A nudez castigada
Não é preciso que você tenha calo seco em sapato apertado. Depois de uma caminhada de quilômetros, que gostoso tirar sapatos e meias.
De qualquer forma, é gostoso ficar com os pés nus em tardes tépidas, sozinho em casa. Ou com o corpo todo nu, só ou ao lado de cheirosa mulher. É o conforto.
Ah, o conforto. É por causa dele que detesto camisinha.
Quando digo que não caibo nessas porcarias de borracha que se vendem em farmácias e portarias de hotel, há quem pense que faço apologia de minha dotação.
Nada disso. Sujeito modesto, qualquer tamanho me serve quando se trata de amar. Calço sempre as medidas da amada.
Detesto me imaginar atrapalhado na hora de vestir o maldito preservativo. (Antigamente camisinha era palavrão; mocinhos de fino trato enchiam a boca de camisa de vênus, discretamente, em voz baixa.)
O uso da coisa vem de longe. Dizem que os primeiros preservativos para homem eram feitos de couro de boi.
Coitada da mulher, arranhada no mais fundo de si por costuras e dobras de couro curtido, num atribulado vaivém de macho com dificuldade para gozar.
O uso não é novo, não. Lembro do lixo da Peru, quando menino em São Paulo.
“Peru” era o apelido secreto que a meninada da rua botou numa mulher grandona e vermelha que passava os dias gastando camisinha com os amigos do marido, enquanto o infeliz mourejava em alguma fábrica de sabonete.
A meninada, empunhando varinhas, todo dia ia garimpar o lixo da Peru. Incrédulo leitor, pela quantidade de borracha lambrecada que se pescava, a Peru escolhia parceiros à altura de sua (dela) voracidade sexual.
Camisinha, às vezes, proporciona algo de bom. Por exemplo: quando a mulher oferece ajuda na hora de colocar a enroladíssima borracha e se mete a criativa. Até aí tudo bem, muito bem, muito bom, delicioso, deliciosíssimo.
O chato é depois, quando você vai beijar a amada, aquele gostinho de lubrificante...
Moda. Moda é possível até nos domínios do preservativo. Na Holanda foi lançada a camisinha “baggy”, na onda das calças que são mais folgadas nas pernas.
A borrachinha antipática teria formato mais largo, com elástico para estrangular o zé-da-garoa pela raiz.
O fabricante promete conforto. Sei não, leitor entusiasmado, sei não. Conforto para mim é algo mais que uma vestimenta estranha. Já pensou? A gente apresentar aquela coisa malvestida aos olhos da amada, com um coitadinho lá dentro, estrangulado, sufocado.
O laboratório do “invento” batizou o troço de Ezon, palavra cuja origem seria “easy on”, que em português é “entra fácil”. Entra fácil...
Para você curtir o conforto de estar com os pés nus não é preciso que tenha calo seco e sapatos estreitos. Mas há gente que faz a coisa por modismo.
Numa sexta-feira, depois de eu ter zanzado o dia todo pelo centro do Rio, na neblina, em dedicado trabalho de office-boy, meu chefe me convida para jantar.
Sodré queria que eu conhecesse a mulher dele, que depois descobri ser admiradora dos costumes japoneses.
Para pisar o sagrado chão daquele lar, eu tinha que tirar os sapatos. Fui atacado por imensa vontade de sair correndo rua acima.
Havia consumido a sola dos sapatos no ingrato trabalho de ir a bancos e repartições públicas, de percorrer ruas, largos e becos. E agora me encontrava ali, carimbando com buracos o tapete da casa do chefe.
Isso não era nada. O lépido Sodré já estava só de meias, e era daquele jeito que eu teria de ficar. Mas como?
Em cada pé, tinha apenas meia meia. Até hoje me vejo ali, naquela sala arrumadinha, vestindo cano de meia, entrededos cheios de preta e fétida lama...
Não, leitor cruelmente risonho, aquilo não tinha nada de confortável.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 61, 31/5/1998)
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