Cantigas de espantar demônios
A mulher, com sebosos cabelos longos, sentada com bíblia no colo, abriu o hinário que meteram nas entranhas dela.
Lúbrico leitor, não dê uma de revisor dislético. Leia direito. Os cabelos da mulher eram sebosos mesmo, e não sedosos.
Como eu dizia, a matrona começou a cantar hinos. Até aí tudo bem. Acontece que aquele berreiro era dentro de um ônibus lotado de sofredores estremunhados a caminho do trabalho, fazendo alongamento na barra do teto, numa tamanha segunda-feira.
Desafinada, quase histérica, cantando plágios de músicas invertebradas, com letras metidas a paulada por algum ambicioso “jovem evangélico”, a mulher na certa estava querendo-nos “converter”.
Ou, quem sabe, limpar aquela atmosfera carregada de demônios, cheia de curvas glúteas e baixos-ventres indecentes por natureza.
Se a desgraçada fosse um rádio, você poderia mudar de estação ou, melhor ainda, desligar, já que rádio agora, quando não joga no ar gritos de desvairado, toca plágios.
Rádio é bom, tem seus momentos. Imagine, leitor caseiro, domingo pesadão, depois do almoço empurrado por cima do cervejal do estômago, televisão ligada na baboseira de sempre. Só televisão ligada? Não.
O marido está lá, atropelado por um bermudão, as esquálidas e peludas pernas estiradas no tamborete, e o rádio portátil na coxa ligado num jogo de futebol. E jogo de futebol narrado por locutor goiano, com aquele sotaque ecoante de ermos e gerais.
O sujeitinho queria ser simultâneo. Acompanhar o jogo do Goiás e ver a banheira do Gugu. Banheira? Como diria um amigo, aquilo está mais para saboneteira.
Mas a mulher queria era ouvir o papo estimulante do Liberato com um garotinho em um táxi. Já pensou? Garotinho de 8 anos de idade andando sozinho de táxi em São Paulo, com motorista nítida e horrivelmente maquiado.
Paixão não se discute. A mulher se levanta, rodopiando os quartos, pega o rádio do torcedor e lança o repto: “Você quer ver banheira, é? Pois vem cá!”
Vai aos fundos da casa e mete o rádio no taque de roupas. Exatamente na hora dos comentários. Afogou Kajuru em caldo de cueca.
Se os ônibus de meu bairro fossem equipados com radiodifusor, como alguns de bairros com inexplicáveis privilégios, já seria de enlouquecer. Uma hora de “sertanejo” com o coro da massa que, ao arreganhar as cordas vocais, aumentaria o volume do bafo matinal misturado com a sovaqueira.
Não é por nada, não. Não é preconceito. Mas as filhas de minha vizinha da esquerda não deveriam ser tão cruéis.
Elas me impingem todo dia Sandes Júnior com a voz lacrimosa ao ler supostas cartas de ouvinte. (Aposto que exemplar deste jornal vai ser misteriosamente metido por baixo da porta da casa de dona Luzia.)
Parece que me perdi do assunto.
Ah, sim. Hinos religiosos. Não sei qual o poder que eles têm para “limpar” o ambiente de influências nefastas, satânicas.
Maus tempos atrás, eu trabalhava para empresa que tinha copeira muito religiosa. Quando ela me via entrar na cantina, danava-se a cantar.
Não sei por que razão, leitor profano. Quem me conhece sabe que sou sujeito bem-comportado, que tem papo de nível elevado, respeitoso feito o diabo.
Na hora do cafezinho, eu ficava lá, conversando com alguns coleguinhas, e a mulher, talvez por não entender, se escandalizava com a prosa. Aí apelou para os hinos.
Quem estivesse procurando por mim saberia onde me encontrar ao ouvir o berreiro. Mas na cantina não havia mais rodinha de papo. A moçada não se entendia com tanto só-jesus-salva.
A mulher cantava tão alto que ninguém na empresa escapava de ouvir, até que um dos gerentes, extremamente irritado, gritou, lá da mesa dele: “Para com essa cantação, inferno!”
Ela parou. A rodinha voltou a se reunir na hora do cafezinho. Só que a mulher, ao me avistar, corria para o fundo da cantina e ficava lá, de costas para a turma, até sentir que eu havia me retirado.
Pois é. Se essa outra mulher, na segunda-feira braba, fosse um rádio que a gente pudesse estrangular...
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 56, 26/4/1998)
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