sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Pra começar, duas crônicas exuberantes


Figurinhas de linguagem

Que no futuro (remotíssimo, espero) ninguém use figura de linguagem para se referir a mim. “O cérebro mais brilhante do seu tempo”, “Um crânio fenomenal”, “Um grande coração” – coisas assim, mais puxadas para o macabro do que para o samba-enredo.
Não, não faço questão de que a posteridade (ou posterioridade, como diriam Ibrahim Sued e seguidores) – reconhecendo meus predicados – me transforme em uma parte de mim.
Embora eu goste, confesso, quando coleguinha (sexo feminino, claro) se descabelando exclama, ou melhor, urra: “Você é um pau!” (Em público, para disfarçar, elas dizem: “Você é um saco!”) Mas essa é uma exceção freudiana. E aí, no campo do freudismo, tudo se permite.
Certa vez uma garota, tão garota, me disse, num sussurro cálido: “Você é meu recorde de orgasmos.” (Ela pronunciou récorde, mas não faz mal, porque é assim que todo mundo pronuncia.) E foi então que, tentando “vencer os limites”, intentei a pós-saideira, como se quisesse – não queria, por um feito que normalmente não me exige o menor esforço – entrar naquele (ou para aquele?) livro dos relativos récordes. Não entrei.
Ah, mas se o Jaime (um dos diagramadores aqui da Gazeta que vive me difamando), mas se o Jaime acha que broxei, se equivoca. Há momentos em que o atleta tem que se levantar para tomar um pouco de água...
Desculpem. Ensimesmado em si mesmo, desguiei do assunto. Estava era falando das partes. Não as partes em litígio, lógico, porque litígio é uma pendenga sem sentido. Sem falar que “lógico” é uma linguagem de pernóstico. E “pendenga” é coisa de goiano.
Voltemos às partes. As partes do corpo que são a pessoa em referência, qualquer pessoa. No meu caso, declaro humildemente que me acusam de cérebro. Outras pessoas são (ou foram) acusadas de dedo, por exemplo. Vocês sabem, os adeptos da deduragem (ou dedoduragem). Frank Sinatra é A Voz, embora quase não se ouça a dita. Rapazinho que conheço poderia , com muita propriedade (segundo ouvi dizer, friso), ser cognominado de A Garganta.
Por fim, parece que vou entrar na razão de toda esta logomaquia.
Dando meu costumeiro giro pelas bancas de jornal, para apreciar as cores e morrer de vontade de ler (ou ver) o que as capas das publicações anunciam, dou de cara com as promissoras palavras:
“Os bumbuns mais bonitos contam o que fazem”. (Não me lembro bem se era “o que fazem” ou “o que pensam”.)
E aí são enumeradas Carla Perez, Adriana Galisteu (que é meio chulada para entrar no time) e outras.
Apesar da maneira einsteiniana de trabalhar, meu cérebro deu um vacilo e ameaçou um bruxuleio. Mas também, coitado, tão carregado de genes, clones, mutações, a carranca dos credores... Ele já anda (embora ainda não tenha pernas) preparado para tudo.
O problema não foi exatamente querer saber o que os bumbuns fazem, porque curiosidade tem limite. O que me intrigou foi imaginar aquela peça anatômica contando alguma coisa. Ou até mesmo pensando, já que nem as portadoras de tais rotundidades, pelo que me consta...
Felizmente a razão, temporariamente perdida, voltou às minhas posses. E infelizmente a parte que me toca não é a parte calipígia da Carla Perez. Ou a inteira Carla Perez, que, mais do que mulher, é uma sinédoque.
Depois de virar debate no Congresso e apelido de projeto de lei, vai transformar-se em exemplo gramatical. E dos bons.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 45, 8/2/1998)


Que medicina legal!

