempo tocava somente música, música popular brasileira. [Rádio FM era como TV paga hoje, mas sem “comerciais”; um luxo.] Àquele som, eu modornava com o diabo do solzinho me comendo pelas pernas.
Não tinha apetite nem para a cerva, cuja temperatura subia a olhos vistos. Eu sentia cada centígrado. E o gosto de barata falecida na véspera.
O fato é que estávamos ali, a cerveja e eu, ambos imprestáveis para o Carnaval.
Eis que figurinha me cai diante dos olhos e arrasta cadeira e senta. “Oi, belezinha.” Teria preferido que ela dissesse “bonitão”, mas vai ver não captara a essência máscula de minha alma.
Era uma vizinha. Prestava completos e variados serviços na Boate Cafona. Naquele momento, roupinha simples e sem maquiagem, estava mais deliciosa do que quando de plantão.
Não, leitor depravado, nunca havia tido nada com ela. Na Cafona, eu fazia apenas turismo visual, a recolher “subsídios” para romance que jamais seria escrito. Acredite...
Se quiser. Não estou aqui para dar conta de minha vida privada.
A mocinha, deliciosa, puxou conversinha. Fiquei meio desconfiado com seus modos afáveis, até mesmo aconchegantes. Ela nunca daria bola para sujeitinho inexpressivo como eu. Estava interessada em alguma coisa.
Bebida? Meu deus, ela era puta fina, tinha dinheiro e gosto. Sexo? Ora, sem comentário.
Depois de oferecer e ela aceitar, mandei servir cerveja saidinha do congelador. Não ofereci mais nada, viu?
A bela tomou elegante gole, com dedinho levantado, acendeu um Hollywood, olhou-me pensativamente, boca aberta, da qual escapava lenta e grossa espiral de fumaça, e mandou: “Quero alugar você.”
É claro que a moça teve que repetir a pretensão, e eu tive que rir. Disse-lhe que fizesse a proposta à minha proprietária, que, caso aceitasse, haveria de desalojar-se do meu coração.
Aí ela explicou, sem sequer levar em conta a suposta existência de alguém na minha vida: “É só para brincar o Carnaval, só esta noite.” E fez a ressalva: “Nada de sexo, nadinha de sexo, faço questão.”
Mesmo que eu fizesse questão da coisa, aceitei a proposta e todos os seus termos. Ela pagaria as despesas, que representariam o preço do “aluguel”, e eu me comportaria como bom menino, sem pensar em besteira.
O bom menino queria apenas aventura, e à noite estava no boteco, cheiroso e arrumadinho, embora não se vestisse muito adequadamente para cair na folia. Esperou.
E ela apareceu, saia curta e folgada, barriguinha de fora, com ares e jeito de mocinha de família discretamente preparada para o Carnaval. Pegamos um táxi, cuja corrida seria paga por ela, e fomos parar num clube distante.
A noite inteira brincamos e suamos de mãozinhas dadas, sem malícia aparente. Éramos irmãos. Até fomos convidados para mesa “de família”, fizemos amizades, e com novos amigos participamos de um cordão de foliões que evoluía pelo salão e liderava a festa.
Ah, leitor carnavalesco, desde certo baile, na infância, não ousava entrar em pista de dança daquele tipo. A dama da noite transformou meu trauma em confete e serpentina. Sacudi o saco pra valer.
Não permiti que ela pagasse despesa. Nós, com nossas carências, nos completamos e fomos felizes por uma noite sem mercantilismo.
Voltamos para nosso bairro de ônibus, diazão comendo solto, nós irmãos no cansaço gostoso e na alegria pura.
Com os sacolejos do veículo por ruas esburacadas, com a sonolência que me desarmava, com a proximidade da garota que cheirava a promessas implícitas, senti o inconfundível formigar. A ereção.
Por um instante, senti-me infame incestuoso. Por um breve instante.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 85, 21/2/1999)

3 comentários:

  1. Não sei pq, mas toda vez q leio o título dessa crônica me lembro de Zé Ramalho...

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  2. Pensei em "Prety Woman" ao avesso... avesso até o final, pois a formosa dama no filme acaba com o bonitão. Mas na "Vida Cambaia" ficou só a sugestão... kkk

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