quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Compungido, o cronista adverte: não é só a danada da cachaça...


Confissão de um macho

O homem nordestino é, antes de tudo, macho. Euclides da Cunha veio com aquela de “forte” porque ele era um mestiço neurastênico do litoral. Nordestino que se preza só faz confidências para a peixeira.
Pois bem, leitor cheio de cobranças. Tenho feito de você um ligeiro confidente, assumo, mas não assumo absoluta sinceridade nos delírios registrados apressadamente neste espaço.
Não que eu seja propriamente mentiroso. Sempre aceitei o fato de que mentira é manifestação de idealismo. Acontece que não posso tornar meu espírito romântico infenso a devaneios e ludismos. Afinal, são coisas de poetas e ex-poetas.
Com ex-poeta, então, a coisa é mais grave. Ex-poeta é como ex-fumante. Além de detestar o cheiro dos da ativa, costuma sonhar que dá fundas baforadas, rasgado de cálidas inspirações.
Por falar nisso, não participei de recente concurso de “poesia falada” (escrita e inscrita, é claro, com antecedência) porque, além de ser “ex”, fui o oitavo colocado no concurso anterior.
O que incomodou, esclareço, não foi a colocação, mas o prêmio. Humilhante. Um pacotinho de livros de “autoajuda”. De autores goianos.
Como é que alguém pôde imaginar que sujeito de elevado autoconceito ia se esgoelar por madrugadas seguidas para barulhenta plateia de concorrentes – portanto hostil – só para ser xingado de epígono de Paulo Coelho?
Leitor cheio de espírito esportivo, eu estava ali mesmo era por causa do dinheiro. E, pelo montante oferecido, já dá pra sentir até onde chegaram minhas necessidades. Se eu fosse o bode Francisco Orelana...
Aliás, esse bode – não sei se ainda é vivo – era nordestino, e se alguma vez falou não foi para fazer confidências.
Ele morava lá pelas quebradas do Rio Gavião, alimentando-se de livros da biblioteca do compositor e cantor Elomar. Por ser bode intelectual – mas devorador de livros, não apenas orelhas de livros –, tornou-se célebre personagem de Henfil.
Nordestino não é, eu dizia, de fazer confidências. Pode chegar, talvez, a contar um pouquinho de vantagem. Caso de um vizinho meu, cujo nome (fictício – eu não sou besta) é Gabiru.
Parrudo, pequeno, cabeça enorme assentada nos ombros, ele trabalhava (eventualmente) como servente de pedreiro.
Toda vez que eu via Gabi (sem querer humilhar o coitado mais do que a miséria já o faz), ele estava entornando umas e contando histórias heroicas de que era sempre o protagonista.
Indefectível personagem secundária nas narrativas, o Capeta costumava aparecer em seu caminho encaixado na sela de baita cavalo.
E o baixinho (que jamais chegaria a ser da Xuxa) transformava-se em verdadeiro D’Artagnan, a brandir intimorato facão. Certo, leitor rigoroso, o ajudante dos Três Mosqueteiros não esgrimia arma tão grosseira.
Isto me lembra algo.
Não entendo porque o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, bom nordestino, registrou minete como sinônimo de cunilíngua. Não é.
Nordestino é tão macho que nem quando criança se entrega ao troca-troca. Aliás, o Aurélio dá uma definição incompleta desse termo, que depois de largo uso se estendeu aos domínios do futebol.
O macho nordestino não vira o rabo pra ninguém. Daí o minete, que é um ato sexual entre homens, frente a frente, ou melhor, tête à tête. Nisso os machos se enfrentam como verdadeiros espadachins. Assim, continuam machos, porque ninguém deu.
O dicionarista deve ter tido um ataque de pudicícia. Talvez por ter nascido em Alagoas, terra de Collor, que é chegadão, dizem, a um supositório incrementado.
Ataques desse tipo acontecem, como o que um dia sofreu Gabi, que, rompendo a regra, fez confissão. Claro que foi depois de o bravo nordestino ter lavado e enxaguado várias vezes a caveira.
Contava ele que certa noite de lua cheia enfrentava o misterioso cavaleiro de negro, que era sem dúvida o Capeta. Gabi pulava, girava, dava fintas no tinhoso. O intimorato facão arrancava faíscas do cascalho da estrada.
De repente o cabeça-chata, que contava a história reproduzindo a coreografia da luta, aquietou-se, aproximou-se de mim e, com os olhos rasos d’água, confidenciou:
“Tu vê aonde pode chegar um macho: comi Juramar e Juramar me comeu.”
O amigo, que também trabalhava (eventualmente) como ajudante de pedreiro, teria comprado uma garrafa de 29 e convidado Gabi para ajudar no enxugamento. Lá pelas tantas perceberam que estavam sozinhos na casa de Jura. Aí, o pau comeu, quer dizer, os paus comeram.
Você sabe, leitor vivido, que nordestino dialoga com o vizinho cada qual em sua casa. Por causa desse hábito, o de falar alto, é que, ao fazer aquela inconcebível confidência, Gabi acabou deixando toda a população do boteco informada de seu sofrido prazer sexual.
“Aonde pode chegar um macho...” Contendo as lágrimas com as calosas mãos, Gabi era o próprio desalento. “Aonde pode chegar um macho...”
Mas, como bom nordestino, ele não se entregou e acusou: “Foi a maconha, foi a maconha que aquele infeliz me deu.”
Um macho, antes de tudo.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 62, 7/6/1998)

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