A sinceridade às vezes me comove. E é com base na sinceridade científica que hoje vou abordar mais um assunto sério. Mais sério impossível: medicina legal. Antes de mais nada, vamos à sinceridade. Em livro resgatado das ruínas de minha biblioteca encontro este registro do autor no prólogo:
“Estas aulas foram feitas especialmente para os senhores, alunos apressados e atarefados em múltiplos afazeres e matérias, sem tempo suficiente para consultar um bom livro.”
Sentiram? Vejam mais adiante:
“Elas (as aulas) não têm nenhuma novidade, pelo contrário, podem ser consideradas as piores aulas de Medicina Legal já impressas no Brasil.” Já pensaram quanto tempo a gente economizaria se Brasigóis Felício, Edival Lourenço e outros assassinos gramaticais fossem tão sinceros no prefácio – melhor ainda: na capa – de suas obras imortais?
O livro em pauta chama-se Aulas de Medicina Legal e foi escrito por um gênio de nome comprido: Benedito Soares de Camargo Júnior. Tenho aqui a segunda edição, que é de 1973 e passou por “muitas compilações e revisões”, embora continue, segundo o autor, cheio de erros. Mas, pura sinceridade, ele faz o que certos repórteres deveriam fazer – assumir.
“Eventuais falhas na elaboração do mesmo não devem correr por conta da dactilógrafa, do impressor, do compositor, do revisor ou da Gráfica D. Bosco.”
A opinião do mestre Camargo Júnior sobre a gravidez resultante de estupro é de deixar a Marta Suplicy à beira de mais um ataque de nervos. Para ele, isso tem servido de válvula de escape para quem se quer enganar. “Como é que, ingenuamente, ele vai acreditar que a gravidez resultou de estupro?”
O antigo mestre de medicina legal da Universidade Federal de Goiás confessa: “Pessoalmente só acredito em estupro de menores, o resto andou havendo uma certa conivência, mesmo que psíquica.” Ele fica indignado com “a mocinha que não quis gritar para não acordar a mãe”. “Tudo com tanta ingenuidade ou malícia que causa revolta em qualquer um.”
São saborosas as aulas de sexologia. Pena que o espaço aqui seja pequeno para a riqueza de detalhes descritivos esbanjados pelo professor, que faz verdadeira apologia do hímen, “o selo que Deus ofertou às mulheres”. Se meu amigo Pé-de-Pano estivesse por perto, blasfemo como é, diria: “O único selo que se lambe depois de colado...” Mas isso é papo para filatelista, para quem gosta de colecionar raridades.
Para falar sobre atentados ao pudor ou “outros atos libidinosos”, Camargo Júnior torna-se mais abundante que bênção na Igreja Universal. Beijo ou sucção, que “às vezes” é mordedura, assim como os “toques impudicos” (“roçar, massagens, beliscões, tapas nas nádegas, compressões, práticas masturbatórias, bolinas, alisamentos, palpações etc.”), seriam atentados ao pudor.
Mas muitíssimo condenáveis são as cópulas ectópicas, e o mestre enumera algumas: anal (sodomia, pederastia), bucal ou oral (felação ou irrumatio in oris), vestibular, interfêmora (coxas), axilar, intermama, bucovulvar (cunilíngua), dedos dos pés.
Se o professor fizesse tudo o que condena, com toda essa criatividade, viveria nos braços de enorme sucesso.
Quando se refere a impotência, ele é igualmente portentoso. Afirma que frieza sexual é causa de impotência e vice-versa. Ensina que se deve ter em mente “se a impotência existia antes do casamento ou depois dele (esposa cabeluda, corpo cheio de tatuagens de artistas de cinema ou santos)”.
A impotência, acreditem, pode ser causada até por acidentes de trabalho. (Fico a imaginar michezinho lá da Avenida Goiás botando aquilo – ou aquilo – no seguro...) O professor garante que muito marmanjo acusado de impotente está mesmo é com enganação. O sujeito pode até ser impotente, mas só “para com ‘A’ (geralmente a esposa)”. O desconfiadíssimo formador de profissionais acha que o carinha paparia todas as demais letras do alfabeto.
Existem “causas risíveis de impotência coeundi”: “um pequeno travesseiro, sujo e fétido, que o marido conserva há vinte e seis anos; uma boneca de porcelana que deveria dormir entre o casal; a presença da mãe ou irmã mais velha no quarto do casal na noite de núpcias; a luz acesa no quarto; o toco de cigarro; a halitose e a desidrose (hidrose) e, finalmente, duzentos flatos sulfídricos todas as noites”.
É realmente espantosa a precisão científica do mestre. Ele apenas não diz se chegou à conclusão de que o impotente em questão só não dá as suas furadinhas porque passa as noites contando peidos. Mas Camargo Júnior é sincero e diria, se fosse o caso, que da mulher amada todos os eflúvios são bem-vindos debaixo do cobertor.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 46, 15/2/1998)

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