quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Hamiltão destrambelhou de vez: de cara, chama o leitor de chato, num texto de dar coceira


Uma noite do cacete

Você é chato? Não? Você pensa que não, mas é. Talvez não seja chato full time, ou para determinadas pessoas. Mas que você é chato, em algum momento, com algumas pessoas, lá isso é.
Fui garotão rebelde, temperamental, cheio de ímpetos e nervos. No entanto, sempre cavalheiro, suportava qualquer chato que se sentasse a minha mesa. Pura idiotice.
Hoje, supostamente mais calmo, supostamente sereno, cheio de bom senso e postura política, não engulo piolho. A não ser que tenha algum objetivo. Por exemplo, catar assunto para crônica.
Às vezes tolero algum chato quando à mesma mesa há gente que é tão boa companhia que compensa um pouco o inferno da chatice. E mesmo assim o phthirius tem que ficar no outro extremo da mesa.
Não dou papo. Às vezes, quando o assédio já está estuporando minha parca inteligência, digo na lata: “Ó, cara, você é chato e eu não tenho saco pra isso.”
Pior é que alguns não se mancam e ficam tentando justificar a aporrinhação. Isso deve ser o que um psicólogo chama de efeito Gabriela: eu nasci assim, eu sou mesmo assim...
Semana passada um parasito desses pousou em minha mesa. Para agravar a situação, o bizarro elemento não pagava nada. Bebia e fumava – fumava muito – por conta de meus amigos. O que me dói é que foi também à minha custa, já que fui vítima no rateio da conta.
Sujeito na idade de tomar vergonha, queria se passar por garotão, forçando no sotaque de alienado, metido em bermudão e calçando tênis com meia de colegial.
Ver aquela cara de espertinho era terrível. Ainda pior era ter que aturar o papo. Para se dar ares de importante, a todo momento perguntava meu nome. Queria que eu perguntasse o dele. Um pequeno triunfo: não sei o nome daquela toupeira.
Uma característica do chato é discordar de todos para se manter em evidência na roda. O pediculídeo dessa noite era de uma ignorância monumental e se metia a saber de tudo.
Sei, leitor fiel, que você não esperava que eu escrevesse uma crônica chata. Mas isto aqui é um ato de vingança.
Prefiro bilhões de vezes passar uma noite me coçando por causa do verdadeiro Phthirius pubis (L.) a tolerar parasito de mesa de botequim.
É claro que não é nada agradável, ainda mais quando se pega chato de homem. Pera aí, leitor maldoso. Explico.
Era uma vez lá no Maranhão. Eu tinha namoradas limpinhas, saudáveis, e me surpreendi quando, durante almoço, meu pai, olhando-me fixamente, disse: “Você tá com um chato na sobrancelha.” Corri ao espelho.
Confirmado o fato, passei a me coçar desbragadamente. Encontrei o chatíssimo inseto até nas canelas, sem falar em áreas mais recônditas.
Aconteceu que um mala sem alça, anelão no dedo, dente de ouro e reluzente bicicleta, aparecia lá em casa na hora do almoço, filava a boia e, todo folgadão, ia tirar a sesta. Em minha cama.
Como ele era assíduo frequentador da Farra Veia [pron.: “véia”], a zona meretrícia mais antiga da cidade, arrastava piolhos de lá até meus lençóis. Já pensou? Fui vítima de intermediário de chato.
Ah, mas esse não foi o primeiro. Anos antes, em Manaus, um galã de soleira de bordel balançou montanha de pediculídeos em minha rede. Eu trabalhando e o elemento zanzando em meus cordões... Era tão folgado que usava até minha escova de dente.
Coisas assim, porém, o Neocid resolve. Já o anopluro de galochas, ô saco, depois que gruda nem banho de Baygon dá jeito.
Imagine, leitor ilustrado, o garanhão aqui, caçador inveterado das noites cálidas, sentado a mesa de bar de intelectual goiano, naquela atmosfera modorrenta, assexuada, a arrecadar na cara perdigoto de pernóstico. Não dá.
Lá pelas tantas, meus amigos e eu resolvemos mudar de garimpo. Aquele ali estava mais arregaçado que Serra Pelada. Ou melhor, tal ambiente de centro “revitalizado” nunca teve mina nenhuma. É aquela moleza de “artista” flertando artista, de longe, em grupos formados em torno de mesas, ilhas de imbecilidade.
Chamamos táxi e, antes que o motorista terminasse de abrir a porta, o chato já estava aboletado. E o infeliz aqui teve que fazer viagem ao subúrbio coladinho naquela coisa repugnante, com cheiro de fim de noite de mistura com desodorante para lá de idoso.
Caímos num ambiente parecido com intervalo de batalha da Guerra de Canudos. Mesmo assim, duas prováveis presas caíram em nossa mesa. E o raiz de pentelho estava lá, com dois palmos de língua branca no pescoço das meninas.
Elas – cobertíssimas de razão – fizeram o que eu havia previsto. Foram parar noutro reduto. Meus amigos e eu arriamos a bandeira e levamos o chato embora. Já dia claro, solão comendo, e o sujeitinho querendo mais cerveja. Por conta dos outros.
“A esta hora só tem padaria aberta”, eu disse, queimando o dedo no estopim. “Então”, exclamou o parasito, cheio de entusiasmo, “então vamos à padaria!”
Você não é chato, tolerante leitor? Eu, de minha parte, acabo de descobrir que o sou. Mas só por vingança.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 55, 19/4/1998)

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