quarta-feira, 23 de junho de 2010

Texto cheio de espírito (de contradição), e derramado como poucos. O autor culpa pressa no fechamento de edição e pressão dos diagramadores do jornal


São João passou por aqui?

O espírito do são-joão não baixou no meu terreiro. Ou, numa resposta impossível na minha terra: São João não passou por aqui.
Para mim, o nome santificado é apenas sinônimo de festa, e não ando lá com o espírito muito festivo.
Lembro-me de remotos são-joões. Gostava muitíssimo daquelas noites pirotécnicas e sensuais, densas.
Hoje, em outro espaço e outro tempo, qualquer traque me deixa abalado e quase toda mulher complica e dá chabu. Uma sem-graceza só.
A cada são-joão, madrinha Mira mandava erguer fogueira colossal, enfeitava o terreiro com papéis coloridos e abria as portas da casa. Para entrar e tomar um licorzinho não era nem preciso gritar a senha: “São João passou por aqui?”
Dona Mira tinha o bem-querer de todos, e para mim ela era fantástica, maravilhosa: uma fada, a fada madrinha.
Morreu depois de longa e dolorosa enfermidade. Aí, leitor sentimentaloide e besta, as festas juninas deixaram de ser muita coisa para mim. O santo parece que foi perdendo a alegria, até deixar de passar pelo meu pedaço.
Mas que ele passava passava, e com generosidade. Para conferir, pequeno grupo de meninos saía pelas ruas, parava em frente a uma casinha e gritava o abre-te sésamo.
Era recebido com as honras da casa e tomava do licor – que era verde ou vermelho ou amarelo, servido em pequenino copo de vidro grosso – e partia alegremente com as mãos cheias de biscoito.
Tudo muito bem-comportado, apesar da estrepitosa alegria. Barulho havia com intensidade por todo lado. Os estrondos, pipocos e chiados dos fogos de artifício não incomodavam. Todo mundo estava no coração da alegria.
Hoje, até estouro de saquinho de papel me desmantela. Então imagine você, leitor pacato, o que é ter de aturar molecada de rua atirando bombinhas para tudo quanto é lado. É de estourar o peito combalido de intranquilos transeuntes.
O pior para mim é que os diabretes, em ostensiva provocação, acham por bem colocar bomba na caixa de correio da minha casa. O estrondo é enlouquecedor.
Para provar a ação dos pequenos vândalos, tenho aqui no bolso o aviso de vencimento da conta de energia, todo chamuscado.
Não sei. Talvez ande para lá de sensível. Certa vez, por exemplo, fui assistir a um jogo de futebol de salão em Anápolis, e as torcidas festejavam cada gol com rojões.
Já pensou? Em ginásio pequeno, cobertura de zinco, com aquela acústica miserável, seria justo que o cidadão se revoltasse. Mas não, todo mundo parecia muitão satisfeito da vida.
Somente eu, o boboca, fui quem esboçou gesto de indignação. Logo brecado por pessoinha festiva: “Ora, cara, você precisa entrar no espírito da coisa.”
Espírito da coisa... Ela, a bonachona, é que não soube, anos depois, entrar no espírito de minha coisa, que tanto a atraía. Ou atrai, não sei. Ainda estamos por ver.
Aliás, estou completamente no estar por ver, no estar por fazer, nas pendências e dependências. Não sei o que serei de mim, da vida e das mulheres.
Em crise, estagnado, sinto-me lagoa cheia de limo, a sobrar, miúda, no chão estorricado da caatinga da solidão.
Ah... Eis a razão deste texto carregado de má vontade, nadinha festivo. Com a alma ensombrada, sem pirotecnia, como é que poderia casar meu espírito com o espírito dos que amam e são amados, dos que veem e são vistos, dos que dão e recebem?
Não há em meus olhos a chama bailarina da fogueira de madrinha Mira. Já não sei sequer balbuciar a senha que me abriria a porta hospitaleira do amor e da fraternidade.
Pô, leitor estonteado com tanta bestagem adjetivada. O espírito do são-joão não baixou no meu terreiro, mas não é preciso que você acredite nesta dose homérica de melado.
É certo que São João não passou por aqui. Nem qualquer outro santo. Isto, todavia, não é o fim da picada.
Resta congratular-me pela proeza de redigir 70 linhas (não cheias) sem ter o que dizer.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 103, 27/6/1999)

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