quinta-feira, 1 de julho de 2010

Há certos estados de espírito que até se explicam, mas Hamiltão procura poupar o leitor dos males que o afligem


Questão de gênero


Ao sair de casa, hoje, dei-me conta de viver um apocalipse mental, a derramar mau humor por todos os poros. Letícia, a gata, nem ousou me acompanhar até o portão.

Em semelhante estado de ânimo, fico com os pensamentos contaminados pelas impurezas da vida. Se algo belo me relampeia na cachola, tenho de sujá-lo de realidade.

Foi então que, ao me entortar na curva da Ladeira do Vento, vi a figurinha encantadora de uma moça. Outra pessoa, e em estado normal, diante de tal lindura se sentiria transportada ao Éden, a alma trespassada de luz.

Eu não. A mente empapada de sujeira pegou a pobre ninfa e a levou para a sordidez do quarto de um velho fauno.

Pensei, trevoso: “Eis o tipo de mulher que eu queria peidando debaixo do meu cobertor.”

Cheguei à parada de ônibus a exalar gás pelas narinas. Em meio à lembrança de flatos e até de explosivas diarreias, surgiu na tela obscena da memória a imagem de um homem chamado Bahia.

Na cidade há duas feiras famosas, a Feira Grande (evocada por Elomar: “Já que tu vai lá pra feira” etc.), que se espalha no Centro, e a Feirinha, que fica do “outro lado” da rodovia e é enorme, ao contrário do que poderia sugerir o nome.

Aperreado, vendi a moto (adquirida em Goiânia) e comprei uma barraca de secos e molhados na Feirinha. O “estabelecimento” era fixo, de madeira e zinco, e ficava aberto durante toda a semana, embora a feira propriamente dita se instalasse no domingo.

Foi aí que conheci Bahia, sujeito atarracado, forte e luzidio, ex-hóspede da penitenciária de Salvador. Apesar de aparentar certa maturidade rude, era pessoa cândida, de desconcertante franqueza.

A barraca dele e a minha ficavam em lados opostos num cruzamento de vielas do setor da praça destinado àquele tipo de comércio. Como o movimento era muitíssimo fraco nos dias úteis, às vezes trocávamos palavras, de esquina a esquina.

Bahia, no entanto, não era de conversar muito. Ficava lá, sentado entre sacos e caixas de cereais, parecendo um buda. Raramente botava os pés fora do seu reino.

Eu, quando não lia ou escrevia, circulava um pouco por ali, inquietamente, desacostumado com a falta de ação. Numa dessas inquietudes de agitador de rua, Bahia me chamou com um aceno.

Quando parei diante dele, o homem, inclinando-se por cima de uma caixa cheia de arroz goiano, fez gesto para que eu aproximasse o rosto. Então, muito sério, com voz baixa e grave, perguntou: “Mulher peida?”

O leitor, de gargalhada fácil, não há de entender – mas eu não ri. Ele estava realmente preocupado e interessado em saber a verdade. Fiz o que pude para esclarecê-lo.

De minha barraca, fiquei a observá-lo. Ele estava pensativo, olhava para o meu lado, ajeitava grãos de feijão na borda de uma das caixas, mexia aqui, mexia acolá, olhava de novo para mim. Estava desassossegado. Não era mais buda.

Convocado com outro aceno, postei-me diante de Bahia. Ele se inclinou, pediu que me achegasse mais e insistiu: “Tem certeza que mulher bufa?” Antes que eu dissesse qualquer coisa, confessou: “Pois a minha não.”

O intrigado barraqueiro estava casado havia alguns meses. Antes de comprar barraca e se casar, passara boa temporada na prisão, onde por certo se habituara à sinfonia noturna de peidos.

Segundo ele, nunca ouvira ou sentira a mulher peidar. Aquilo estava matando o homem. Dias seguidos tocou no assunto. Estava obcecado por um peido feminino.

Tentei ajudá-lo. Recomendei que à noite cozinhasse bata-doce, amassasse o tubérculo no leite quente e oferecesse a papa à mulher. Não havia – assegurei ao aflito marido – toba que segurasse.

No dia seguinte, Bahia estava lá, entre caixas e sacos de cereais, mais buda do que nunca. Cheguei, todo álacre: “E aí, como foi?”

“Não dormi nada”, resmungou. Só então reparei que ele estava com os olhos vermelhos, pálpebras maceradas. Parecia uma tempestade armada, dada a expressão de mau humor com que me fitou.

Ali estava um homem completamente vencido. “Passei a noite toda esperando a mulher bufar, mas nem o diabo da batata adiantou.” Aí, amuado, meio nervoso: “E você ainda vem me dizer que toda mulher peida...”

Parece que então lhe ocorreu súbita ideia. Olhou-me com um pequeno brilho nos olhos, como se nem tudo estivesse perdido: “Tua mulher peida, hein, hein?”

Bem, leitor, neste apocalipse...


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 112, 29/8/1999)

Nenhum comentário:

Postar um comentário