quinta-feira, 8 de julho de 2010

Texto convencionalíssimo. Sente-se nele, porém, o sopro do gênio...


O difícil de-comer

Minha vida de feirante não foi o que se poderia chamar de sucesso. É claro que eu, por mais bocó que seja, não esperava muita coisa de negócio tão pequeno. Mas as filhinhas (uma recém-nascida), a mulher e eu precisávamos comer – algo prosaico, porém imperativo.
A situação continuou difícil para mim. A concorrência de supermercados nas redondezas matava a feira, principalmente no que tange à venda de alimentos ditos não perecíveis.
Aos domingos havia muito movimento, mas só se faturava alguma coisa na parte em que se vendiam, por exemplo, carne de sol, farinhas, frutas e verduras, espelhinhos de bolso, pentes, águas de cheiro e roupas.
As vielas do setor de barracas fixas de secos e molhados serviam quase somente como acesso às outras áreas e para o passeio de donzelas sem o que fazer. (Só me falta dizer que sou donzel...)
A propósito: uma dessas donzelas, adeptas de shortinhos meia-bunda, em plena feira de ensolarado domingo encheu a mão com os meus colhões e apêndice cavernoso.
(Não é por nada, não, leitor curioso quanto a medidas, mas a palavra apêndice não expressa bem nem latitude nem longitude.)
Eu voltava da barraca de café, onde mandei ver beiju com manteiga. Duas garotas que vinham em sentido contrário se olharam com sorrisinho malicioso. (Quer dizer, isso de malícia só deduzi depois.)
Ao cruzar comigo, a mais próxima – morenona de belíssima testa venusiana – enfiou a mão entre as minhas coxas e a subiu, abarrotando-a de brim, testículos devidamente ensacados, pelos pentais e pênis.
Que mão. Que susto. Parei e fiquei teso, na ponta dos pés, todo arrepiado.
O leitor (ou a leitora, claro) já deve imaginar que sensação deliciosa me percorreu o corpo inteiro a partir do kit arrepanhado, desaforadamente seguro durante dois estonteantes segundos.
Às gargalhadas, as assanhadinhas se meteram feira adentro. Colegas feirantes, homens tão sérios, mangavam da parva figura que tentava recompor-se no meio da viela.
Como dizia eu, a situação não era nada boa. Nenhum barraqueiro acreditava que a situação poderia piorar. Piorou. O Grande Painho havia criado um “programa” que determinou o fim de minha carreira de feirante.
Com o maior despudor, o governo instalou ali mesmo, na Praça da Feirinha, um amplo armazém com produtos da cesta básica e precinhos paternais. Um acinte.
Até a “elite” que comprava em supermercado passou a pegar a fila governamental, gente metida a besta que já tinha substituído o “fazer feira” pelo “fazer supermercado”. (Fila é uma espécie de fetiche brasileiro; sem ela, nem sala de espera de hospital público tem graça.)
Mesmo para ver marmanjas com shortinhos meia-bunda era necessário ficar à porta do armazém. O setor das barracas fixas, feitas de madeira e zinco, ficou parecendo uma daquelas cidades fantasmas de filme norte-americano.
Se antes vendia pouco, agora evoluí para não vender absolutamente nada. Mas, tinhoso, todo dia estava lá, na tocaia de freguês. Quando aparecia alguém numa ponta da viela, meu coração anelava mais que o de virgem alencariana.
Aliás, eu era meu único “freguês”, pois ia levando da barraca para casa o óleo, o arroz, o feijão e – quando ainda não estava em falta no mercado – o leite em pó de quase todo dia.
Os colegas que conseguiam manter a freguesia do fiado ainda aguentavam. Eu, coitado, nem fiado. Logo no começo, uma mulher, recomendada pelo antigo dono, me levou quase a metade do estoque. Fiquei feliz, porque ela era “boa pagadora”. Até hoje.
No desespero, para ganhar qualquer coisinha, minha companheira foi tentar alfabetizar a mulher de Bahia, o “peidófilo” apresentado ao leitor na semana passada.
(Meu intelecto é pequeno, mas honesto: a palavra peidófilo foi cunhada por Alessandro Carrijo, um dos diagramadores desta página.)
Não deu certo. Se fosse hoje, eu diria da mulher do Bahia: como computador defeituoso, ela não “salva” nada. O que minha mulher ensinava em um dia, com paciência de programador, no outro dia já estava “deletado”.
Desse modo, Bahia viu o seu segundo grande sonho também não se realizar. Do primeiro grande sonho o leitor se lembra: o feirante queria peido – nem que fosse um peidinho só – da amada.
Por mais prosaica que seja a afirmação, as filhinhas, a mulher e eu precisávamos comer. Foi assim que, ao me preparar para mais um “dia de trabalho”, contemplei as prateleiras e fiquei profundamente desolado.
“Meu deus”, angustiei-me, “comemos a barraca.”

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 114, 3/10/1999)

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