quarta-feira, 2 de março de 2011

Para quem está saturado de expressões como “a grande festa do...”, “o glamour de Hollywood”, “o brilho das estrelas”, eis uma boa pedida


O Oscar

A estatueta repousava à margem do caminho. Alguém, mais tarde, ao recordar o achado, lhe daria o nome de Oscar – puro deboche, já que a pronúncia seria com a tônica na última sílaba.
Isso aconteceu no caminho da Escola de Menores, Bairro das Candeias, bem em frente do terreno em que se ergueria mais tarde a casa do compositor Elomar. (O verbo erguer... sei não; a casa é subterrânea.)
Tenho recordações meio atravessadas da Escola de Menores. Por exemplo: um poema registrado a carvão numa das paredes do sanitário.
Não vou citá-lo porque, além de os versos serem escabrosos para os olhos sensíveis de certos leitores, discordo da tese defendida por meio dele.
A aberração de achar “tese errada” em poema é invenção de um jurado de concurso “literário”. Com o “argumento”, ele conseguiu convencer o publicitário, a socialite e o veterinário que faziam parte do júri: assim, minúsculo poeta que o vencera em concurso anterior (no qual o uso de pseudônimo era obrigatório) foi desclassificado.
O coitado, sem emprego, estava interessado apenas no prêmio (em dinheiro), e não em defender tese alguma.
Aliás, meu trauma com relação a concursos deve ter um fundamentozinho na Escola de Menores. A professora (eu a achava deliciosa naquela morenidade, sorrisão alvinitente) inventou de fazer um concurso (obrigatório) de redação.
O leitor já sabe quem levou o primeiro lugar: o degas aqui. Mas confesso que não senti a menor emoção. Nem sabia para que serviam aquela movimentação, aquele mural, os paparicos. Aliás, detestei. Eu era eu, e continuei o bocó de sempre, a procurar o melhor esconderijo do mundo.
Hoje, olhando de esguelha o passado (e encarando o presente), sinto que um mito cai: não é preciso saber ler para saber escrever. Pô, ilustrado leitor, naquela época eu não lia nada.
Tomei conhecimento da existência de livros infantis tempos depois, com a construção da Biblioteca Infantil. (Se não me engano, o cara que tocou o projeto viria a pegar um pauzinho de arara.)
Mas o “trauma” aconteceria no concurso seguinte (não foi mesmo trauma porque, de verdade, pouco me lixava). Ainda sem conteúdo para fazer citações, quebrei ponta de lápis e ganhei novamente. Só que dessa vez, antes de revelar o resultado, a professora, honestíssima, me chamou a um canto.
“Sua redação foi a melhor, mas Fulaninha, sabe, precisa de um estímulo.” Aceitei o segundo lugar numa boa, e ainda por cima prometi sigilo. (Acabo de quebrar a promessa.) A professorinha, pelo menos, teve o peito (e que...) de não falar em tese errada.
Outros ecos da Escola de Menores me vêm do pátio em frias manhãs serranas. Em posição de sentido, a molecada cantava hoje o Hino Nacional, amanhã o à Bandeira, depois de amanhã o hino da cidade.
Ainda sei de cor o hino da cidade. Tesouro imenso... és o mais belo... tem mais brilho aqui o sol... terra das rosas, de florestas seculares, “tem” mais amor em seus lares que luzes no arrebol.
Não dá para esquecer principalmente o que vinha depois. A merenda. Um copo espumante de leite da Aliança para o Progresso, com aquele gosto miserável.
A gentinha era obrigada a engolir a porcaria que mais tarde seria empregada somente na alimentação de porcos. Aliás, nos Estados Unidos, de onde provinha, o leite não servia nem para ração.
Toda vez que vejo copinho azul de plástico, argh, tenho engulhos. Não sei se minha irmã Nereide sente o mesmo com relação a copinhos cor-de-rosa.
Ah, sim. Nereide. Foi ela quem encontrou a estatueta, o Oscar. (Leitor, não se esqueça da pronúncia: oscár.)
Era que ver a Julia Roberts a empunhar o xará com tônica na primeira sílaba. “Olha a moringuinha linda que achei”, dizia a menina exibindo um falo de argila.
Mal terminei de informá-la sobre o que era aquilo, os dedinhos dela se abriram e o coitado do Oscar se espatifou no chão. A glande malfeita rolou até parar num rego cavado pelas chuvas.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 190, 1.º/4/2001)

Um comentário:

  1. Vida cambaia, acho que tia Nereide já era uma grande esteta naqueles tempos...

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